O que é a filosofia? Esta é uma questão notoriamente difícil. Uma das formas mais fáceis de responder é dizer que a filosofia é aquilo que os filósofos fazem, indicando de seguida os textos de Platão, Aristóteles, Descartes, Hume, Kant, Russell, Wittgenstein, Sartre e de outros filósofos famosos. Contudo, é improvável que esta resposta possa ser realmente útil se o leitor está a começar agora o seu estudo da filosofia, uma vez que, nesse caso, não terá provavelmente lido nada desses autores. Mas mesmo que já tenha lido alguma coisa, pode mesmo assim ser difícil dizer o que têm em comum, se é que existe realmente uma característica relevante partilhada por todos. Outra forma de abordar a questão é indicar que a palavra «filosofia» deriva da palavra grega que significa «amor da sabedoria». Contudo, isto é muito vago e ainda nos ajuda menos do que dizer apenas que a filosofia é aquilo que os filósofos fazem. Precisamos por isso de alguns comentários gerais sobre o que é a filosofia.
A filosofia é uma actividade: é uma forma de pensar acerca de certas questões. A sua característica mais marcante é o uso de argumentos lógicos. A actividade dos filósofos é, tipicamente, argumentativa: ou inventam argumentos, ou criticam os argumentos de outras pessoas ou fazem as duas coisas. Os filósofos também analisam e clarificam conceitos. A palavra «filosofia» é muitas vezes usada num sentido muito mais lato do que este, para referir uma perspectiva geral da vida ou para referir algumas formas de misticismo. Não irei usar a palavra neste sentido lato: o meu objectivo é lançar alguma luz sobre algumas das áreas centrais de discussão da tradição que começou com os gregos antigos e que tem prosperado no século XX, sobretudo na Europa e na América.
Que tipo de coisas discutem os filósofos desta tradição? Muitas vezes, examinam crenças que quase toda a gente aceita acriticamente a maior parte do tempo. Ocupam-se de questões relacionadas com o que podemos chamar vagamente «o sentido da vida»: questões acerca da religião, do bem e do mal, da política, da natureza do mundo exterior, da mente, da ciência, da arte e de muitos outros assuntos. Por exemplo, muitas pessoas vivem as suas vidas sem questionarem as suas crenças fundamentais, tais como a crença de que não se deve matar. Mas por que razão não se deve matar? Que justificação existe para dizer que não se deve matar? Não se deve matar em nenhuma circunstância? E, afinal, que quer dizer a palavra «dever»? Estas são questões filosóficas. Ao examinarmos as nossas crenças, muitas delas revelam fundamentos firmes; mas algumas não. O estudo da filosofia não só nos ajuda a pensar claramente sobre os nossos preconceitos, como ajuda a clarificar de forma precisa aquilo em que acreditamos. Ao longo desse processo desenvolve-se uma capacidade para argumentar de forma coerente sobre um vasto leque de temas - uma capacidade muito útil que pode ser aplicada em muitas áreas.
A filosofia e a sua história
Desde o tempo de Sócrates que surgiram muitos filósofos importantes. Já referi alguns no primeiro parágrafo. Um livro de introdução à filosofia poderia abordar o tema historicamente, analisando as contribuições desses grandes filósofos por ordem cronológica. Mas não é isso que farei neste livro. Ao invés, abordarei o tema por tópicos: uma abordagem centrada em torno de questões filosóficas particulares e não na história. A história da filosofia é, em si mesma, um assunto fascinante e importante; muitos dos textos filosóficos clássicos são também grandes obras de literatura: os diálogos socráticos de Platão, as Meditações, de Descartes, a Investigação sobre o Entendimento Humano, de David Hume e Assim Falava Zaratustra, de Nietzsche, para citar só alguns exemplos, são todas magníficos exemplos de boa prosa, sejam quais forem os padrões que usemos. Apesar de o estudo da história da filosofia ser muito importante, o meu objectivo neste livro é oferecer ao leitor instrumentos para pensar por si próprio sobre temas filosóficos, em vez de ser apenas capaz de explicar o que algumas grandes figuras do passado pensaram acerca desses temas. Esses temas não interessam apenas aos filósofos: emergem naturalmente das circunstâncias humanas; muitas pessoas que nunca abriram um livro de filosofia pensam espontaneamente nesses temas.
Qualquer estudo sério da filosofia terá de envolver uma mistura de estudos históricos e temáticos, uma vez que se não conhecermos os argumentos e os erros dos filósofos anteriores não podemos ter a esperança de contribuir substancialmente para o avanço da filosofia. Sem algum conhecimento da história, os filósofos nunca progrediriam: continuariam a fazer os mesmos erros, sem saber que já tinham sido feitos. E muitos filósofos desenvolvem as suas próprias teorias ao verem o que está errado no trabalho dos filósofos anteriores.
A filosofia é uma actividade: é uma forma de pensar acerca de certas questões. A sua característica mais marcante é o uso de argumentos lógicos. A actividade dos filósofos é, tipicamente, argumentativa: ou inventam argumentos, ou criticam os argumentos de outras pessoas ou fazem as duas coisas. Os filósofos também analisam e clarificam conceitos. A palavra «filosofia» é muitas vezes usada num sentido muito mais lato do que este, para referir uma perspectiva geral da vida ou para referir algumas formas de misticismo. Não irei usar a palavra neste sentido lato: o meu objectivo é lançar alguma luz sobre algumas das áreas centrais de discussão da tradição que começou com os gregos antigos e que tem prosperado no século XX, sobretudo na Europa e na América.
Que tipo de coisas discutem os filósofos desta tradição? Muitas vezes, examinam crenças que quase toda a gente aceita acriticamente a maior parte do tempo. Ocupam-se de questões relacionadas com o que podemos chamar vagamente «o sentido da vida»: questões acerca da religião, do bem e do mal, da política, da natureza do mundo exterior, da mente, da ciência, da arte e de muitos outros assuntos. Por exemplo, muitas pessoas vivem as suas vidas sem questionarem as suas crenças fundamentais, tais como a crença de que não se deve matar. Mas por que razão não se deve matar? Que justificação existe para dizer que não se deve matar? Não se deve matar em nenhuma circunstância? E, afinal, que quer dizer a palavra «dever»? Estas são questões filosóficas. Ao examinarmos as nossas crenças, muitas delas revelam fundamentos firmes; mas algumas não. O estudo da filosofia não só nos ajuda a pensar claramente sobre os nossos preconceitos, como ajuda a clarificar de forma precisa aquilo em que acreditamos. Ao longo desse processo desenvolve-se uma capacidade para argumentar de forma coerente sobre um vasto leque de temas - uma capacidade muito útil que pode ser aplicada em muitas áreas.
A filosofia e a sua história
Desde o tempo de Sócrates que surgiram muitos filósofos importantes. Já referi alguns no primeiro parágrafo. Um livro de introdução à filosofia poderia abordar o tema historicamente, analisando as contribuições desses grandes filósofos por ordem cronológica. Mas não é isso que farei neste livro. Ao invés, abordarei o tema por tópicos: uma abordagem centrada em torno de questões filosóficas particulares e não na história. A história da filosofia é, em si mesma, um assunto fascinante e importante; muitos dos textos filosóficos clássicos são também grandes obras de literatura: os diálogos socráticos de Platão, as Meditações, de Descartes, a Investigação sobre o Entendimento Humano, de David Hume e Assim Falava Zaratustra, de Nietzsche, para citar só alguns exemplos, são todas magníficos exemplos de boa prosa, sejam quais forem os padrões que usemos. Apesar de o estudo da história da filosofia ser muito importante, o meu objectivo neste livro é oferecer ao leitor instrumentos para pensar por si próprio sobre temas filosóficos, em vez de ser apenas capaz de explicar o que algumas grandes figuras do passado pensaram acerca desses temas. Esses temas não interessam apenas aos filósofos: emergem naturalmente das circunstâncias humanas; muitas pessoas que nunca abriram um livro de filosofia pensam espontaneamente nesses temas.
Qualquer estudo sério da filosofia terá de envolver uma mistura de estudos históricos e temáticos, uma vez que se não conhecermos os argumentos e os erros dos filósofos anteriores não podemos ter a esperança de contribuir substancialmente para o avanço da filosofia. Sem algum conhecimento da história, os filósofos nunca progrediriam: continuariam a fazer os mesmos erros, sem saber que já tinham sido feitos. E muitos filósofos desenvolvem as suas próprias teorias ao verem o que está errado no trabalho dos filósofos anteriores.
WARBURTON, Nigel, Elementos Básicos de Filosofia, 1ª edição, 1998. Lisboa: Gradiva, pp. 19-27
1 comentário:
aCREDITO QUE CONTRIBUIRÁ PARA TODOS AQUELES QUE GOSTAM DE FILOSOFIA, UMA CÓPIA FIEL:
A noção de Filosofia em:
ABBAGNANO, Nicola, 1901 –
A112d Dicionário de Filosofia/ Nicola Abbagnano; 2ª edição[tradução coordenada e ver. Por Alfredo Bosi, com a colaboração de Maurício Conio...et al.].
- 2. edição – São Paulo: Mestre Jou, 1962.
