Personagens: Lázaro:
defensor do livre arbítrio; Daniel: defensor do determinismo; Carolina:
defensora do compatibilismo.
Notas introdutórias
LÁZARO: Aí vem a Carolina. Talvez ela nos possa dizer
o que pensa sobre o assunto.
DANIEL: Olá, Carolina.
CAROLINA: Olá, Daniel. Olá, Lázaro.
LÁZARO: Eu e o Daniel estávamos a falar do julgamento
por assassínio do Leopoldo e do Carlos.
CAROLINA: É esse o julgamento no qual Clarence Darrow
tentou persuadir o juiz de que os réus não deveriam ser condenados à morte por
terem assassinado um miúdo?
LÁZARO: É. O julgamento foi notícia por todo o país.
Leopoldo e Carlos tinham apenas dezoito anos na altura e os seus pais eram bem
conhecidos em Chicago, onde viviam.
CAROLINA: Porque é que o Leopoldo e o Carlos mataram o
miúdo?
LÁZARO: Queriam cometer o crime perfeito.
CAROLINA: E é tudo?
LÁZARO: Sim. Foram a uma escola precisamente na altura
em que as crianças estavam a sair, fizeram entrar no carro um rapaz que, por
acaso, conheciam, deram umas voltas com ele, e depois deram-lhe com um cinzel
na cabeça, de tal modo que ele sangrou até morrer no próprio carro. Depois
disso, enfiaram o corpo do rapaz para dentro de um túnel situado fora da
localidade.
CAROLINA: Que coisa horrível!
LÁZARO: Também acho. Talvez tenha sido por isso que os
jornais fizeram um grande espalhafato.
CAROLINA: Qual foi a estratégia de Darrow no
julgamento?
LÁZARO: Darrow defendeu que o juiz deveria ter
compaixão dos dois jovens assassinos porque o seu acto foi o resultado de
causas sobre as quais não tinham controlo. Deixa-me ler-te aquilo que ele
realmente disse: "Eu não sei o que fez estes dois rapazes cometer este
acto de loucura, mas sei que há uma razão para tal. Sei que eles não o
engendraram. Sei que qualquer uma causa, de um número infinito de causas que
vão até ao início, poderá ter determinado o espírito destes rapazes, que vocês
devem condenar à morte por malícia, ódio e injustiça porque alguém, no passado,
pecou contra eles".
CAROLINA: Realmente, isso é uma estratégia arrojada
para ser usada por um advogado de defesa!
LÁZARO: Claro. Ouve o resto. "A natureza é forte
e impiedosa. Ela funciona de um modo misterioso, e nós somos as suas vítimas.
Não podemos fazer muito contra isso. A natureza faz o seu trabalho e nós
fazemos a parte que nos compete."
CAROLINA: Foi o juiz persuadido a reduzir a pena dos
criminosos?
LÁZARO: Parece que sim, eles foram condenados a prisão
perpétua, apesar de haver grande pressão, por parte da opinião pública, para
que a sentença fosse a pena de morte.
CAROLINA: O que pensam vocês da estratégia do Darrow?
LÁZARO: Penso que é absurda, uma vez que se baseia na
falsa crença de que tudo o que nós fazemos é determinado. Se isso fosse
verdade, os dois assassinos não poderiam ter agido livremente, o que é,
obviamente falso.
DANIEL: Eu diria que a posição, defendida por Clarence
Darrow, de que tudo o que nós fazemos está determinado, está correcta. Se isto
quer dizer que os dois assassínios não agiram livremente, então é nisso que
devemos acreditar.
LÁZARO: E tu Carolina, o que dizes deste caso?
CAROLINA: Penso que a posição de Darrow, de que tudo o
que nós fazemos é causado por acontecimentos prévios, está correcta. Mas também
penso que somos livres e moralmente responsáveis por aquilo que fazemos.
LÁZARO: Isso parece-me contraditório. Se estava
determinado que eles matariam o miúdo, não percebo como poderiam eles tê-lo
feito livremente.
DANIEL: Já agora, por que não discutimos o tema do
livre arbítrio e do determinismo? Pode ser que consigamos resolver as nossas
discordâncias.
LÁZARO: Boa ideia. Queres ficar, Carolina?
CAROLINA: Claro, com prazer. Contudo, não me parece
que o problema deva ser colocado apenas em termos de livre arbítrio ou
determinismo.
LÁZARO: Então como pensas que o devemos colocar?
