No que respeita à
formulação de um programa de estudos, tanto para o ensino secundário como para o
superior, exige-se, da parte do professor, uma visão abrangente das diferentes
disciplinas da filosofia. Só essa visão permite hierarquizar quer as
disciplinas quer as matérias obedecendo ao princípio simples de começar pelo
mais central e intuitivo, avançando para o mais especializado e menos
intuitivo. Evidentemente, tal hierarquização terá sempre um certo grau de
vagueza ou oscilação, e estará sempre sujeita a revisão, de acordo com o
progresso da investigação. Por exemplo, a filosofia da mente, secundária no
princípio do séc. XX, assume cada vez mais importância hoje em dia. E a tese
metodológica da prioridade da linguagem, que foi tão popular na filosofia de
meados do séc. XX, e que tanta proeminência deu à filosofia da linguagem, é
hoje recusada pela maior parte dos filósofos.
Em qualquer área de
estudos, o estudante e o investigador carecem de orientação na selva luxuriante
de livros e artigos existentes. Evidentemente, tal orientação, para ser de
qualidade, deverá basear-se em ampla informação da parte dos professores1, e deverá ser tão objectiva quanto
possível. Por exemplo, só porque a área de especialização de um professor é a
metafísica da modalidade, ele não deve impor aos estudantes esta área de
estudos nem os seus autores preferidos, como se fossem centrais e como se a sua
disciplina favorita fosse a mais importante. Quando este tipo de falta de
seriedade educativa acontece, os planos de estudos tornam-se batalhas campais,
tentando cada professor, por todas as vias, impor as suas preferências. O
resultado são planos de estudos aparentemente aleatórios, como acontece com os
programas do ensino secundário, não obedecendo a quaisquer princípios
científicos ou didácticos, mas apenas aos gostos pessoais dos seus autores, ou
ao facto de alguém que é nosso amigo nos ter telefonado na véspera a «sugerir»
que também o seu autor preferido, acabado de reeditar, fosse contemplado.
As disciplinas mais
centrais e gerais da filosofia são as seguintes:
- Metafísica
- Epistemologia
- Ética
- Lógica
A filosofia é uma
disciplina muito vasta e o espaço não permite que descrevamos, nem em geral, a
maior parte dos problemas, teorias e argumentos das suas diferentes
disciplinas. O que se segue é uma mera sinopse2.
A metafísica
estuda problemas relacionados com os aspectos mais gerais da estrutura da
realidade, nomeadamente os seguintes: a natureza da verdade; a independência do
mundo relativamente à nossa experiência; a natureza da objectividade e da
subjectividade; a identidade pessoal; o livre-arbítrio; o sentido da vida; a
natureza da modalidade e a existência de mundos possíveis; a identidade, a
persistência e a substância dos objectos; acontecimentos e substâncias;
universais e particulares; a noção de causalidade e de lei da natureza;
problemas conceptuais do espaço e do tempo. A ontologia é a parte da
metafísica que estuda a existência ou o que há: que tipo de existência têm os
números, ou os universais? Que tipo de existência tem um acontecimento ou uma
proposição? Os temas introdutórios mais comuns3 no que respeita à metafísica são a
identidade pessoal, o livre-arbítrio e a persistência dos objectos.
A epistemologia
estuda problemas relacionados com o conhecimento em geral, nomeadamente os
seguintes: a análise de conhecimento como crença verdadeira justificada; a
estrutura da justificação cognitiva (fundacionalismo, coerentismo,
externalismo, teorias causais, etc.); o problema do cepticismo; fontes de
conhecimento (conhecimento a priori e a posteriori, indução,
testemunho, etc.). Os temas introdutórios mais comuns no que respeita à
epistemologia são a análise de conhecimento, as teorias da justificação
(fundacionismo e coerentismo) e o problema do cepticismo.