(Páginas – 420 a 434):
FILOSOFIA (Grego: Φιλοσοφία; latim: Philosophia; ingles: Philosophy; franc. Philosophie; alemão: Philosophie):
A disparidade das Filosofias tem por reflexo, obviamente, a disparidade de significações de “F”, sem que isto impeça contudo reconhecer nas mesmas algumas constantes. Delas, a que melhor se presta para relacionar e articular os diferentes significados de termo é a definição comentada no Eutidemo platônico: a F. é o uso do saber em proveito do homem. Platão observa que de nada serviria possuir a capacidade de transformar as pedras em ouro a quem não soubesse valer-se do outro, de nada serviria uma ciência que tornasse imortal a quem não soubesse servir-se da imortalidade e assim por diante. É necessária, portanto, uma ciência em que coincidam fazer e saber valer-se daquilo que se faz, e esta ciência é a F. (Eudit., 288 e 290 d). Segundo esse conceito, a F. implica: 1º a posse ou a aquisição de um conhecimento que seja ao mesmo tempo o mais válido e o mais extenso possível; 2º o uso desse conhecimento em benefício do homem. Esses dois elementos recorrem freqüentemente nas definições que foram dadas de F. em épocas diversas e sob diferentes pontos de vista. Eles são reconhecíveis, por exemplo, na definição de Descartes, segundo a qual “esta palavra significa o estudo da sabedoria, e por sabedoria não se entende somente a prudência nos negócios, mas um perfeito conhecimento de todas as coisas que o homem pode conhecer, quer para a conduta de sua vida, quer para a conservação de sua saúde e a invenção de todas as artes” (Princ. Phil., Pref.). Encontram-se igualmente na definição de Hobbes, segundo a qual a F. é de um lado o conhecimento causal, de outro a utilização desse conhecimento em benefício do homem (De Corp., 1, § 2, 6); e a de Kant que define o conceito cósmico da F. (isto é, aquele conceito da mesma que interessa necessariamente a todos os homens) como o de “uma ciência da relação de todo conhecimento com a finalidade essencial da razão humana” (Crít. R. Pura, Doutr. Transc. Do método, cap. III). Essa finalidade essencial é a “felicidade universal”: a F. portanto, “refere tudo à sabedoria mas através da ciência” (Ibid., in fine”. Não tem significação diferente a definição de F. dada por Dewey como “crítica dos valores”, isto é, “crítica das crenças, das instituições, dos costumes, das políticas, com relação a seu alcance sobre os bens” (Experience and Nature, pág. 407). Estas definições (que aqui são citadas apenas como exemplos) deixam-se reduzir todas à fórmula platônica que citamos no início. Aquela fórmula tem a vantagem de não estabelecer nada acerca da natureza e dos limites do saber accessível ao homem ou acerca dos objetivos para os quais ele pode ser dirigido. Pode-se entender aquele conhecimento, portanto, quer como revelação ou posse, quer como aquisição ou busca; e seu uso pode ser entendido como orientado para a salvação ultraterrena ou terrena do homem, como orientado para a aquisição de bens espirituais ou materiais, ou para a realização de correções ou mudanças no mundo. Portanto aquela fórmula revela-se
igualmente apta e exprimir as diferentes tarefas que a F. se arrogou na sua história. E, por exemplo, ela exprime igualmente bem, de um lado a tarefa das F. positivas ou dogmáticas e de outro a das F. negativas ou cépticas. Quando o cepticismo antigo se propõe realizar a imperturbabilidade da alma pela suspensão do assentimento (SEXTO E., Hip. Pirr., I, 25-27), não faz senão entender a F. como uso de um determinado conhecimento para conseguir uma vantagem. Analogamente, quando na F. contemporânea, Wittgenstein afirma que o alvo da F. é fazer desaparecer os próprios problemas filosóficos, e eliminar a própria F. ou “curar-nos” dela (Philosophical Investigations, § 133) não apela para outro conceito diferente de F.: a libertação da F. é a vantagem que o uso do saber (que é neste caso a retificação lingüística deste) pode proporcionar.
Os dois elementos que se podem distinguir na definição de F., que foi julgada capaz de apresentar o quadro das principais articulações dos significados do termo, constituem por si mesmos a primeira de tais articulações. Por outra, podem-se distinguir os significados historicamente dados do termo: 1º com relação à natureza e à validez do conhecimento ao qual a F. se refere; 2º com relação à natureza do alvo ao qual a F. pretende dirigir o uso desse saber. Finalmente, 3º podem-se distinguir os significados do termo em face da natureza do procedimento que se julga próprio da filosofia.
I. A filosofia e o saber – O uso do saber ao qual o homem, de qualquer modo, tem acesso é, em primeiro lugar, um juízo sobre a origem ou a validade de tal saber. E a propósito do juízo sobre a validade do saber, surgem imediatamente duas alternativas fundamentais que estabelecem a origem divina do saber: ele é para o homem uma revelação ou presente. A segunda alternativa estabelece a origem humana do saber: ele é uma aquisição ou uma produção do homem. A primeira alternativa é a mais antiga e a mais freqüente no mundo, uma vez que ela prevalece amplamente nas filosofias orientais. A Segunda alternativa é a que surgiu na Grécia e de que o mundo moderno é herdeiro.
A) Segundo a primeira alternativa, o saber é uma revelação ou iluminação divina, dada como privilégio a um ou mais homens, e transmitida por tradição num grupo também privilegiado de homens (casta, seita ou igreja). Portanto, ele não é acessível ao mortal comum, a não ser através daqueles que são seus depositários; e não é possível aos mortais, comuns e não comuns, aumentar seu patrimônio ou julgar sua validade. Faz parte integrante desta interpretação da origem do saber a crença de que também seu uso em benefício do homem – benefício que é neste caso a “salvação” – é ditado ou prescrito pela revelação ou iluminação divina. Portanto, esta interpretação parece eliminar ou tornar supérfluo o “trabalho” filosófico, que se refere precisamente a esse uso. Mas na prática isso acontece raramente. A necessidade de aproximar a verdade revelada da compreensão humana comum, de adaptá-la às circunstâncias e de fazer com que ela atenda aos problemas novos ou mudados que os homens se propõem, de defendê-la de negações, desvios, incredulidades declaradas ou ocultas, faz com que o trabalho filosófico encontre, neste conceito do saber, um vasto campo para desenvolver-se e tarefas multiformes para enfrentar. Contudo, tal trabalho permanece subordinado e ancilar: não é nem pode ser decisivo, quando se trata das interpretações fundamentais e das instâncias últimas. Ele encontra na revelação e na tradição limites intransponíveis que lhe proíbem qualquer possibilidade de desenvolvimento, nas direções diferentes das que elas determinam. Não pode combater e destruir as crenças estabelecidas, opor-se frontalmente à tradição, promover ou planejar transformações radicais. Sua função é conservar as crenças estabelecidas, não renová-las ou aperfeiçoá-las; é portanto uma função subordinada e instrumental, destruída de autonomia e da dignidade de uma força diretriz.
Já se disse que quase todas as F. orientais são dessa natureza: o que fez por vezes duvidar de que possam ser chamadas de filosofias. Mas na verdade, também o mundo ocidental oferece freqüentemente exemplos de F. desse tipo, ainda que nenhuma delas apresente em todo o seu rigorismo os caracteres que acabam de ser expostos. Com base no nome do mais importante desses exemplos, as formas que este tipo de F. assumiu no mundo ocidental pode ser chamadas escolásticas. Uma escolástica, à diferença de uma filosofia de puro tipo orienta, pressupõe uma F. autônoma e serve-se dela. Mas serve-se dela para a defesa e ilustração de uma verdade religiosa. Isto é, para confirmar ou defender crenças cuja validade se julga estabelecida de antemão e independentemente de toda confirmação ou defesa. Uma escolástica, como a própria palavra diz, é essencialmente um instrumento de educação: serve para aproximar o homem, na medida do possível, de um saber considerado como imutável em suas linhas fundamentais, e portanto não susceptível de ser aperfeiçoado ou renovado. Entre [PAGINA 421]
as tarefas – ainda assim múltiplas, como são múltiplas as vias de acesso do homem à verdade, e os obstáculos encontrados nestas vias – que uma F. escolástica atribui a si mesma, não cabe o eventual abandono das crenças de que ela é intérprete. As seitas filosófico-religiosas do II século a. C. (por ex. os Essênios), as doutrinas de Fílon de Alexandria (I séc. d. C.) e de muitos Neoplatônicos, a F. islâmica e judaica, a Patrística e a Escolástica e ainda, no mundo modero, o ocasionalismo, o imaterialismo, a Direita hegeliana e boa parte do espiritualismo contemporâneo são escolásticas no sentido ora explicado: isto é, F. que consistem em utilizar determinadas doutrinas )o platonismo, o aristotelismo, o cartesianismo, o empirismo, o idealismo ect.) para a interpretação de crenças que não podem ser postas em dúvida, ser corrigidas ou negadas por meio desse trabalho. Certamente, essas diferentes escolásticas possuem graus diferentes de liberdade e tais graus variam às vezes, para cada uma delas, de uma época para outra. Por exemplo, S. Tomás, embora atribua à “F. humana” uma certa autonomia na medida em que reconhece como própria dela a consideração e o estudo das coisas criadas como tais, isto é, sua natureza e suas próprias causas (Contra Gent. II, 4), julga todavia impossível que ela possa contradizer as afirmações da fé cristã a qual deve ser tomada como regra do procedimento correto da razão (Ibid., I, 7). Ainda que as F. deste tipo possam conseguir resultados importantes, que passam a fazer parte do patrimônio filosófico comum, seu campo é rigidamente limitado pelo problema em torno do qual elas giram, da defesa de crenças tradicionais: suas possibilidades não se estendem à correção e renovação de tais crenças.