CAROLINA: Eu diria que há três questões principais: 1)
Têm as pessoas livre arbítrio? 2) É o determinismo verdadeiro? E 3),
é o livre arbítrio compatível com o determinismo?
LÁZARO: A minha resposta a essas questões é que as
pessoas têm livre arbítrio, que o livre arbítrio é incompatível com o
determinismo, e, logo, que o determinismo é falso.
DANIEL: O meu raciocínio é exactamente o oposto. Defendo
que o determinismo é verdadeiro e, logo, que as pessoas não têm livre arbítrio.
CAROLINA: Concordo contigo, Lázaro, quando afirmas que
as pessoas têm liberdade, e contigo, Daniel, quando afirmas que o determinismo
é verdadeiro, mas não julgo que as duas posições sejam contraditórias.
Determinismo
LÁZARO: Talvez o melhor seja, antes de começarmos a
discutir as nossas posições, definir "determinismo".
CAROLINA: Boa ideia. A minha definição de
"determinismo" é: "Tudo o que acontece tem uma causa". Na
terminologia da filosofia contemporânea isso é o mesmo que dizer que todo o
acontecimento tem uma causa. Incluindo tudo o que fazemos, pensamos ou dizemos.
LÁZARO: Por que usas essa definição e não "As
pessoas não têm controlo sobre coisa alguma do que fazem"?
CAROLINA: Porque a questão de saber se temos ou não
controlo sobre aquilo que fazemos é diferente da questão de saber se tudo o que
fazemos é, ou não, causado. E também porque cada uma destas duas questões é
diferente da questão de saber se temos controlo sobre tudo o que fazemos, mesmo
que haja uma causa para tudo o que fazemos. Foi por isso que afirmei,
anteriormente, que há três questões principais e não duas: 1) Temos, ou não,
controlo sobre tudo o que fazemos? 2) Tudo o que fazemos é, ou não causado? E
3) podemos, ou não, ter controlo sobre o que fazemos mesmo que tudo aquilo que
fazemos tenha uma causa? Podemos discutir estas três questões, separadamente,
do mesmo modo que podemos atribuir três diferentes nomes às suas respostas —
"livre arbítrio" se respondermos "sim" à primeira;
"determinismo" se respondermos "sim" à segunda; e
"compatibilismo" se respondermos "sim" à terceira pergunta.
DANIEL: Em geral, admite-se que o determinismo afirma
que as pessoas não têm livre arbítrio, ou não?
CAROLINA: Sim, provavelmente as pessoas pensam que
isso é o determinismo. Mas eu penso que aquilo que o determinismo afirma deve
ser claramente separado daquilo que ele pode, ou não, implicar. Saber se ele
implica, ou não, o livre arbítrio, é uma questão completamente diferente.
LÁZARO: Estás a dizer que devemos definir
"determinismo" de um modo relativamente neutro, por exemplo, através
da afirmação: "Tudo o que acontece tem uma causa"; para discutirmos
primeiro a verdade desta afirmação; e só depois saber se ela implica a negação
do livre arbítrio, certo?
CAROLINA: Certo.
LÁZARO: Isso parece um bom procedimento.
DANIEL: Vou começar por apresentar a razão pela qual
acredito que tudo o que acontece tem uma causa. Penso que isto é verdade porque
há variadíssimos acontecimentos para os quais encontramos causas. Quer na nossa
vida diária, quer na ciência, encontramos inúmeros casos de acontecimentos
causados.
LÁZARO: Podes dar alguns exemplos?
DANIEL: Claro. O vento faz as árvores quebrarem-se. A
chuva causa o crescimento das plantas. A fricção causa calor.
LÁZARO: Podes dar exemplos que envolvam pessoas?
DANIEL: Sim. A fome faz as pessoas comer. O stress
causa nervosismo nas pessoas. E por aí fora. São imensas as coisas causadas que
nós fazemos, de modo que não podemos fugir à conclusão de que tudo o que nós
fazemos tem uma causa.
CAROLINA: Eu concordo.
DANIEL: Além disso, o extraordinário sucesso da
ciência em encontrar explicações faz com que seja quase impossível duvidar do
determinismo. A biologia diz-nos que o tipo de pessoa que vamos ser é
determinado hereditariamente. A sociologia diz-nos que muito daquilo que
fazemos é determinado por factores culturais. A psicologia diz-nos que aquilo
que nós somos enquanto adultos é determinado, em larga medida, por aquilo que
nos aconteceu quando éramos crianças. A psiquiatria diz-nos que os nossos
desejos conscientes são o produto de motivos inconscientes. A neurologia
diz-nos que aquilo que fazemos é causado por acontecimentos electroquímicos no
nosso cérebro. Todas juntas dizem-nos que tudo o que fazemos, dizemos, queremos
ou pensamos é inteiramente produzido por acontecimentos prévios...
