domingo, 30 de outubro de 2016

Agência

Aristóteles definiu o homem como sendo o animal racional. Prima facie, um animal é racional se, e somente se, de uma forma geral, age racionalmente. Mas o que é agir racionalmente?
            A resposta aristotélica a esta pergunta encontra-se na Ética Nicomaqueia. Aí Aristóteles delineia os contornos da sua teoria da acção racional. Esta pode ser resumida através da seguinte tese. Uma acção é racional se, e somente se, pode ser representada como constituindo o resultado da exemplificação por um dado agente A do seguinte silogismo prático:

a tem um desejo d o conteúdo do qual é e;
a tem uma crença g o conteúdo da qual é que fazer q é a melhor maneira de alcançar e;
\ a faz q.

            Um indivíduo cujas acções admitem ser derivadas de acordo com este algoritmo é então um indivíduo que age racionalmente ou um agente racional. Por outro lado, um indivíduo acerca do qual as premissas do silogismo prático são, em cada circunstância, verdadeiras, mas que, nas circunstâncias nas quais elas são verdadeiras, não se comporta de acordo com a conclusão do mesmo é um indivíduo que age irracionalmente; não é, portanto, um agente racional.
            A avaliação desta teoria coloca-nos perante uma encruzilhada fundamental: será que, dada a natureza das nossas atribuições de crenças e desejos, é possível determinar em cada caso o valor de verdade das premissas de forma independente da determinação do valor de verdade da conclusão? Ou será que a teoria tem uma validade a priori e que é apenas por intermédio da sua pressuposição que atribuímos crenças e desejos aos agentes?
            A opção por uma resposta afirmativa à primeira pergunta coloca-nos dois novos e difíceis problemas: primeiro, quais são então as condições de verdade das frases que ocorrem nas premissas? segundo, se não somos obrigados pelo nosso próprio quadro conceptual a associar a verdade das premissas à verdade da conclusão, então, e uma vez que a conexão entre elas não é uma conexão lógica, a verdade das premissas e a verdade da conclusão do silogismo prático deveriam encontrar-se entre si numa relação apenas contingente.
            Comecemos por considerar este segundo problema. Se a relação entre as premissas e a conclusão do silogismo prático é apenas contingente, então deveria ser possível, pelo menos, colocar a hipótese de que a teoria poderia ser falsa a nosso respeito. Mas a consideração desta última possibilidade parece, por seu turno, conduzir-nos à seguinte alternativa indesejável: ou se pode dar o caso de que seres racionais sejam os protagonistas de acções irracionais ou se pode dar o caso de que o homem não seja racional. Ora, o primeiro termo desta alternativa tem um toque de paradoxo e o seu segundo termo parece pôr em causa os fundamentos da nossa concepção do humano. O primeiro problema, por seu lado, tem alimentado todo um ramo de investigação filosófica sem que se tenha chegado a qualquer acordo substancial sobre a questão.
            A opção por uma resposta afirmativa à segunda pergunta da encruzilhada mencionada acima leva-nos também para caminhos difíceis. Com efeito, a selecção deste termo da alternativa parece levar a que se tenha que pôr em causa o valor psicológico da teoria. Na realidade, se a teoria é válida a priori e se é apenas por ela constituir o quadro conceptual por intermédio do qual nós percepcionamos os comportamentos humanos como acções de sujeitos racionais que nós podemos, em cada caso, transformar as frases abertas das premissas em frases propriamente ditas, então a teoria torna-se psicologicamente vazia. Isto é, se este é o caminho correcto para sair da encruzilhada, então quando dizemos que o fulano A fez T porque A tinha um desejo D o conteúdo do qual era E e A tinha uma crença C o conteúdo da qual era que fazer T seria a melhor maneira de agir para alcançar E, não estaremos a dizer outra coisa senão que A é uma pessoa, o comportamento da qual nós somos, ipso facto, levados a interpretar como sendo o de um sujeito racional. A causa eficiente das movimentações observáveis de A fica, porém, totalmente por esclarecer e, portanto, a teoria não tem valor empírico.
            A despeito desta dificuldade, Platão parece ter favorecido a opção por algo como este caminho. Com efeito, ele considera no Protágoras que não é possível imaginar-se que alguém dotado de desejos e crenças possa agir contra a sua própria crença acerca de qual é a melhor forma de agir numa dada ocasião para satisfazer o seu desejo. Isto é, que alguém acerca de quem algo como as premissas do silogismo prático possam ser consideradas como verdadeiras possa não agir de acordo com o que Aristóteles veio a considerar ser a conclusão do mesmo é uma hipótese considerada por Platão como sendo destituída de sentido. A satisfação da condição da racionalidade parece, portanto, ser vista por este como necessária para que um dado comportamento seja considerado como uma acção; um comportamento que, por qualquer razão, não seja enquadrável na teoria que Aristóteles veio a codificar no algoritmo do silogismo prático não seria, pura e simplesmente, uma acção e, portanto, não contaria como contra-exemplo à validade da teoria, a qual deveria ser entendida como uma teoria da acção e não como uma teoria geral do comportamento.