B) Para a Segunda alternativa, o saber é uma aquisição ou uma produção do homem. O fundamento desta concepção é que o homem é um “animal racional” e que portanto “todos os homens, como diz Aristóteles, no início da Metafísica (980 a 21), tendem por natureza ao saber”: tendem quer dizer que não somente o desejam, mas ainda podem alcançá-lo. O saber, sob esse ponto de vista, não é privilégio ou patrimônio reservado a poucos: qualquer um pode contribuir para sua aquisição e para seu enriquecimento e tem por isso voz ativa para julgá-lo: isto é, para aprová-lo ou rejeitá-lo. Sob esse ponto de vista, a tarefa fundamental da F. é a busca e a organização do saber. Quando Tucídides (II, 40) faz dizer a Péricles: “Nós amamos o belo com moderação e filosofamos sem timidez” exprime certamente a atitude e o espírito grego de que nasceu a F. nesta Segunda conotação do termo. Péricles não fazia alusão a uma disciplina específica, mas à busca do saber conduzida sem compromissos de preconceitos ou com um único compromisso: experimentar e pôr à prova toda crença possível. Neste sentido, a F. é uma criação original do espírito grego e uma condição permanente da cultura ocidental. Ela é o compromisso pelo qual qualquer pesquisa, realizada em qualquer domínio, obedece somente às limitações ou às regras que ela mesma reconhece como válidas em função de suas possibilidades ou de sua eficácia em descobrir ou em plasmar. A F. neste sentido opõe-se à tradição, ao preconceito, ao mito, em geral à crença infundada que os gregos chamavam de opinião. A diferença entre opinião e ciência, entre amor da opinião e amor da sabedoria, é aquela em que Platão insiste mais freqüentemente ao esclarecer o conceito de F. (Rep. V, 480 a). A F. como pesquisa é oposta por Platão de um lado à ignorância, de outro à sabedoria. A ignorância é a ilusão da sabedoria e destrói o incentivo da pesquisa (Conv., 204 a). Por outro lado a sabedoria, que é a posse da ciência, torna inútil a pesquisa: os Deuses não filosofam (Ibid. 204 a; Teet., 278 d). A pesquisa define o situs próprio da filosofia. Já Heráclito dissera: “É necessário que os homens filósofos sejam bons pesquisadores de muitas coisas” (Fr., 35 Diels). Enquanto pesquisa, a F. é “aquisição” como dizia Platão (Eudit., 288 d), ou “esforço”, como diziam os Edtóicos (SEXTO EMPÍRICO, Adv. Math, IX, 13), ou “atividade”, como diziam os Epicuristas (Ibid., XI, 169).
Mas se a F. é o compromisso que faz do saber uma pesquisa, ela condiciona o saber efetivo, que é “conhecimento” ou “ciência”. No juízo que a própria filosofia emite sobre ele, este condicionamento pode assumir três formas que definem três concepções fundamentais da F., a metafísica, a positivista e a crítica. 1ª para a primeira delas, a F. é o único saber possível, e as outras ciências enquanto tais, coincidem com ela ou são partes ou preparação dela; 2ª para a segunda delas, o conhecimento é próprio das ciências particulares, e a F. tem por tarefa coordenar e unificar seus resultados; 3ª para a terceira delas, a F. é julgamento sobre o saber, isto é. Avaliação de suas possibilidades e de seus limites, em vista de seu uso humano.
1ª A primeira concepção da F. é a metafísica, que dominou na antigüidade e na Idade Média, e que até hoje distingue muitas orientações filosóficas. A sua característica principal é a negação de qualquer possibilidade de pesquisa autônoma fora da Filosofia. Um conhecimento ou é conhecimento filosófico ou não é conhecime-
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nto de modo algum. Admite-se muitas vezes que exista, fora da F., um saber imperfeito, provisório e preparatório; mas nega-se que tal saber possua por si validade cognoscitiva. Assim, Platão de um lado chama “F.” a geometria e as outras ciências, especialmente com referência à sua função educativa (Teet., 143 d; Tim., 88 c), por outro lado considera tais ciências (aritmética e geometria, astronomia e música) como simplesmente propedêuticas para a F. propriamente dita, isto é, para a dialética, que teria, além do mais, a tarefa de “descobrir a comunicação e o parentesco recíproco das ciências e demonstrar as razões pelas quais estão ligadas umas às outras” (REP., VII, 561 d). Aristóteles define a F. como a “ciência da verdade” (Met., II, 1, 993 b 20) no sentido de que ela compreende todas as ciências teoréticas, isto é, a F. primeira, a matemática e a física, e exclui de si somente a atividade prática: mas também esta deve recorrer à F. para esclarecer sua própria natureza e seus próprios fundamentos. Tanto Platão como Aristóteles admitem como ciência primeira uma disciplina determinada que para Plantão é a dialética, para Aristóteles a F. primeira ou teologia; mas esta disciplina determinada é para eles também a mais geral. Com efeito a dialética permitia, conforme se viu, compreender a ligação e a natureza comum das ciências; e a F. primeira, como ciência do ser enquanto ser, tem por objetivo específico aquela essência necessária ou substância, que é tarefa de cada ciência indagar em seu campo particular (De part. Anim., I, 5, 645 a 1); Outras vezes, pelo contrário a F. resolve-se nas disciplinas particulares, sem que nenhuma delas resulte ser privilegiada. Assim faziam os Epicuristas, que a dividiam em canônica, física e ética (DIÓG, L, X, 29-30); e o s Estóicos, que a dividiam em lógica, física e ética (AÉCIO, Plac., I, 2), considerando essas três partes como unidas entre si à maneira dos membros de um animal (DIÓG. L. VII, 40).
Esta concepção, que identifica o saber integral com a F. e se recusa a reconhecer que haja ou possa haver um saber autêntico fora dela, sobreviveu também à constituição das ciências particulares como disciplinas autônomas e conservou-se substancialmente inalterada, em certas doutrinas filosóficas, até nossos dias. A definição que Fichte deu da F. como uma “ciência da ciência em geral” (Uber den Begriff der Wissenschaftslehre oder der sogernannlen Philosophie, 1794, § 1) não deixa qualquer autonomia às ciências particulares uma vez que, segundo aquela definição, a doutrina da ciência “deve dar sua forma não somente a si mesma mas também a todas as outras ciências possíveis” e constituir assim o “sistema acabado e único do espírito humano” (Ibid., § 2). Essa pretensão manteve-se inalterada em todas as definições que o idealismo romântico deu da filosofia. Não é outro o significado das notações de Schelling, segundo o qual a tarefa da F. é esclarecer a concordância (que finalmente é identidade) do objetivo e do subjetivo, isto é, da natureza do espírito e cumprir assim a “tendência necessária de todas as ciências naturais” (System des transzendentalen Idealismus, 1800, Intr., § 1). Explicitamente Hegel afirmaria que “ as ciências particulares se ocupam dos objetos finitos e do mundo dos fenômenos” (Geschichte der Philosophie, Intr., A, § 2; trad. Ital., I pág. 69); e que “outra coisa são o processo de origem e os trabalhos preparatórios de uma ciência, outra coisa a própria ciência” na qual eles desaparecem para serem substituídos pela “necessidade do conceito” (Enc., § 246). Isto quer dizer que só a F. é ciência porque ela somente demonstra “a necessidade do conceito”, utilizando e manipulando a seu modo (como Hegel realmente fez) o material levantado pelas chamadas ciências empíricas. Portanto Hegel reservava à F. o privilégio de ser a “consideração pensante dos objetos” (Ibid., § 1). É claro que, expresso desta maneira, o conceito de F. como totalidade do saber é uma profissão de arrogância filosófica, que inexistia nesse mesmo conceito na era clássica. Nessa eram, com efeito, aquele conceito agia como compromisso específico das disciplinas específicas científicas, que por ele eram introduzidas na esfera da pesquisa desinteressada, e eram encorajadas e apoiadas, no momento em que se constituíam, do ponto de vista conceptual. Mas na concepção do idealismo romântico, as ciências particulares são rebaixadas a uma função de mero trabalho braçal, destituído de qualquer validade intrínseca. A essa mesma função a ciência é reduzida quer pelo idealismo, quer pelo espiritualismo. A definição da F. como “teoria geral do espírito” leva Gentile a considerá-la como a consciência de que os conhecimentos empíricos, baseados na distinção do sujeito dos objetos entre si é uma falsa abstração (Teoria generale dello spirito, 1916, capítulo 15, § 2). E, não obstante a formulação menos
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berrante, a definição dada por Croce da F. como “metodologia da historiografia” implica a mesma arrogância filosófica. Para Croce o conhecimento histórico é o único conhecimento possível, sondo a história a única realidade: portanto, a redução da F. a metodologia de tal conhecimento eqüivale a negar que seja conhecimento o saber científico: o qual de fato, para Croce, não é um saber, mas um conjunto de recursos práticos (La storia, 1938, pág. 144; Lógica, 1908, I, cap. 2). Por outro lado, o espiritualismo contemporâneo segue em geral o mesmo caminho. Bergson faz da intuição o órgão da F. porque vê na intuição a “visão direta do espírito por parte do espírito” (La pensée et le mouvant, 3ª ed., 1934, pág. 51), isto é, o instrumento para atingir, imediata e infalivelmente, aquela “duração real” que é a realidade absoluta. O seu reconhecimento da ciência como conhecimento adequado ao mundo material ou das “coisas” é puramente fictício: nem a matéria nem as coisas têm para Bergson realidade como tais porque não são senão consciência e a consciência só pode ser autenticamente conhecida pela própria consciência: “Ao sondar sua própria profundidade, não penetra a consciência também no íntimo da matéria, da vida, da realidade em geral? Poder-se-ia contestá-lo somente se a consciência se somasse à matéria como um acidente, mas nós julgamos Ter mostrado que tal hipótese é absurda ou falsa conforme o lado pelo qual é considerada, contraditória em si mesma e desmentida pelos fatos” (Ibid., págs. 156-57). O conceito de F. como conhecimento privilegiado (seja qual for o ponto em que se baseia o privilégio) não é senão uma das tantas expressões do velho conceito de F. como saber único e absoluto. As tendências que se costumam chamar de “metafísicas” do pensamento moderno caracterizam-se precisamente por esse conceito de filosofia. Husserl expõe assim o ideal cartesiano da F. que ele declara fazer próprio: “Lembremos a idéia diretriz das Meditações de Descartes. Ela visa a uma reforma total da F. para fazer desta uma ciência de fundamentos absolutos. Isto implica, para Descartes, uma reforma paralela de todas as ciências, porque estas não são senão membros de uma ciência universal que não é senão a própria filosofia. Somente na unidade sistemática desta, elas podem verdadeiramente tornar-se ciências” (Carl. Med.,1931, § 1). Em sua última obra, Husserl estabelecia como primeira condição da filosofia: “uma ‘epoché’ de qualquer empréstimo das noções das ciências objetivas, de qualquer tomada de posição crítica em torno da verdade ou falsidade da ciência, uma ‘epoché’ até da idéia diretriz da ciência, da idéia de um conhecimento objetivo do mundo” (Krisis, § 35).