LÁZARO: ...eu não penso que o determinismo seja
verdadeiro...
DANIEL: O que achas que está errado com o argumento?
LÁZARO: Duas coisas. Em primeiro lugar, não acho que
ele mostre que tudo o que nós fazemos esteja determinado. Em segundo, parece-me
que ignora o facto de que existem dados concretos contra o determinismo.
DANIEL: Pode explicar melhor esses dois pontos?
LÁZARO: Sim. Começo com o primeiro. Ainda que vocês
tenham razão quando afirmam que a ciência e as nossas experiências do dia-a-dia
nos mostram que muitas das coisas que fazemos estão determinadas, isto não
mostra que tudo esteja determinado. Afinal há muitos acontecimentos dos quais nós
não conhecemos as causas...
DANIEL: A Carolina e eu não estávamos a defender que
já se tinham descoberto todas as causas. O que nós estávamos a dizer era que, a
partir do facto de que muitas das coisas que nós fazemos são causadas, é
legitimo inferir que tudo o que nós fazemos é causado. Nós fazemos
constantemente raciocínios deste tipo. Por exemplo, inferimos que toda a erva
no mundo é verde depois de vermos alguma erva verde...
LÁZARO: Bom, isso parece-me ser nada mais do que uma
esperança que não está solidamente fundamentada. Mas, além disso, ainda há o
meu segundo ponto, nomeadamente, que há efectivamente dados contra o
determinismo.
DANIEL: Que dados são esses?
LÁZARO: Os dados resultam das descobertas feitas pelos
cientistas num ramo da física chamado «física quântica» ou «microfísica». No
início do século XX, os físicos começaram a estudar o comportamento dos
electrões, dos fotões e de outras partículas subatómicas. O que descobriram foi
que os fotões e os electrões se movimentavam ao acaso. Nada havia que
explicasse a razão pela qual um fotão ou um electrão se movia de um determinado
modo. Por exemplo, descobriu-se que os electrões por vezes saltavam de um
órbita para outra sem uma causa aparente. E numa experiência na qual se
disparavam fotões contra uma barreira com dois buracos, descobriu-se que era
impossível explicar por que razão os fotões individuais entravam num buraco e
não noutro...
DANIEL: Qual é, para ti, o significado dessas novas
descobertas?
LÁZARO: Penso que a física quântica revolucionou a
nossa visão da realidade. Antes, os cientistas pressupunham que todas as
ocorrências eram causalmente explicáveis, mas agora a física quântica mostrou
que esta suposição não é verdadeira.
DANIEL: ... Eu sou muito céptico quanto a isso. A
única coisa que a física quântica mostrou, pelo menos que eu saiba, é que nós
não conhecemos as causas de certos tipos de ocorrências. Mas isto é muito
diferente de dizer que se sabe que essas ocorrências não têm causas...
Será o determinismo compatível com o livre arbítrio?
CAROLINA: ... Há um sério motivo para pensarmos que a
liberdade é compatível com o determinismo. Os dados a favor do determinismo são
tão fortes que não podemos deixar de acreditar neles. E a crença no livre
arbítrio é tão evidente que também não a podemos abandonar... Dizer que
somos livres é dizer que não há pessoas ou circunstâncias externas que nos
impeçam de fazer aquilo que queremos fazer. Afirmar que somos livres neste
sentido é compatível com a afirmação de que o determinismo é verdadeiro.
LÁZARO: Por que defines liberdade nesse sentido?
CAROLINA: Defino liberdade desse modo porque aquelas
situações nas quais nós dizemos que uma pessoa é livre são situações nas quais
nenhuma outra pessoa ou circunstância o impede de fazer aquilo que ela quer
fazer. E naquelas situações nas quais dizemos que uma pessoa não é livre são
situações nas quais há alguma pessoa ou circunstância que a impede de fazer
aquilo que ela quer fazer. Um exemplo: supõe que, repentinamente, três pessoas
agarram o meu braço impedindo que eu o possa mexer. Neste caso, eu não seria
livre de coçar o meu nariz porque estava a ser impedida por eles.