            A despeito das dificuldades mencionadas acima, Aristóteles parece inclinar-se mais para o primeiro caminho definido na encruzilhada mencionada acima do que para o segundo. Com efeito, ele aceita como plausível a ideia de que indivíduos racionais possam por vezes agir em desarmonia com a doutrina codificada no silogismo prático. Ele considera, em particular, duas situações nas quais isso é possível: a situação da fraqueza da vontade, na qual o indivíduo racional tem um mau momento e se deixa dominar por impulsos sensíveis que determinam que ele desempenhe uma acção que ele próprio não considera como sendo a melhor para atingir os seus fins; e a situação na qual o agente aplica incorrectamente o princípio geral a um caso particular, isto é, aquela situação na qual o agente pretende, de facto, agir de acordo com o conteúdo da sua crença, mas na qual a acção que ele de facto leva a cabo não constitui realmente uma instância do género de acção que ele pretendia ter levado a cabo. Ora, se casos como estes são imagináveis, isto tem que significar que as frases constantes nas premissas do silogismo prático têm um valor de verdade intrínseco, o qual deverá ser acessível independentemente do nosso uso interpretativo da teoria.
            O toque de paradoxo associado à ideia de que seres racionais poderiam agir irracionalmente é combatido por Aristóteles com a introdução daquilo a que se poderia chamar uma concepção disposicionalista da acção. Isto é, para Aristóteles, comportamentos irracionais poderiam também ser considerados como acções, desde que fossem comportamentos de indivíduos que, em geral, agem, ou tenham a disposição para agir, racionalmente. Em todo o caso, convém salientar que, a menos que um agente racional seja vítima momentânea de alguma das insuficiências cognitivas tipificadas acima, Aristóteles, tal como Platão, tão-pouco parece conceber a possibilidade de que um agente racional possa realmente agir contra a sua crença acerca de qual é a melhor forma de agir. Isto é, os casos de irracionalidade considerados por Aristóteles são, na realidade, ou casos de desvios pulsionais ou casos de uso inadequado de termos gerais e não genuínos contra-exemplos, mesmo que apenas imaginários, à validade necessária do silogismo prático para seres como nós.
            Isto é insatisfatório porque, das duas, uma: ou a conexão entre a verdade das premissas e a verdade da conclusão do silogismo prático é realmente uma conexão necessária ou essa conexão não é necessária. No primeiro caso, dado que essa conexão não é uma conexão lógica, isso implica que ela é conceptualmente determinada por uma teoria interpretativa implícita, como defende o ponto de vista platonista. Mas nessas circunstâncias torna-se difícil conceber como seria então possível determinar de forma independente o valor de verdade das premissas.
            No segundo caso, teria de ser possível imaginar, mesmo que isso fosse empiricamente falso, que seres como nós poderiam agir contra a sua própria crença acerca da melhor maneira de agir numa dada ocasião, hipótese essa que Aristóteles parece não aceitar. Saliente-se, ainda, que Aristóteles não esclarece de todo como determinar quais possam ser as condições de verdade debaixo das quais as premissas de um silogismo prático poderiam ser verificadas, respectivamente, falsificadas, de forma independente.
            As posições expostas no Protágoras e na Ética Nicomaqueia cristalizam o essencial dos pontos de vista posteriormente exemplificados pelos diferentes intervenientes no debate da tradição filosófica ocidental em torno do problema da acção racional (nomeadamente, Tomás de Aquino, Kant, Dray, Hempel ou von Wright, apenas para citar alguns). Mais recentemente, todavia, no artigo «How is weakness of the will possible?», Davidson defendeu, tanto contra Platão como contra Aristóteles, que é não apenas possível como factual que um indivíduo racional (nomeadamente, um ser humano) aja contra a sua crença acerca de qual é a melhor forma de agir sem estar a ser vítima ou de um assalto incontrolável das suas pulsões instintivas ou de um erro de identificação ou de qualquer outro fenómeno psicológico que o diminua enquanto agente. Neste caso, o agente racional estará, pura e simplesmente, a agir irracionalmente.
            A posição de Davidson sobre esta questão pode, todavia, ser vista como uma extensão da posição disposicionalista de Aristóteles. Com efeito, aquele considera, tal como este, que um comportamento dirigido de um ser que é, prima facie, racional é uma acção, mesmo que seja irracional. Por outro lado, desde que as acções irracionais constituam a excepção e não a regra, um agente não deixa de ser racional por, de quando em vez, agir irracionalmente. De um modo um pouco paradoxal, porém, Davidson combina esta sua tese com a adesão à perspectiva platonista de acordo com a qual uma dada teoria adequada da acção racional (que, no caso de Davidson, é não a teoria do silogismo prático mas uma versão particular da teoria bayesiana da decisão) tem uma validade a priori para a explicação da acção humana, constituindo, por conseguinte, a rede interpretativa no interior da qual é possível, e fora da qual não é possível, desenvolver um trabalho fecundo de explicação psicológica.

António Zilhão

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