Na mesma negação da ciência vão dar, não obstante o amplo reconhecimento da validade do método científico, as considerações de Jaspers sobre a natureza da F., uma vez que negam autonomia de estrutura e de validade nas ciências particulares (Phil., § I, págs. 53 e segs.; Existenzphil., 1938, Intr.). Uma desvalorização ainda mais radical das ciências particulares é realizada por Heidegger, para quem os pressupostos da ciência moderna são o esquecimento do ser, a redução do homem a sujeito e do mundo a representação (Brief uber den “Humanismus”, em Platos Lehre von der Wahrheit, 1947, pág. 88).
2ª A Segunda concepção de F. como juízo sobre o conhecimento é a que tende a resolvê-la nas ciências particulares, confiando-lhe às vezes a função específica de unificar as próprias ciências ou de recolher seus resultados numa “visão do mundo”. A origem desta concepção pode ser vista em Bacon; o qual concebeu a F. como uma ciência em primeiro lugar dividiria e classificaria as ciências particulares e depois faria com que tais ciências se apropriassem de um método característico delas, do material a aproveitar e das técnicas necessárias para usar esse material em proveito do homem. Em De Dignitate et Augmentis scientiarum (1623), esboçando o plano de uma enciclopédia das ciências em bases experimentais, Bacon atribuía à “F. primeira”, por ele considerada com o “ciência universal e mãe das outras ciências” a tarefa de reunir “os axiomas que são próprios das ciências particulares mais comuns a várias ciências” (De Augm Scient., III, 1). Hobbes, por sua vez identificava a F. com o conhecimento científico. “A F., diz ele, é o conhecimento adquirido através do raciocínio correto, dos efeitos ou fenômenos, a partir de suas causas ou origens; ou reciprocamente, o conhecimento adquirido das origens possíveis a partir dos efeitos conhecidos” (De Corp., 1, § 2). Deste conceito de F., que coincide com o conhecimento científico, e como preocupação de esclarecê-lo e entendê-lo, derivou aquele sentido inglês do termo para o qual já Hegel chamava atenção (Enc., § 7 e nota; Geschichte der Phil., Intr., A, 2; trad. Ital., I, pág. 70) segundo o qual o termo não se aplicava somente à ciência da natureza, mas ainda a certos instrumentos como termômetros, barômetros etc., além dos princípios gerais da política: uso este, que se conservou nos países anglo-saxônicos. Para o próprio Descartes, a F. compreendia “tudo aquilo que o espírito humano pode saber” e assim vinha a coincidir em grande medida
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com as pesquisas científicas, que aliás Descartes queria fossem reconduzidas a certos princípios fundamentais. (Princ. Phil., Pref.). Todo o Iluminismo participou do conceito de filosofia como conhecimento científico. “Filósofo, amante da sabedoria, isto é, da verdade”, dizia Voltaire, (Dict. Phil., art. Philosophe). E o próprio Wolff admitia, ao lado das ciências “racionais” em que dividia a F., ciências empíricas correspondentes, dotadas de um método autônomo, que é o experimental. Por exemplo. Ao lado da cosmologia geral ou científica, Wolff admite uma cosmologia experimental “que tira das observações a teoria que é estabelecida ou deve ser estabelecida na cosmologia científica” (Cosm., § 4); e reconhece que é possível, embora não fácil, que toda a teoria da cosmologia geral seja derivada dessas observações (Ibid., § 5).
No âmbito deste significado, o positivismo sublinhou a função própria da filosofia de reunir e coordenar os resultados das ciências particulares, de modo a realizar um conhecimento unificado e generalíssimo. Esta é a tarefa que atribuíram à F., Comte e Spencer. Comte pretende que ao lado das ciências particulares haja um “estudo das generalidades científicas”, que ele faz corresponder à “F. primeira” de Bacon. Esse estudo deveria “determinar exatamente o espírito de cada ciência, descobrir as relações e o encadeamento entre as ciências, resumir, se possível, todos os princípios próprios delas no menor número possível de princípios comuns, conformando-se incessantemente com as máximas fundamentais do método positivo” (Cours de phil. positive, 1ª lição, § 7; 2ª lição, § 3). O conceito de F. como ciência generalizadora e unificadora dos resultados das outras ciências foi e está largamente difundido na filosofia moderna e contemporânea. Com efeito, ele foi aceito não somente por correntes positivistas, mas também por doutrinas espiritualistas, sendo que as últimas lhe acrescentaram em certos casos uma determinação ou condição limitadora: tal generalização e unificação deve corresponder a uma imagem do mundo que satisfaça às necessidades do coração. Esta é precisamente a definição de F. dada por Wundt: este reconheceu-lhe como função a “recapitulação dos conhecimentos particulares em uma intuição do mundo e da vida que satisfaça as exigências do intelecto e as necessidades do coração” (Syst. Der Phil., 3ª ed., 1904, pág. 5). Sob esse ponto de vista, a F. “é a ciência universal que deve unificar num sistema coerente os conhecimentos universais fornecidos pelas ciências particulares”: um conceito que recorre muito freqüentemente na literatura filosófica das últimas décadas do século XIX e nas primeiras do século XX, porquanto permite à F. aproveitar os resultados que a pesquisa positiva consegue quer no campo das ciências naturais, que no das ciências do espírito. Por vezes, tende-se a acentuar, nesse sentido, o caráter unitário e totalitário desta ciência universal; nesse caso, como na definição de Wundt, ela é considerada uma intuição, ou uma visão do mundo. Tal conceito é uma determinação ulterior do conceito de F. como “ciência universal”, isto é, unificadora e generalizadora. Diz Mach: “O filósofo tenta orientar-se no conjunto dos fatos de maneira universal, a mais completa possível... Somente a fusão das ciências especiais trará a concepção do mundo à qual tendem todas as especializações” (Erkenntniss und Irrtum, cap. I, trad. Franc., págs. 14-15). Dilthey demonstrou bem esta relação entre a F. e as ciências especiais quando escreveu “A história da F. transmite ao trabalho filosófico sistemático os três problemas da fundamentação, da justificação e da conexão das ciências particulares, juntamente com a tarefa de enfrentar a necessidade inesgotável da reflexão última sobre o ser, sobre o fundamento, sobre o valor, sobre a finalidade e sobre uma relação da intuição do mundo, quaisquer que sejam a forma e a direção em que tal tarefa é realizada” (Das Wesen der Philosophie, ao fim; trad. ital., em Critica della Ragione storica, pág. 487). A relação entre a fundamentação e unificação das ciências e a intuição do mundo (em que consiste propriamente a metafísica) configura-se para Simmel como a distinção entre os dois limites que definem o campo da pesquisa filosófica. “Um deles compreende as condições, os conceitos fundamentais, os pressupostos da pesquisa particular, os quais não podem achar satisfação nesta porque de certo modo já estão na base desta pesquisa; no outro, esta pesquisa particular é levada a seu completamento e à conexão, é relacionada com questões e conceitos que não têm lugar na experiência e no saber objetivo imediato. Aquela é a teoria do conhecimento, esta é a metafísica do campo particular em questão” (Soziologie, 1910, pág. 25; cfr. P. ROSSI, Lo storicismo tedesco contemporaneo, Torino, 1956, págs. 242 e segs.). Ora, a primeira destas tarefas é a que a filosofia crítica havia reconhecido como própria da F. (v. adiante); a Segunda delas é, pelo contrário, a que havia atribuído à F. a orientação positivista que se origina em Bacon. A última manifestação deste conceito de F. no pensamento contemporâneo é a noção de “ciência unificada”, própria do neo-empirismo,
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à qual é dedicada a Enciclopédia internacional da ciência unificada (de 1938 em diante). Contudo, nesta obra é incerto o próprio conceito de unificação e ele é defendido de maneiras diferentes pelos diferentes adeptos. Neurath entende-a como a combinação dos resultados das várias ciências e a axiomatização deles num sistema único; Dewey como a necessidade de estender a posição e a função da ciência na vida humana; Russell como unidade de método; Carnap como unidade formal ou lingüistica; e Morris como doutrina geral dos signos (Intern. Encycl. of Unified Science, I, 1, págs. 20, 33, 61, 70). O conceito da filosofia como unificação e generalização do saber científico continua contudo a representar-se no mundo contemporâneo; por exemplo, Whitehead o sustenta (Adventures of Ideas, 1933 , IX, § 2).