LÁZARO: ... Pensas que, nesse sentido de liberdade,
todas as pessoas têm a mesma liberdade?
CAROLINA: Não. Algumas pessoas têm menos liberdade do
que outras. As pessoas que vivem sob ditaduras militares tem menos liberdade do
que as pessoas dos outros países. Nos Estados unidos da América, por vezes, os
negros não podem obter o trabalho que gostariam por causa dos preconceitos dos
brancos. Mas, ainda que algumas pessoas não sejam tão livres quanto outras,
todos têm alguma liberdade, porque ninguém é forçado é fazer tudo aquilo que
faz, e ninguém é impedido de fazer tudo aquilo que quer fazer.
LÁZARO: ... Podes explicar como é que, pela tua definição
de liberdade, uma pessoa pode ser livre e determinada?
CAROLINA: Sim. Uma pessoa pode ser livre e determinada
porque aquilo que ela faz pode ser causado por algo que acontece dentro dela,
mesmo que ela não seja forçada por circunstâncias exteriores para agir de um
certo modo. Se ela não é forçada a agir por circunstâncias exteriores, então
age livremente. Ainda que a sua acção possa ser causada por algo interior,
como, por exemplo, um motivo inconsciente ou um estado mental.
Determinismo e responsabilidade moral
DANIEL: Vamos considerar a questão da responsabilidade
moral?
LÁZARO: Sim, façamos isso. Começarei por descrever o
problema que o determinismo enfrenta. Aquilo que temos que fazer é explicar
como as pessoas podem ser moralmente responsáveis por aquilo que fazem se tudo
tem uma causa.
DANIEL: Podes explicar por que pensas que isso é um
problema para o determinista?
LÁZARO: Claro. Se, como tu afirmas, tudo aquilo que
fazemos tivesse uma causa, então nada daquilo que fazemos poderia ser diferente.
E se nada daquilo que fazemos poderia ser diferente, então não seríamos
moralmente responsáveis por coisa alguma que fazemos. Para sermos moralmente
responsáveis por algo tem de haver mais do que uma coisa que possamos fazer.
... Concordas com estas afirmações?
DANIEL: Sim.
LÁZARO: Então segue-se que não somos moralmente
responsáveis por coisa alguma que fazemos se tudo o que fazemos tem uma causa.
DANIEL: Sim, concordo. O determinismo e a
responsabilidade moral são incompatíveis. Uma pessoa não pode consistentemente
acreditar nas duas. Mas isso não constitui um problema para o determinista a
não ser que existam razões decisivas para se pensar que nós sejamos de facto
moralmente responsáveis por aquilo que fazemos.
LÁZARO: Não, não podemos fazer isso, porque há razões
decisivas para acreditar na responsabilidade moral.
DANIEL: A minha resposta a isso é dizer que os
indícios a favor do determinismo são tão fortes que devemos acreditar nele
mesmo que isso signifique negar a responsabilidade moral. Aquilo que pensas
serem boas razões para acreditar na responsabilidade moral na realidade não são
boas razões, porque os indícios a favor do determinismo mostra que não somos
moralmente responsáveis por coisa alguma que fazemos.
LÁZARO: Isso é, certamente, uma posição extrema. Vai
contra aquilo em que quase todas as pessoas acreditam acerca da natureza
humana, e vai contra factos claros e evidentes que mostram que somos moralmente
responsáveis.
DANIEL: A que factos é que te referes?
LÁZARO: Refiro-me ao louvor, à censura, à recompensa,
ao castigo, à culpa, ao remorso, ao sistema de justiça criminal e à moralidade.
Tudo isto pressupõe que sejamos moralmente responsáveis por aquilo que fazemos.
DANIEL: Não, isso não está pressuposto. Tudo isso faz
sentido mesmo que tudo aquilo que nós fazemos seja causado por acontecimentos
sobre os quais não temos controlo e mesmo que não sejamos moralmente
responsáveis por nada daquilo que fazemos.
LÁZARO: Não vejo como é que isso possa ser verdadeiro.
Não faz sentido culpar ou punir alguém por uma certa acção a não ser que ele
seja moralmente responsável por essa mesma acção. E não faz sentido julgar as
acções de uma pessoa como certas ou como erradas, a não ser que ela tenha
controlo sobre essas mesmas acções. Como é que podes negar estas verdades
óbvias?