A ética (ou a
filosofia moral4) estuda problemas
relacionados com o modo como devemos viver e com o que devemos valorizar. A
ética abrange três áreas ou subdisciplinas distintas: a metaética, a ética
normativa e a ética aplicada. A metaética estuda problemas mais abstractos,
relacionados com a natureza da própria ética; a ética normativa estuda
diferentes sistemas éticos; e a ética aplicada estuda problemas práticos, como
o aborto ou a eutanásia. Eis alguns problemas da ética em geral: o egoísmo
(ético e psicológico); a Regra de Ouro; a natureza da normatividade e da razão
prática; a objectividade do juízo ético; responsabilidade moral, deliberação e
decisão; acrasia; relativismo ou realismo éticos; a incomensurabilidade de
valores. Algumas das teorias normativas mais importantes são a teoria das
virtudes, o utilitarismo e a ética deontológica. Alguns dos problemas mais
estudados em ética aplicada são os seguintes: o aborto, a eutanásia, o estatuto
moral dos animais não humanos, a ética do meio ambiente e o problema ético da
pobreza no mundo. A ética aplicada deu entretanto origem a várias
subdisciplinas próprias, como a ética empresarial, a ética jornalística, a
ética médica, a bioética em geral, a ética universitária, etc. Os temas
introdutórios mais comuns no que respeita à ética prática são o aborto, a
eutanásia e os direitos dos animais; no que respeita à ética normativa, esses
temas são o utilitarismo, a ética de Kant e o egoísmo; e no que respeita à
metaética o tema mais comum é o relativismo ético.
A lógica
estuda e sistematiza a argumentação válida. A lógica tornou-se uma disciplina
praticamente autónoma em relação à filosofia, graças ao seu elevado grau de
precisão e tecnicismo. Hoje em dia, é uma disciplina que recorre a métodos
matemáticos, e os lógicos contemporâneos têm em geral formação matemática.
Todavia, a lógica elementar que se costuma estudar nos cursos de filosofia é
tão básica como a aritmética elementar e não tem elementos matemáticos. A
lógica elementar é usada como instrumento pela filosofia, para garantir
a validade da argumentação.
Quando a filosofia
tem a lógica como objecto de estudo, entramos na área da filosofia da
lógica, que estuda os fundamentos das teorias lógicas e os problemas não
estritamente técnicos levantados pelas diferentes lógicas. Hoje em dia há muitas
lógicas além da teoria clássica da dedução de Russell e Frege (como as lógicas
livres, modais, temporais, paraconsistentes, difusas, intuicionistas, etc.), o
que levanta novos problemas à filosofia da lógica.
A filosofia da lógica
distingue-se da lógica filosófica, que não estuda problemas levantados
por lógicas particulares, mas problemas filosóficos gerais, que se situam na
intersecção da metafísica, da epistemologia e da lógica. São problemas centrais
de grande abrangência, correspondendo à disciplina medieval conhecida por
«Lógica & Metafísica», e abrangendo uma parte dos temas presentes na
própria Metafísica, de Aristóteles: a identidade de objectos, a natureza
da necessidade, a natureza da verdade, o conhecimento a priori, etc.
Precisamente por ser uma «subdisciplina transdisciplinar», o domínio da lógica
filosófica é ainda mais difuso do que o das outras disciplinas. Para agravar as
incompreensões, alguns filósofos chamam «lógica filosófica» à filosofia da
lógica (e vice-versa). Em qualquer caso, o importante é não pensar que a lógica
filosófica é um género de lógica, a par da lógica clássica, mas «mais
filosófica»; pelo contrário, e algo paradoxalmente, a lógica filosófica, não é
uma lógica no sentido em que a lógica clássica é uma lógica, isto é, no sentido
de uma articulação sistemática das regras da argumentação válida.
A lógica informal
estuda os aspectos da argumentação válida que não dependem exclusivamente da
forma lógica. O tema introdutório mais comum no que respeita à lógica é a
teoria clássica da dedução (lógica proposicional e de predicados, incluindo
formalizações elementares da linguagem natural); a lógica aristotélica é por
vezes ensinada, a nível universitário, como complemento histórico e não como
alternativa à lógica clássica.