3ª A terceira concepção da F. como juízo sobre o saber é aquela que se pode chamar de crítica e que consiste em reduzir a F., sob esse ponto de vista, a doutrina do conhecimento ou a metodologia. Segundo esta concepção, a filosofia não aumenta a quantidade do próprio saber: portanto, ela não pode ser chamada propriamente de “conhecimento”. Sua tarefa é antes pôr à prova a validade do saber, determinando os limites e as condições deste: as suas possibilidades efetivas. O iniciador desse conceito de F. é Locke, Todo o Ensaio nasceu, como ele faz observar na “epístola ao leitor. Que precede, da necessidade de “examinar a capacidade da mente humana de ver quais objetos estão ao seu alcance e quais são, pelo contrário, superiores à sua compreensão”. Mais exatamente ainda, a F. tende a descobrir, quais são as possibilidades da inteligência, qual é a extensão destas possibilidades, a que coisas elas são de certo modo proporcionais e onde seu amparo nos falta (Ensaio, Intr., § 4). Os limites das capacidades humanas são resumidos claramente por Locke no terceiro capítulo do IV livro do Ensaio. Mas tais limites resultam ainda mais claramente, no que se refere à F., do último capítulo da obra, dedicado à divisão das ciências. Distinguem-se aí três ciências principais: a F. natura ou física, cuja tarefa é “o conhecimento das coisas como elas são em seu ser próprio, e sua constituição, suas propriedades e operações”; a F. prática ou ética que é “a arte de bem dirigir nossos poderes e nossos atos para o conseguimento das coisas boas e úteis”; e a doutrina dos sinais ou semiótica ou lógica, cuja tarefa é “considerar a natureza dos sinais que se serve o espírito para o entendimento das coisas ou para transmitir a outrem seu conhecimento” (Ibid., IV, 21, § 2-4). Nesta divisão das ciências falta a F.: isto quer dizer que para Locke a F. não é uma ciência no mesmo sentido em que o são a física, a ética ou a lógica, isto é, conhecimento de objetos, mas é juízo sobre a própria ciência, isto é, a crítica. Este ponto de vista constitui um dos filões principais da filosofia moderna e contemporânea. Hume identificava a tarefa da F. acadêmica ou cética, por ele professada, com a “limitação de nossas pesquisas àquelas matérias que melhor se adaptam à limitada capacidade da inteligência humana” (Inq. Conc. Underst., XII, 3). Segundo Kant a limitação do conhecimento é tomada como fundamento da validade do próprio conhecimento segundo um conceito que Locke já utilizara. Com efeito, para Kant, quer as condições a priori do conhecimento (intuições puras, categorias) quer as condições a posteriori do mesmo (o dado empírico ou intuição) determinam e limitam as possibilidades cognoscitivas no sentido de que não somente excluem certos campos de indagação, mas também fundamentam a validade ou a efetividade das próprias possibilidades. Kant exprimia o campo inteiro da F. pelas seguintes perguntas: 1ª o que posso saber?; 2ª o que devo fazer?; 3ª o que posso esperar?: 4ª o que é o homem? “ A metafísica, acrescenta Kant, responde à primeira questão; a moral à Segunda, a religião à terceira e a antropologia à Quarta; mas, no fundo, poder-se-ia reduzir tudo à antropologia, uma vez que as três primeiras questões se reduzem à última. Consequentemente o filósofo deve poder determinar: 1º a origem do saber humano; 2º o possível campo de aplicação de todo o saber, e finalmente 3º os limites da razão” (Logik, Intr. III). A objeção de Hegel contra este ponto de vista, segundo o qual “querer conhecer antes que se conheça é absurdo não menos que o prudente propósito de certo escolástico, de aprender a nadar antes de arriscar-se na água” (Enc.§ 10) é uma pura boutade. Uma vez que a F. como crítica supõe que já se saiba nadar, que já exista um saber constituído (o da ciência), a partir do qual se podem investigar as possibilidades de conhecer e determinar seus limites. Da doutrina kantiana, o neocriticismo contemporâneo modificou o tópico referente à religião, e mantendo inalterado o conceito de F. como crítica do saber, reconheceu três disciplinas filosóficas ou seja a lógica, a ética e a estética; entendendo por lógica, às mais das vezes, a teoria do conhecimento. Essa doutrina era defendida pela chamada escola de Marburgo (Cohen, Natorp, Cassirer) e também pelo criticismo francês (Renouvier, Brunschvicg). A posição de destaque que a gnosiologia ou teoria do conhecimento tem tido na filosofia contemporâ-
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-nea (e não apenas próximas às correntes neocriticistas) é uma conseqüência do conceito de filosofia como crítica do conhecimento. A gnosiologia ou teoria do conhecimento (v.), todavia, é caracterizada por pressupostos e problemas particulares; portanto, o conceito de F. como crítica do saber não implica a identificação da F. com a doutrina do conhecimento ou gnosiologia. Aquele conceito mantém-se, pois, mesmo depois da crise e do abandono da gnosiologia oitocentista, na forma da análise dos procedimentos efetivos do conhecimento científico e na determinação de seus limites e de sua validade. Esta análise é o assunto característico da metodologia (v.). Portanto, a metodologia pode ser considerada como a última encarnação da F. como crítica do saber. Como parte da metodologia, ou como ulterior restrição de seu objetivo, pode-se entender a definição de F. como “análise da linguagem” que foi proposta por Wittgenstein, no Tractatus logico-philosophicus (1922). Wittgenstein atribuiu “a totalidade das proposições verdadeiras” à ciência natural, nega que a F. seja uma ciência natural: esta palavra, diz ele, “deve significar alguma coisa que está acima ou abaixo das ciências da natureza, não ao lado delas” (Tract. § 4, 111). Torna-se então tarefa da F. o esclarecimento lógico da linguagem. “A F. não é uma doutrina, mas uma atividade. Uma obra filosófica consiste essencialmente em elucidações. O fruto da F. não são proposições. A F. deve tornar claras e delimitar com precisão as idéias que, de outro modo, seriam turvas e confusas” (Ibid., 4, 112).
II. A filosofia e o uso do saber - O segundo ponto de vista sob o qual se podem buscar constantes nos significados historicamente atribuídos à F. para que em seguida se possam realizar divisões ou articulações de tais significados é o que ficou expresso na 2ª parte da definição usada como ponto de partida deste artigo, isto é, o ponto de vista para o qual a F. é o uso humano do saber. Historicamente, duas interpretações foram dadas, fundamentais, deste conceito de filosofia, ou seja: a) aquela para a qual a F. é contemplativa e constitui uma forma de vida que é fim para si mesma; b) aquela para a qual a F. é ativa e constitui o instrumento de modificação ou de correção do mundo natural ou humano. Segundo a primeira interpretação, a F. esgota-se no indivíduo que filosofa; para a Segunda interpretação, a F. transcende o indivíduo e concerne propriamente as relações com a natureza e com os homens, portanto a vida humana social. Para usar um termo de clara significação histórica, pode-se chamar de “iluminista” esta Segunda interpretação a filosofia.
a) O conceito de F. como contemplação é próprio, em primeiro lugar, das F. de tipo oriental, que estabelecem, como objetivo da F., a salvação do homem. Com efeito, a salvação é a libertação de toda relação com o mundo e portanto a realização de um estado em que qualquer atividade é impossível ou sem sentido. No Ocidente, o conceito de F. como contemplação não foi a primeira forma assumida pelo trabalho filosófico ( que foi, pelo contrário, o da “sabedoria”, isto é, da F. ativa e militante” mas foi a primeira caracterização explícita deste trabalho. O fundamento de tal caracterização é a natureza “desinteressada”, da pesquisa filosófica. Quando Heródoto (I, 30) faz dizer a Sólon pelo rei Creso: “Ouvi falar das viagens que filosofando tens empreendido para ver muitos países” faz alusão, obviamente, ao caráter desinteressado dessas viagens, que não foram realizadas com objetivos lucrativos ou políticos, mas somente visando ao conhecimento. O próprio Platão opõe o espírito científico dos gregos ao amor do lucro, próprio dos egípcios e dos fenícios (Rep., Ivm 435 e). e que a pesquisa do saber não pode ser subordinada ou submetida a finalidades estranhas é fato que resulta da própria noção dessa pesquisa, exatamente como ela se foi configurando na Grécia antiga (cfr. I, B). Mas já na narração atribuída a Pitágoras, que deriva de um escrito de Heráclides Pôntico (DIÓG. L., Priemium, 12) com que se pretende justificar o nome de F., há algo mais que a simples exigência do desinteresse da pesquisa. Segundo aquela tradição, que é referida por Cícero nas Tusculanas (V, 9), Pitágoras comparava a vida com as grandes festas de Olímpia, aonde alguns se dirigem a negócios, outros para participar das competições, outros para divertir-se, e finalmente alguns somente para ver o que acontece: estes últimos são os filósofos. É posta em evidência aqui a distinção entre o filósofo, interessado apenas em ver, e o comum dos homens, dedicados a suas ocupações. A superioridade da contemplação sobre a ação, portanto, está implícita nesta narração; e a própria narração tinha provavelmente como objetivo enobrecer, pela alusão a Pitágoras, o conceito de F. que se ia formando na escola de Aristóteles. O caráter contemplativo da F. (que nada tem a ver com o caráter desinteressado da pesquisa em geral) como uma das possíveis respostas ao problema do uso humano do saber, foi afirmado e justificado pela primeira vez por Aristóteles. Tal caráter funda-se, com efeito, na natureza necessária do objeto da F. que é o que “não pode ser
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senão o que é” (Et. Nic., VI, 3, 1139 b 19). Sob este ponto de vista a F. é saber e não sabedoria. Já que a sabedoria consiste em deliberar bem, porém nada há que deliberar em torno das coisas que não podem ser de outra maneira (Ibid., VI, 5, 1140 a 30). A partir desta base, Aristóteles estabelece um contraste entre sabedoria e sapiência (v.). homens como Anaxágoras e Tales são sapientes e não sábios: não indagam acerca dos bens humanos, não conhecem o que os beneficia a si mesmos, senão somente coisas excepcionais, maravilhosas, difíceis e divinas. “Ninguém – diz Aristóteles – delibera em torno àquilo que não pode ser de outra maneira ou em torno às coisas que não têm um fim ou cujo fim não é um bem realizável” (Ibid., VI, 7, 1041 b 10). Mas, deste ponto de vista, que uso do saber é possível? Somente um: a realização de uma vida contemplativa, isto é, dedicada ao conhecimento do necessário. A atividade contemplativa é, portanto, considerada por Aristóteles como a mais alta e beatífica: faz do homem algo superior ao próprio homem porque é conforme ao que de divino existe nele (Ibid., X, 7, 1177 b 26). A doutrina de Aristóteles fixou assim os pontos em torno ao uso humano do saber: 1º a F., enquanto tem por objeto o necessário, não oferece ao homem nada que fazer e, portanto, é contemplação; 2º a contemplação é uma forma de vida individual privilegiada, porque á a beatitude mesmo. As duas teses são típicas desta concepção da F., que aparece com freqüência na história do pensamento ocidental e domina em toda a F. grega pós-aristotélica, que cultiva o ideal do “sapiente” ou seja, daquele em que se realiza a vida contemplativa. Epicuristas, Estóicos, Cépticos e Neoplatônicos concordam em julgar que somente o sapiente pode ser feliz, porque só ele, como contemplador puro que é, é auto-suficiente. A finalidade que estes filósofos atribuem à F. é individual e particular: a realização de uma forma de vida que fecha o sapiente em si mesmo e na sua contemplação solitária. Também nesse ponto de vista, obviamente, a F. é um esforço de transformação ou de correção da vida humana; portanto, não é verdadeira ao pé da letra a afirmação segundo a qual ela não modifica a estrutura do mundo, do conhecimento concernente ao mundo e às forma s de vida associada; ao passo que se pode modificar a vida do indivíduo tornando-o sábio e bem-aventurado.