DANIEL: Não penso que sejam tão óbvias quanto isso. De
facto, penso que são falsas. Aquilo que se pretende ao culpabilizar e punir as
pessoas é dissuadi-las, de modo a que não prejudiquem outras pessoas, e
proteger as outras pessoas de serem prejudicadas. Mais: a moralidade não é nada
mais do que um sistema de preferências e de não-preferências (prazer, desejos e
aversões). Uma vez que a persuasão, a protecção, as preferências e as
não-preferências são todas compatíveis com o determinismo e com a negação da
responsabilidade moral, segue-se que a culpa, a punição e a moralidade são
todos compatíveis com o determinismo e com a negação da moralidade.
LÁZARO: Podes explicar isso mais detalhadamente?
Culpa e castigo
DANIEL: Sim. Começo com o primeiro ponto. Quando
culpamos alguém por essa pessoa ter feito algo de errado, ou quando castigamos
alguém por ter infringido a lei, fazemo-lo porque queremos, por um lado,
impedir que essa pessoa o volte a fazer e, por outro, porque queremos impedir
que outras pessoas façam o mesmo. Quando elogiamos alguém por ter feito algo de
bom ou o recompensamos por ter feito algo de benéfico para a sociedade,
fazemo-lo porque queremos encorajá-lo, a ele e aos outros, a fazer o mesmo.
Estes motivos são a razão pela qual julgamos as pessoas que infringiram a lei;
e são a razão pela qual educamos os nossos filhos e os elogiamos as suas boas
acções.
LÁZARO: Como é que isso refuta a minha afirmação de
que a culpa e o castigo só fazem sentido se as pessoas forem moralmente
responsáveis por aquilo que fazem?
DANIEL: Encorajar as pessoas para agir de um certo
modo, tentar modificar os seus padrões de comportamento, e impedi-los de magoar
as outras pessoas, não pressupõe que as pessoas sejam moralmente responsáveis
por aquilo que fazem. Estas acções pressupõem apenas que há uma forte
probabilidade de que o sujeito a quem elas se dirigem seja forçado a agir de
outro modo. É por isso que é não de todo absurdo culpar uma pessoa pelos seus
delitos, e é por isso que é absurdo culpar uma pedra por ter partido uma
janela, apesar de nem a pessoa nem a pedra serem moralmente responsáveis por
aquilo que fazem. Tudo o que isto significa é que a culpa, o elogio, e o
castigo fazem sentido mesmo que tudo aquilo que fazemos seja causado por
acontecimentos sobre os quais nós não temos controlo, e mesmo que nós não
sejamos seres moralmente responsáveis.
LÁZARO: Parece-me que discordarias da estratégia de
Clarence Darrow de utilizar o determinismo para tentar salvar os seus clientes
de serem enforcados.
DANIEL: Claro, tens razão. Ainda que concorde com a
crença de Darrow no determinismo, eu não penso que o determinismo possa ser
usado como uma desculpa para evitar a culpa e o castigo.
LÁZARO: Concordo contigo quando afirmas que utilizamos
a culpa e o castigo para fazer as pessoas mudar o seu comportamento e para
proteger as outras pessoas do mal que lhes possa ser infligido. Mas, se isso é
tudo o que queremos fazer quando culpamos e castigamos as pessoas, então penso
que te esqueces de uma condição crucial para a legitimação do seu uso.
DANIEL: A que condição te referes?
LÁZARO: A condição que nos diz que uma pessoa deve ser
culpada e condenada por uma determinada acção apenas se a puder evitar. Supõe,
por exemplo, que uma pessoa é forçada, porque tem uma arma apontada à cabeça, a
conduzir o carro da fuga de um assalto a um banco. Ou supõe que uma pessoa,
acidentalmente, tropeça noutra e que esta, em resultado do choque, parte um
braço. Em nenhum destes casos a pessoa poderia evitar a sua acção. Por
conseguinte, em nenhum dos casos seria legítimo culpar essa pessoa e afirmar
que o que ela fez é moralmente condenável. Nem seria legítimo acusar a pessoa
do primeiro exemplo por cumplicidade no assalto a um banco, assim como não
seria legítimo acusar a segunda pessoa de agressão. Esta condição é tão
amplamente aceite que qualquer concepção de culpa e castigo que a negue deve
ser seriamente questionada. Deves notar, também, que a condição da acção
evitável torna a culpa e a punição incompatíveis com o determinismo. Se o
determinismo fosse verdadeiro, então nada daquilo que fazemos poderia ser
diferente; tudo aquilo que fazemos teria de ser feito e não poderia ser
evitado. Assim, se o determinismo fosse verdadeiro, a culpabilização e o
castigo deveriam ser abandonados uma vez que violariam o requisito da acção
evitável.
