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segunda-feira, 4 de maio de 2009

Verdade ii


Parte II
Em oposição parcial a Clifford, o filósofo e psicólogo americano William James (1842-1910) defendeu que "a fé cria a sua própria verificação" ("O Sentimento da Racionalidade", 1897). James tem em mente situações como a de um alpinista cuja única possibilidade para sobreviver à morte certa pelo frio é saltar sobre um abismo para tentar chegar à salvação que o aguarda do outro lado. Se o alpinista se limitar a fazer os seus cálculos e concluir que o salto tem poucas probabilidades de sucesso, é quase certo que irá falhar. Mas se acreditar firmemente que será capaz de alcançar o outro lado, terá maiores probabilidades de se salvar: a crença optimista é motivadora.
É possível conciliar a perspectiva de Clifford com a de James. Caso existam provas conclusivas a favor de algo, "é sempre incorrecto, seja onde for e para quem for", não acreditar nisso. Se a distância que o alpinista tem de conseguir vencer em salto livre para se salvar for de cem metros, então o alpinista tem provas conclusivas de que não conseguirá alcançar o outro lado — e é inútil tentar saltar. Mas caso não existam provas conclusivas a favor nem contra algo, abre-se a possibilidade de a crença poder desempenhar um papel motivador. Se a distância que o alpinista tem de vencer é difícil mas exequível, a forte convicção de que terá sucesso contribui para o sucesso. Para que a crença possa criar "a sua própria verificação", contudo, é necessário que o objecto da crença esteja causalmente relacionado com a crença. No caso do armador, não há tal relação causal: por mais firmemente que o armador acredite que o navio não se afundará, tal crença em nada influencia o comportamento do navio no alto mar.
A lucidez consiste em saber distinguir os casos em que a crença pode criar "a sua própria verificação", dos casos em que a crença não o pode fazer. O optimismo é motivador e sem ele seria emocionalmente muito difícil enfrentar as arbitrariedades infelizes da vida. Mas para que o optimismo não se transforme em crendice irresponsável é necessário determinar, em cada caso, se existe uma relação causal entre a crença e o seu objecto.
Desvalorizar a verdade a favor da sinceridade e da força das convicções é uma ilusão perigosa mas comum. Dada a dificuldade em averiguar cuidadosamente se o que os políticos afirmam é realmente verdade, os eleitores guiam-se unicamente pelo grau de convicção demonstrado. Inevitavelmente, esta tendência produz políticos com o dom de acreditar precisamente no que lhes dá jeito acreditar, contra todas as provas e avisos da razão. O resultado são políticos que distorcem sinceramente a verdade porque é para eles mais importante ter uma convicção forte do que dar-se ao incómodo de ter uma convicção verdadeira. As maiores atrocidades são cometidas em nome de fortes convicções sinceras, excelentes em todos os aspectos mas que falham num pormenor: são falsas. Ser um mau líder é ter a capacidade para fazer as pessoas seguir acriticamente as suas convicções cegas, só porque são convicções muito fortes — e que dão muito jeito, a curto prazo e para alguns. Mas não atender à justiça é uma das muitas formas de não atender à verdade. Se é verdade que um dado curso de acção é injusto, nenhum grau de forte convicção pode mudar a sua injustiça: podemos reivindicar jurisprudência sobre a força das nossas convicções, mas só a realidade decreta a sua verdade ou falsidade.

Desidério Murcho

domingo, 19 de abril de 2009

Verdade


Onde há a palavra, há a verdade. A palavra é usada para conversar e sem verdade não há conversa. Usa-se a palavra para conversar sobre afectos, realidades, crenças, pensamentos, medos, desejos, memórias, futuros e tudo o mais. Sem a verdade, a conversa seria uma mera manifestação de subjectividades solipsistas e imunes ao erro, discursos paralelos sem triangulação possível entre si e a realidade. Numa conversa, não é indiferente afirmar que Sócrates era grego, o que é verdade, ou afirmar que era egípcio, o que é falso; não é indiferente afirmar que o racismo é imoral, o que é verdade, ou afirmar que as mulheres devem ser discriminadas, o que é falso.
A noção de verdade não é uma fantasia mitológica, como os deuses da antiguidade clássica, pois pode-se abandonar as noções mitológicas mas não a noção de verdade. Pode-se abandonar sem pena de incoerência a noção de Zeus porque se pode afirmar que é verdade que Zeus não existe. Mas não se pode abandonar sem pena de incoerência a noção de verdade porque não se pode afirmar que é verdade que a verdade não existe.
Sem verdade não há validade. A validade, no sentido lógico definitivamente estabelecido por Aristóteles, é uma relação entre valores de verdade. Um argumento é válido quando é impossível, ou improvável, que as suas premissas sejam verdadeiras e a sua conclusão falsa. Se não existisse validade, qualquer mau argumento a favor da ideia de que há verdade seria tão bom quanto o melhor argumento contra tal ideia. Isto mostra que a noção de que não há verdade é arbitrária, pois quem a aceita tem de aceitar que há tão boas razões para a aceitar como para a rejeitar.
Sem validade não há argumentação e quando não há argumentação resta a manipulação e a força bruta de quem tem mais força: força física, força económica, força política. Contudo, por mais força política, económica ou física que tenha quem defende que a discriminação das mulheres é uma boa ideia, não poderá apresentar bons argumentos porque a verdade não está do seu lado. A força bruta compra muita coisa, mas não pode comprar a verdade.
A verdade não se submete à força bruta nem à crença forte. Contudo, uma superstição comum é que crer com muita firmeza em algo torna verdadeiro o objecto da crença. Esta superstição baseia-se numa confusão entre as noções de crença e de conhecimento. Quando se sabe realmente algo, o que se sabe é verdade: não é possível saber que Kant morreu em 1803 porque ele não morreu em 1803, apesar de ser possível estar enganado e pensar que se sabe que Kant morreu em 1803. Mas quando se tem uma certa crença, por mais forte que seja, o que se crê pode não ser verdade: é perfeitamente possível crer que Kant morreu em 1803, apesar de na verdade ele ter morrido em 1804. Pensar que a crença forte produz verdades é uma maneira infantil e vã de tentar garantir que os nossos desejos serão realizados se os desejarmos com muita firmeza.
Se a verdade não existisse, não faria sentido exigir responsabilidade pelas nossas crenças, convicções ou opiniões. Exige-se responsabilidade porque podemos estar enganados e podemos estar enganados porque a verdade pode não estar do nosso lado: podemos pensar que sabemos quando não sabemos. O filósofo e matemático britânico W. K. Clifford (1845-1879) defendeu que "é sempre incorrecto, seja onde for e para quem for, acreditar em algo sem provas suficientes" ("A Ética da Crença", 1877). Clifford apresenta o exemplo de um armador que envia o seu velho navio para mais uma longa viagem sem tomar precauções suficientes no que respeita à sua manutenção. Contra todas as evidências, o armador convence-se a si mesmo de que o navio está em condições de fazer uma última viagem, antes de sofrer reparações profundas. E envia o navio para o alto-mar, colocando a sua confiança na Providência. Quando o navio naufraga, morrendo toda a gente a bordo, o armador recolhe o dinheiro do seguro, com toda a paz de espírito. Clifford considera que o armador está em falta: a ética da crença obriga a ter o cuidado de não aceitar uma proposição sem ter suficientes provas a seu favor. O armador continuaria em falta mesmo que o navio não tivesse naufragado — porque ele tinha razões para acreditar que o navio corria um sério risco de naufragar, tendo activamente bloqueado tal crença só porque lhe era incómoda.

Desidério Murcho