É fácil conhecer por esses traços a atitude contemplativa em filosofia. Quando Espinosa diz “O homem forte considera principalmente que todas as coisas procedem da necessidade da natureza divina e que portanto, tudo aquilo que ele julga molesto e ruim, e tudo aquilo que, além disso aparenta ser ímpio, horrível, injusto e torpe nasce do fato de que ele concebe as próprias coisas turva, parcial e confusamente” (Et. IV, 73, scol.) exprime, em sua forma clássica, o conceito contemplativo da F. E quando Hegel afirma que a F., como a coruja de Minerva que começa o seu vôo ao cair da noite, chega sempre quando tudo está feito, e portanto demasiado tarde para dizer como deve ser o mundo, exprime o mesmo conceito (Fil. Do Dir., Pref.). Com efeito, para Hegel, como para Aristóteles e Espinosa, o objetivo da F. é o necessário; sua tarefa é precisamente mostrar a necessidade de quanto existe, isto é a racionalidade do real (Enc., § 12). Sob esse ponto de vista, a F. é a justificação racional da realidade, entendendo-se por realidade não só a da natureza, mas também a das instituições histórico-sociais, isto é do mundo humano. Não era muito diferente, sob esse prisma, o conceito que Schopenhauer tinha de Filosofia: “Espelhar abstratamente, universalmente e limpidamente em conceitos toda a essência do mundo, dizia ele, e assim, como imagem reflexa, depô-la nos conceitos permanentes e sempre dispostos da razão: esta e não outra é a F.” (Die Welt, I, § 68).
Na F. contemporânea, o conceito de F. como contemplação permanece na fenomenologia e no espiritualismo. A fenomenologia é o esforço para realizar, por meio da “epoché”, o ponto de vista de um “espectador desinteressado”, isto é, de um sujeito que não esteja por sua vez submetido às mesmas condições limitativas que ele tenta considerar. Diz Husserl: “O eu da meditação fenomenológica pode tornar-se o expectador imparcial de si mesmo, não somente nos casos particulares mas em geral; e esse ‘si mesmo’ compreende qualquer objetividade que exista para ele” (Cari. Med., § 15). E na última obra Husserl vê na filosofia “o movimento histórico da revelação da razão universal, inata como tal na humanidade” (Krisis, § 6), e atribui-lhe a tarefa de levar a razão” a sua própria autocompreensão, a uma razão que se compreenda concretamente a si mesma, que compreenda ser um mundo, um mundo que é, em sua própria verdade, universal”. (Ibid., § 73). Por outro lado Bergson, ao distinguir a F. como intuição ou consciência da Duração temporal (isto é, do vir a ser da consciência) da ciência como conhecimento dos fatos, vê na ciência “a atividade auxiliar da ação” e na F. uma atividade contemplativa. “A regra da ciência, diz ele, é a que foi proposta por Bacon, obedecer para comandar. O filósofo não obedece nem comanda: procura simpatizar”. (La pensée et le mouvant, 3ª ed., 1934, pág. 158). O respeito tributado quer ao “sapiente”, como condição huma-
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-na privilegiada ou perfeita, quer à F. como forma final e conclusiva do ser são dois traços característicos por onde se pode conhecer a concepção da F. como contemplação. A esta concepção pertencem as formas do cepticismo antigo e moderno. Quando Sexto Empírico aponta como finalidade da filosofia céptica a imperturbabilidade que ela permite realizar (Hip. Pirr., I, 25); ou quando Hume reduz o motivo de seu filosofar, que ele julga incapaz de aqui sobre as crenças mais arraigadas no homem, ao prazer que dele extrai (Treatise, I, 4, 7; Inq. Conc. Underst., XII, 3) ambos atribuem à F. uma função contemplativa que se esgota no âmbito da vida individual. E no mesmo âmbito se esgota a função da F. como “terapia” da F., isto é, como libertação das dúvidas filosóficas, de que falam Wittgenstein (Philosophical Investigations, § 133) e alguns filósofos ingleses, seus seguidores (cfr. Revolution in Phil., 1956, págs. 106, 112 e segs.). De fato, não parece que esses filósofos atribuam à terapia filosófica outra função a não ser a de libertar o indivíduo de suas dúvidas filosóficas, permitindo que ele se “sinta melhor”, do mesmo modo que Hume se sentia melhor com suas dúvidas cépticas.
b) O conceito de F. como atividade diretriz ou transformadora já está presente na lenda dos Sete Sábios, que foi citada pela primeira vez por Platão (Prot., 343 a). os sete sábios foram moralistas e políticos, e seus ditados referem-se ao comportamento na vida e à relações com os homens (v. SÁBIOS). Mas o primeiro grande exemplo de uma F. explicitamente concebida com a finalidade de transformar o mundo humano é a de Platão, a qual se destina inteiramente a modificar a forma da vida social e a baseá-la na justiça. A educação do filósofo culmina não na visão do bem, mas no “retorno à caverna”: porquanto o filósofo deve colocar à disposição da comunidade os resultados de sua especulação e utilizá-los para a direção e a orientação da mesma. “Cada um de vós, diz Platão, deve por sua vez descer para a habitação comum e acostumar-se a contemplar os objetos nas trevas: porque acostumando-se a estas, verá muito melhor do que os homens que sempre lá permaneceram e reconhecerá os caracteres e o objeto de cada imagem, porque viu os verdadeiros exemplares da beleza, da justiça e do bem. Assim nós e vós constituiremos e governaremos a cidade acordados, e não sonhando, como acontece agora na maior parte das cidades por causa daqueles que combatem entre si por causa de sombras e disputam o poder como se fosse um bem” (Rep., VII, 520 c). A F. platônica é totalmente dominada por esse compromisso educativo e político: a tarefa da F. não é, para Platão, dar a um certo número de homens a beatitude da contemplação, mas dar a todos a possibilidade de viver conforme a justiça (Ibid., 519 e). Esta concepção ativa da F. permaneceu por longo tempo inoperante. Somente por ocasião do Renascimento ela foi retomada pelos Humanistas que entenderam a F. como sabedoria. No De Nobilitate Legum et Medicinae, Coluccio Salutatu (1331-1406) dizia: “Muito me admira que tu sustentes que a sabedoria consiste na contemplação, de que seria ancila a prudência, que teria com aquela a mesma relação que um administrador com o senhor; e que tu digas que a sapiência é a maior das virtudes, própria da melhor parte da alma, isto é, do intelecto; e que a felicidade consiste em agir conforme a sapiência. E acrescentas que sendo a metafísica a única ciência livre, o filósofo quer que a especulação preceda em tudo a ação... Mas a verdadeira sapiência não consiste, como tu dizes, na especulação. Se tirares a prudência, não acharás nem sapiente nem sapiência... De fato, chamarias de sapiente a quem houvesse conhecido coisas celestes e divinas mas não houvesse cuidado de si, não houvesse sido útil aos amigos, à família, aos parentes e pátria?”. No mesmo espírito, Leonardo Bruni no Isagogicon Moralis disciplinae (1424) afirmava a superioridade da F. moral sobre a F. teorética.
A afirmação sucessiva desta concepção ativa da F. caracteriza o início da Idade Moderna. Os humanistas acreditavam que só a F. moral fosse ativa; para Bacon é ativa também a F. que tem por objeto a natureza, porque se destina a dominar a natureza. E Bacon não hesitou em chamar “pastoral” a própria F. de Telésio, que ele muito apreciava e em parte seguida, porque parecia-lhe que ela “contemplasse o mundo placidamente e quase por ociosidade” (Works, III, pág. 118). Hobbes insistia na mesma função da F. (De Corp., I, § 6). Descartes, por sua vez julgava-a apta a conseguir a sabedoria e a ciência de tudo aquilo que se torna útil e vantajoso para o homem (Princ. Phil., Pref.). A mesma finalidade diretriz e corretiva foi atribuída à F. por Locke e pelos Iluministas. Com Locke, a F. torna-se crítica do conhecimento e esforço de libertação do homem das ignorâncias e dos preconceitos. E assim ela se mantém no Iluminismo do século XVIII, que vê na F. o esforço da razão para assenhorear-se do mundo humano, libertá-lo dos erros e fazê-lo progredir. D’Alembert descrevia assim a ação que a F. exercia em seu tempo: “Desde os princípios das ciências profanas até
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os fundamentos da revelação, desde a metafísica até as questões de gosto, desde a música até a moral, desde as disputas escolásticas dos teólogos, até os objetos do comércio, desde o direito dos príncipes até os dos povos, desde a lei natural, até as leis arbitrárias das nações, numa palavra, desde as questões que nos preocupam mais, até as que nos interessam menos, tudo foi discutido e analisado, ou pelo menos agitado. Uma nova luz sobre alguns objetos, uma nova obscuridade sobre outros foram o fruto ou o resultado dessa efervescência geral dos espíritos, como o efeito do fluxo e do refluxo do oceano é levar para a margem alguns objetos e afastar dela outros” (Euvres, ed. Condorcet, pág. 218). Ao conceito iluminista de F. aliava-se Kant segundo o qual a F., determinando as possibilidades efetivas do homem em todos os campos, deve iluminar e dirigir o gênero humano em seu progresso devido, rumo à felicidade universal (Recensão das “Idéias sobre a F. da História” de Herder, 1784-85; cfr. Crít. Da R. Pura, Doutrina transcedental do método, capítulo III, ao final).