O grupo seguinte de
disciplinas da filosofia são menos centrais do que as anteriores:
- Filosofia da religião
- Filosofia política
- Estética e filosofia da arte
- Filosofia da ciência
- Filosofia da mente
- Filosofia da linguagem
Afirma-se que uma
disciplina como a ética, por exemplo, é mais central do que a filosofia
política, por exemplo, porque de algum modo a filosofia política estuda
problemas éticos específicos da vida numa sociedade politicamente organizada,
tal como a filosofia da ciência estuda aspectos metafísicos, lógicos e
epistemológicos da ciência. Evidentemente, a distinção entre estes dois grupos
de disciplinas é algo vaga: não há critérios de diferenciação que permitam
traçar uma fronteira nítida. Mas a ausência de fronteira clara não é a ausência
clara de fronteira.
A filosofia da
religião estuda temas como os seguintes: argumentos a favor e contra a
existência de Deus, como os argumentos ontológico, do desígnio ou cosmológico,
e o problema do mal; a racionalidade e a epistemologia da fé; a natureza de
Deus e as suas propriedades; filosofia da linguagem religiosa; a ideia de alma
e de imortalidade. Os temas introdutórios mais comuns no que respeita a esta
disciplina são os argumentos a favor de Deus e as suas críticas, o problema do
mal e o fideísmo.
A filosofia
política estuda o modo como podemos viver em sociedade e o modo como
devemos fazê-lo, o que levanta problemas como os seguintes: a justificação do
estado e da obrigação política; a justificação do anarquismo; a natureza da
justiça; a justificação da democracia; a igualdade; o liberalismo político, a
liberdade e os mercados livres; a propriedade privada; os direitos naturais; o
problema da punição. Os temas introdutórios mais comuns no que respeita a esta
disciplina são o problema da justificação do estado, as teorias contratualistas
e a liberdade.
A estética e a
filosofia da arte são subtilmente distintas, mas hoje em dia estuda-se
sobretudo a última. A estética estuda a natureza do juízo estético em geral; a
filosofia da arte estuda problemas como a definição de obra de arte e o valor
da arte. O tema introdutório mais comum no que respeita a esta disciplina é a
definição de obra arte, estudando-se em geral as várias teorias que respondem a
este problema.
A filosofia da
ciência estuda aspectos epistemológicos, metafísicos e lógicos relacionados
com as ciências em geral, incluindo as ciências da natureza e as ciências
humanas. Eis alguns dos temas estudados nesta disciplina: a relação entre
teoria e observação; a confirmação de teorias científicas; a interpretação da
probabilidade; a noção de explicação científica e de leis da natureza; realismo
e anti-realismo científicos; incomensurabilidade de teorias; o estatuto dos
inobserváveis; unidade e diversidade das ciências. A filosofia das ciências tem
dado origem a várias subdisciplinas especializadas: filosofia da biologia,
filosofia da física, filosofia das ciências humanas e filosofia da história. Os
temas introdutórios mais comuns no que respeita a esta disciplina são a relação
entre observação e teoria, o problema da confirmação (indutivismo e
falsificacionismo), realismo e anti-realismo científicos, e o problema da
demarcação (entre ciências e não ciências).
A filosofia da
mente estuda problemas metafísicos e epistemológicos relacionados com os
fenómenos mentais. Eis alguns dos temas estudados nesta disciplina: a relação
mente-corpo — fisicalismo, dualismo, funcionalismo; o problema da causalidade
mental; a existência de mentes alheias (o problema do solipsismo); o valor da
introspecção e a autoridade da primeira pessoa com respeito aos seus estados
mentais; os fenómenos mentais: consciência e experiência, qualia,
conteúdo perceptivo; intencionalidade e atitudes proposicionais; internalismo e
externalismo mental; o papel e a natureza das emoções; a natureza da acção;
acrasia. Tanto a filosofia da linguagem como a metafísica e a filosofia da
psicologia estão intimamente relacionadas com a filosofia da mente. Os temas
introdutórios mais comuns no que respeita a esta disciplina são as teorias fisicalistas,
dualistas e funcionalistas sobre o problema da mente-corpo e o problema do
solipsismo.
A filosofia da
linguagem estuda todos os problemas relacionados com o funcionamento da
linguagem e o fenómeno do significado linguístico. Eis alguns dos temas desta
disciplina: a natureza do significado — significado, verdade e realismo,
indeterminação; pragmática; a natureza do conhecimento do significado e das
regras linguísticas; o problema da referência: indexicais e demonstrativos,
nomes próprios, descrições definidas, quantificação e anáfora; atitudes
proposicionais; sentido, força e modo; advérbios e quantificação sobre
acontecimentos; a distinção entre diferentes línguas, linguagens e idiolectos;
o significado das metáforas. Os temas introdutórios mais comuns no que respeita
a esta disciplina são as teorias da referência e as descrições definidas.