DANIEL: Concordo contigo quando dizes que o
determinismo implica que nada daquilo que fazemos pode ser evitado. Mas isto
não significa que a culpa e o castigo deveriam ser abandonadas, e isto porque o
princípio da acção evitável não é um requisito necessário para legitimar a
culpa e o castigo. Os únicos requisitos são os seguintes: que o comportamento
em questão seja indesejável; e que a culpabilização ou a punição ajudem a
prevenir esse tipo de comportamento. Estes requisitos não são satisfeitos nos
teus dois exemplos, e não o são porque em nenhum dos casos a culpabilização e o
castigo ajudam a prevenir as pessoas de fazerem essas coisas. Por exemplo, nós
não punimos alguém que, acidentalmente, tropeça e derruba outra pessoa,
precisamente porque a culpabilização a e a punição não o impediriam, a ele ou a
qualquer outra pessoa, de tropeçar novamente. Por contraste, a culpabilização e
o castigo impediriam as pessoas de, deliberadamente, derrubar outras pessoas...
LÁZARO: O que pensas disto tudo Carolina?
Será o determinismo compatível com a responsabilidade
moral?
CAROLINA: Penso que não é necessário, para defender o
determinismo, afirmar tudo aquilo que o Daniel diz. Julgo que uma pessoa pode acreditar
no determinismo, como eu acredito, sem ter de negar a responsabilidade moral,
como faz o Daniel.
LÁZARO: É um ponto de vista interessante.
CAROLINA: Concordo com o Daniel quando ele afirma que
os indícios a favor do determinismo são de tal modo fortes que temos de
acreditar que o determinismo é verdadeiro. E concordo contigo, Lázaro, quando
dizes que a legitimidade da culpa, do castigo e da moralidade mostra que somos
responsáveis por aquilo que fazemos. Nem o determinismo, nem a responsabilidade
moral podem ser negados sem que se neguem também factos evidentes.
LÁZARO: Depreendo que acreditas que a responsabilidade
moral é compatível com o determinismo, certo?
CAROLINA: Sim. Uma pessoa pode acreditar em ambas sem
se contradizer.
LÁZARO: Gostaria que te explicasses melhor, pois
parece-me haver aí uma contradição. O determinismo implica que as pessoas não
podem agir de modo diferente daquele que agem, e a responsabilidade moral
pressupõe que as pessoas podem agir de forma diferente daquela que de facto
agem.
CAROLINA: Concordo contigo quando dizes que a
responsabilidade moral pressupõe que as pessoas podem agir de modo diferente,
mas não penso que essa possibilidade entre em conflito com o determinismo. O
que queremos dizer quando afirmamos que podemos agir de modo diferente daquele
que realmente agimos é apenas que nenhuma pessoa ou circunstância nos força a
agir ou nos impede de fazer algo diferente. Mesmo que as nossas acções sejam
causadas pelas nossas crenças, desejos ou escolhas, isto não significa que a
tal tenhamos sido forçados.
LÁZARO: Por que é que defines "a capacidade de
agir de outro modo" dessa forma?
CAROLINA: Defino-a assim porque é assim que,
normalmente, a entendemos. Por exemplo, um assaltante de um banco que poderia
não ter assaltado o banco é alguém que não foi forçado agir dessa maneira... É
este sentido típico da "capacidade de agir de outro modo" que é
necessário para haver responsabilidade moral e que é compatível com o
determinismo.
LÁZARO: Podes explicar isso melhor?
CAROLINA: Claro. As nossas acções podem ser causadas
pelas nossas crenças, desejos e escolhas e, ao mesmo tempo, não serem forçadas
por nenhuma pessoa ou circunstância. O exemplo do ladrão de bancos é
esclarecedor. Ele poderia não ter assaltado o banco uma vez que ninguém o
forçou a isso, no entanto, a acção de assaltar o banco foi causada pela sua
crença de que poderia escapar e pelo seu desejo de ficar rico. Ele é moralmente
responsável por aquilo que fez, ainda que a sua acção tenha sido causada...
Clifford Williams
Tradução e
adaptação de Luís Filipe Bettencourt.
Texto retirado de Free Will and Determinism, de Clifford Williams (Hackett, 1980, pp. 1-8,
30-32).
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