O Romantismo, insistindo no caráter necessário, porque racional, do ser, constitui, em seu conjunto, um retorno à concepção contemplativa da F. O próprio positivismo, que pretendia explicitamente retornar à doutrina baconiana como possibilidade de domínio da natureza, nem sempre se mantém fiel ao reconhecimento do caráter ativo da F. Se para o positivismo (v.) de tipo social ( St.-Simon, Proudhon, Comte, Stuart Mill) a F. é principalmente um meio de transformação da sociedade humana, para o positivismo evolucionista, a F. tem antes um caráter contemplativo do que ativo. A defesa do mistério que Spencer coloca entre as tarefas da F., isto é, o reconhecimento da insolubilidade dos chamados problemas últimos, coloca a F. no mesmo plano contemplativo da religião. A discussão acerca da solubilidade ou insolubilidade dos chamados “enigmas do mundo” cai inteiramente no plano da F. contemplativa. O positivismo de Ardigò, o monismo materialista (Haeckel) e o evolucionismo espiritualista (Wundt, Morgan etc.) são igualmente contemplativos. Na realidade, o clima romântico está presente tanto no positivismo como no idealismo e orienta tanto àquele como a este para o conceito de F. como contemplação de uma realidade necessária. Contra tal conceito constitui um protesto o “novo materialismo” de que se fez partidário Marx, polemizando aliás, ao mesmo tempo, contra o materialismo teorético de Feuerbach. “Os filósofos, dizia ele, limitaram-se, até agora, a interpretar o mundo diversamente: trata-se agora de transformá-lo (Tese sobre Feuerbach, 11). Mas por mais que Marx insista no esforço de transformação que deve caracterizar a F. como tal, o próprio fundamento da F. como contemplação permanece firme em sua doutrina. Aquele fundamento é, com efeito, a necessidade do real; e para Marx a transformação da sociedade, isto é, a passagem da sociedade capitalista para a sociedade sem classes, acontecerá “com a facilidade que caracteriza os fenômenos da natureza” (Capit., I, 24, § 7). Nessa base, a tarefa da F. apresenta-se como a de uma profética Cassandra em vez de promover e orientar a própria transformação. Nesse aspecto subtrai-se às vezes do clima romântico, o neocriticismo. Na Ucrônia, Renouvier propôs-se eliminar “a ilusão da necessidade preliminar pela qual o fato acontecido seria o único, entre todos os outros imagináveis, que poderia realmente acontecer” (Uchronie, 2ª ed., 1901, pág. 411). A “F. analítica da história” tem, segundo Renouvier, a tarefa de determinar as concatenações gerais da própria história (Intr. À la phil. analytique de l’histoire, 1864, págs. 551-52). Por outro lado a determinação da F. como “visão do mundo”, determinação que a F. sofreu na Segunda metade do século XIX, por obra de pensadores de proveniência neocrítica ou positivista, tem um claro significado contemplativo. Contra a interpretação contemplativa da F., alinhou polemicamente o pragmatismo, desde a sua origem, como se pode ver no ensaio Como tornar claras nossa idéias (1878), de C. S. Peirce. Nesse ensaio, Peirce afirmava que toda a função do pensamento é produzir hábitos de ação (ou crenças) e que portanto o significado de um conceito consiste exclusivamente nas possibilidades de ação que ele define. Mas essas afirmações de Peirce são importantes também sob outro ponto de vista. Peirce negava explicitamente o próprio pressuposto da F. como contemplação, isto é, o caráter necessário do real. Peirce mostrava pois como a regularidade e a ordem dos acontecimentos e as relações condicionais entre os próprios eventos não têm nada a ver com a necessidade, que implicaria a possibilidade de previsão infalível (Chance, Love and logic, II, cap. 2). A definição dada por Dewey da F. como “crítica dos valores” (Experience and Nature, pág. 407) exprime, precisamente segundo os pressupostos estabelecidos por Peirce, a função diretriz da filosofia. Segundo Dewey, a tarefa da F. é aquela antiga, inscrita no próprio significado etimológico da palavra: procura da sabedoria; onde a sabedoria difere do conhe-
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-cimento por ser “a aplicação daquilo que é conhecido pela conduta inteligente das ações da vida humana” (Problems of Man, 1946, pág. 7). Não tem diferente significado a definição dada por Morris: “Uma F. é uma organização sistemática que compreende as crenças fundamentais: crenças sobre a natureza do mundo e do homem, sobre aquilo que é bem, sobre os métodos a seguir no conhecimento, sobre o modo como a vida deve ser vivida” (Signs, Language and Behavior, 1946, VIII, § 6; trad. ital. pág. 314). Para Morris, com efeito, como para todo o pragmatismo, a crença não é mais do que uma regra de comportamento: a F. como organização das crenças fundamentais, constitui por isso aquilo que Sartre chamou “o projeto fundamental de vida”. Na própria obra de Sartre pode-se perceber a passagem da concessão contemplativa da F., expressa em L’être et le néant (1943) à concepção ativa ou iluminista, expressa na Critique de la raison dialectique (1960). No primeiro desses trabalhos, Sartre projetava uma pesquisa chamada “psicanálise existencial”, cuja finalidade era “pôr em realce, de maneira rigorosamente objetiva, a escolha subjetiva pela qual cada pessoa se torna pessoa, isto é, se faz anunciar a si mesma aquilo que ela é” (L’être et le néant, pág. 662). O resultado de uma pesquisa desse gênero deveria Ter sido, segundo Sartre, a classificação e a comparação dos vários tipos possíveis de conduta, portanto o esclarecimento definitivo da realidade humana como tal (Ibid., pág. 663). O caráter contemplativo de semelhante disciplina é evidente. Mas em sua Segunda obra Sartre entende por F. a “totalização do saber, método, Idéia reguladora, arma ofensiva e comunidade de linguagem” e ao mesmo tempo como instrumento que age, para transformá-las, sobre as sociedades em decadência, e que pode constituir a cultura e até mesmo a natureza de uma classe inteira (Critique de la raison dialectique, pág. 17). No primeiro caso, a F. não levava o homem a fazer nada, porque o homem nada podia fazer: Sartre definia o homem como “paixão inútil”, isto é como paixão impossível de ser Deus (L’être et le néant, pág. 708). No segundo caso, a F. insere-se no mundo como força humana delimitada mas eficaz, e tende a transformá-lo. Isenta do destino de fracasso e do destino de sucesso, a noção de projeto presta-se a exprimir o caráter diretor operante que atribuem à F. as orientações neo-iluminísticas contemporâneas. Com efeito, um projeto apoia-se nos conhecimentos disponíveis e determina seu uso possível, a fim de garantir a existência e a coexistência dos homens. Uma F. que projete neste sentido (que, diga-se de passagem, é o sentido esclarecido por Platão) o uso humano do saber é obviamente a determinação de técnicas de vida que podem ser postas à prova, corrigidas ou rejeitadas.
III. A filosofia e seus procedimentos - O terceiro aspecto sob o qual se podem individualizar constantes de significado que permitam reconhecer articulações fundamentais nas interpretações dadas historicamente do conceito de F., é o que se refere ao procedimento ou método que se julga próprio da F. Sob esse ponto de vista, as F. podem ser divididas em a) F. sintéticas ou criativas, que procedem produzindo conceptualmente seu objeto, sem conhecer limites ou condições para esse trabalho de construção; e b) F. analíticas que reconhecem a existência de dados e procedem descrevendo das F. analíticas é a limitação a que elas se julgam submetidas por parte do dado, seja qual for a maneira como elas concebem a este. O caráter próprio das F. sintéticas consiste, pelo contrário, em não reconhecer essa limitação e em pretender que o próprio método é inteiramente construtivo, isto é, capaz de esgotar sem resíduos todo o objeto da filosofia.
O procedimento sintético não pode apelar para o controle de situações, fatos ou elementos que sejam independentes de si; sua característica, portanto, é valer como controle de si mesmo. Sempre que uma filosofia estabelece que a validade de seus resultados depende exclusivamente da organização interna desses mesmos resultados pode ser reconhecida e estabelecida uma vez por todas, sem necessidade de que os próprios resultados sejam postos à prova e confirmados por técnicas ou práticas independentes dela, seu método pode ser caracterizado como sintético. Com efeito, neste caso, seu modo de proceder eqüivale à criação ou composição ex novo de seu objeto, de forma que não exige confirmações nem teme desmentidos. A F. de Hegel constitui a encarnação mais pura deste tipo de filosofia, quando Hegel diz: “A F. não tem a vantagem de que gozam as outras ciências, de poder pressupor seus objetos imediatamente dados pela representação e (de poder pressupor) como já admitido, desde o ponto de partida e no procedimento sucessivo, seu método de conhecer” (Enc., § 1) ele afirma precisamente a exigência de que a F. constitua por si, inteiramente, seu objeto e seu método. Mas produzindo por si quer o objeto quer o método, ela não tem tampouco necessidade de dar conta a outras ciências ou a outros pontos de vista eventuais, de seus resultados, quaisquer que eles sejam. Hegel insiste no caráter absolutamente independente ou incondicionado de seu método.