Disciplinas
decididamente menos centrais e mais especializadas, sendo muitas vezes
subdisciplinas das anteriores, são as seguintes:
- Filosofia da acção e filosofia da psicologia — Partes
próprias da filosofia da mente, da filosofia da ciência e da metafísica.
- Filosofia do direito — Parte própria da
filosofia política e da ética.
- Filosofia das ciências humanas — Parte
própria da filosofia da ciência.
- Filosofia da matemática — Parte própria da
metafísica, epistemologia e filosofia da linguagem.
A história da
filosofia está sempre presente no estudo das diferentes disciplinas
filosóficas sumariamente apresentadas acima. Ao estudar as diferentes
disciplinas filosóficas, verifica-se que muitos dos problemas, teorias e
argumentos foram originalmente estudados por autores clássicos como Platão,
Aristóteles, Tomás de Aquino, Descartes, Hume, Leibniz, Kant, Russell, Frege,
Wittgenstein, etc. Por exemplo, ao estudar ética deontológica discutem-se
ideias clássicas de Kant, mas também as contemporâneas; ao estudar o problema
da definição de conhecimento discutem-se ideias de Platão, mas também as ideias
contemporâneas.
No estudo directo da
história da filosofia discute-se explicitamente o pensamento dos autores
clássicos mais importantes, dos pré-socráticos à actualidade. O estudo
introdutório da história da filosofia é também tematicamente orientado. Dado
que não se pode ter a veleidade de estudar todos os aspectos do pensamento de
todos os principais filósofos clássicos, é comum escolher as contribuições
filosóficas mais significativas dos principais filósofos, estudando-se apenas
esses aspectos. Isto, por sua vez, implica a capacidade para transmitir ao
estudante os problemas, as teorias e os argumentos filosóficos que estão em
causa e que tornam essas contribuições filosoficamente significativas. Por
exemplo, para estudar o Teeteto, de Platão, é necessário explicar,
tirando partido do entendimento que hoje temos das coisas, o que é o
problema da definição de conhecimento. É por esta razão que não se pode estudar
história da filosofia sem dominar a própria filosofia: a filosofia é prévia à
sua história. E como deveria ser evidente, estudar um problema do ponto de
vista do próprio autor implicaria nunca avançar na compreensão das coisas;
seria como estudar a poesia de Camões da perspectiva de Camões, sem todo o
conhecimento que entretanto ganhámos da poesia: um exercício fútil.
Notas
1 O bom professor lê abundantemente, para poder
escolher, do que leu, o que se adequa ao estudante e é central para a formação
deste.
2 Para uma visão mais completa sugere-se a
consulta de London Philosophy Study Guide, preparado colectivamente
pelos departamentos de filosofia da Universidade de Londres (Londres, 2001), e
disponível gratuitamente em
3 Isto é, os que costumam ser leccionados em
cursos de licenciatura de algumas das melhores universidades, e os que surgem
em alguns dos melhores livros introdutórios. A escolha destes temas
introdutórios não é aleatória: corresponde ao facto de se tratar de temas
centrais mais intuitivos, que o estudante que dá os primeiros passos na
disciplina mais facilmente compreende, e que, por serem centrais, são
estruturantes.
4 Faz-se por vezes uma distinção vaga e confusa
entre ética e moral, que não tem qualquer relevância teórica ou didáctica,
obscurecendo mais do que esclarecendo.
Retirado do livro Renovar
o Ensino da Filosofia (Lisboa: Gradiva, 2003).
4 comentários:
Amei esse site continuem ajudando mais em busca do conhecimento forteduradouro
É pressiso estar ciente do que fazes pra que encontre mas respostas da duvida. Muito obrigada.
É pressiso estar ciente do que fazes pra que encontre mas respostas da duvida. Muito obrigada.
Quais são as disciplinas da filoso fia
Enviar um comentário