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. “O método, (diz ele, por exemplo) assim como o conceito na ciência, desenvolve-se por si mesmo e é somente uma progressão imanente e uma produção de suas determinações” (Fil. Do Dir., § 31). E ainda: “A mais alta dialética do conceito é produzir e entender a determinação, não somente como limite ou posição, mas haurindo dela o conteúdo e o resultado positivos; na medida em que apenas com isso ela é desenvolvimento e progresso imanente. Essa dialética não é o resultado externo de um pensamento objetivo senão a alma própria do conteúdo, a qual faz brotar seus ramos e seu frutos organicamente” (Ibid., § 31). A diferença entre esse método produtor ou, como se poderia dizer melhor, criador de seu objeto e o método analítico, que Hegel reconhece como próprio das ciências depois de Descartes, é expressa pelo próprio Hegel da maneira seguinte: “o método iniciado por Descartes rejeita todos os métodos interessados em conhecer aquilo que por sua natureza é infinito; abandona-se portanto ao desenfreado arbítrio das imaginações e afirmações, a uma pretensa moralidade e vaidade de sentimento ou a um desmedido opinar e raciocinar o qual se declara de maneira mais enérgica contra a F. e os filosofemos” ( Enc., § 77).
Esta concepção atribui ao procedimento filosófico a produção de seu objeto e faz do objeto o infinito mesmo, isto é, o Absoluto ou Deus, que em si resolve ou anula todo fato ou toda coisa finita. Antes de encontrar em Hegel sua forma típica, tal concepção havia sido exposta por Fichte como exigência de que a F., como dogmática não somente a si mesma, senão também a todas as outras ciências garantisse para todas as validade desta forma (Uber den Begriff der Wissenschaftslehre [Sobre o conceito da teoria da ciência], 1794, § 1). Com efeito Fichte considerava que tanto quanto sua forma, a doutrina da ciência deveria produzir também o conteúdo e que o conteúdo da doutrina da ciência encerrava em si todo o possível conteúdo que, portanto, era “o conteúdo absoluto” (Ibid., § 1). Reportando-nos a tempos mais afastados, a concepção do método sintético pode-se encontrar em Espinosa, segundo o qual o procedimento filosófico (que denomina conhecimento intuitivo ou terceiro gênero de conhecimento ou amor intelectual de Deus) é o que tem por objeto a necessidade com a qual todas as coisas resultam da natureza divida. O amor intelectual de Deus é o amor mesmo de Deus com que Deus se ama a si mesmo (Eth., V, 36), o que significa que o conhecimento da necessidade com que as coisas resultam de Deus é o conhecimento mesmo que Deus tem de si. O procedimento matemático da Ética adquire, sob esse ponto de vista, fundamental relevo na filosofia de Espinosa: não é um artifício expositivo, senão a adequação do método da F. ao procedimento necessário mediante o qual as coisas resultam de Deus. Assim considerado o método sintético revela-se em sua característica mais sugestiva: a pretensão de valer como uma visada divina sobre o mundo, como o conhecimento mesmo que Deus tem de si e de suas criações. É fácil advertir então porque esta pretensão foi amiúde adiantada pela F. “Somente esta ciência – dizia Aristóteles – é divina e o é num duplo sentido: porque é própria de Deus e porque concerne ao divino. Só ela teve a fortuna de possuir ambos os privilégios: Deus, com efeito, aparece como a causa e o princípio de todas as coisas e só ou principalmente uma ciência semelhante pode ser própria de Deus” (Met., I, 2, 983 a 5). Aristóteles chamava de teologia a F. primeira. Verdade é que a F. primeira é tal pela sua universalidade e que ela é universal somente enquanto é ciência do ser enquanto ser (Ibid., VI, I, 1026 a 30). Mas a mesma ciência do ser enquanto ser é teologia porque é a ciência da causa ou razão de ser a esta causa ou razão de ser é Deus. A F. aristotélica possui por isso declaradamente um caráter sintético e pode aliás ser considerada como o primeiro e clássico exemplo do procedimento sintético. Obviamente, ela não é considerada assim só porque tem Deus como objeto de sua investigação; mas também porque se considera coincidente com o conhecimento que Deus tem de si. E por este traço pode ser reconhecida facilmente toda F. sintética como tal.
b) O procedimento analítico da F. reconhece-se negativamente pela falta de pretensão de valer como conhecimento divino do mundo e, positivamente, pelo reconhecimento de um limite das suas possibilidades e de um controle de seus resultados. O procedimento analítico não é, por conseguinte, a construção ex novo do seu objeto, mas a resolução desse nos elementos que o deixam entender, isto é, nas suas condições. Nestes termos a determinação do procedimento filosófico foi feita por Kant, primeiro em um escrito pré-crítico de 1764, Sobre a distinção dos princípios da teologia natural e da moral, depois na Segunda parte principal da Crítica da Razão Pura. No primeiro desses escritos, Kant opunha o método analítico da F. ao método sintético da matemática. “A todo conceito geral, dizia ele, pode-se chegar por dois caminhos: ou por meio de uma ligação arbitrária dos conceitos ou isolando aqueles conhecimentos que foram esclarecidos por subdivisão. A matemática chega sempre às suas definições se-
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-guindo o primeiro caminho... As definições filosóficas, pelo contrário, são completamente diferentes. Aqui o conceito das coisas já foi dado mas de maneira confusa e não suficientemente determinada. É preciso subdividi-lo, comparar nos vários casos as notas que foram separadas com o conceito dado, para depois determinar e levar a termo esta idéia abstrata”. (Untersuchung uber die Deutlichkeit der Grundsatze der naturlichen Theologie und der Moral, I, I, § I). Na Crítica da Razão Pura, Kant distinguiu o conhecimento filosófico, como conhecimento por conceitos, do conhecimento matemático que consiste na construção de conceitos. A matemática, diz Kant, pode construir conceitos porque dispõe de uma intuição pura que é a do espaço-tempo. Mas a F. não dispõe de uma intuição pura mas somente de uma intuição sensível: os objetos da F. devem então ser dados e podem portanto ser analisados só, não construídos, pelo procedimento filosófico (Crít. R. Pura, Doutrina do método, cap. I, secç. I). Kant, portanto, acautela os filósofos contra a pretensão de querer organizar sua ciência conforme o modelo matemático. Em filosofia, não há propriamente definições (que sejam construções de conceitos) nem axiomas, isto é, provas apodícticas. Kant diz em relação a essa últimas: “A experiência nos ensina aquilo que há, mas não que não pode ser de outra maneira. Princípios empíricos de prova não podem nos dar nenhuma prova apodíctica. De conceitos a priori (no conhecimento discursivo) nunca pode nascer uma certeza intuitiva, isto é, uma evidência, embora o juízo possa ser apodicamente certo” (Ibid., Doutrina do método, cap. I, secç. I). Deste ponto de vista, o procedimento da F. está bem longe da possibilidade de dar ao homem um conhecimento comparável àquele possuído por Deus. “A determinação dos limites de nossa razão não pode ser realizada a não ser sobre princípios a priori; mas a limitação da razão, que vem a ser o conhecimento, embora indeterminado, de uma ignorância nunca completamente eliminável, pode também ser conhecida a posteriori, isto é, em todo conhecer, resta-nos sempre ainda muito a conhecer” (Ibid., Da impossibilidade de uma satisfação cética). A F. nunca é uma ciência perfeita, que se possa ensinar ou aprender. “Podemos aprender a filosofar somente, isto é, a exercitar o talento da razão na aplicação dos seus princípios universais a determinadas pesquisas, mas sempre com a reserva do direito da mesma razão para investigar aqueles princípios em suas fontes e para confirmá-los ou recusá-los” (Ibid., Doutrina do método, cap. III).
Estas notações de Kant constituem um conceito relativamente realizado ou maduro procedimento analítico em filosofia. O procedente imediato desse é Locke. “Não é nossa obrigação, neste mundo, havia dito Locke, conhecer todas as coisas, mas aquelas que concernem à conduta da nossa vida. Se pudermos então achar as regras por meio das quais um ser racional, qual é o homem, considerado no estado em que se encontra neste mundo, pode e deve conduzir suas opiniões e ações que disso dependem; se digo eu, pudermos alcançar tanto, não devemos nos magoar se outras coisas fogem ao nosso conhecimento” (Ensaio, Intr., § 6). O conceito da F. como procedimento analítico, isto é, dirigido a determinar as condições e por esta razão os limites das atividades humanas, inspirou todo o Iluminismo setecentista. Mas por este aspecto e com a diversidade devida à diferença dos meios culturais disponíveis, o Iluminismo setecentista retomava o ideal do Iluminismo antigo, o dos Sofistas e de Sócrates, que entenderam a F. como orientada para a formação do homem na comunidade. Deste Iluminismo, conforme o qual a F. é um instrumento para o homem, podemos considerar manifestação o próprio conceito platônico da filosofia. Platão de fato negava que a F. pudesse ser própria da divindade. Ela, como o amor, é falta, porque é desejo de sabedoria da parte de quem não possui a sabedoria pela própria natureza. O homem é filósofo porque “está no meio, entre o sapiente e o ignorante” ao passo que a divindade que já possui o saber, não tem necessidade de filosofar (Conv., 204 a-b). Por outro lado, a dialética, que é o método da F., é concebida por Platão como análise, isto é, como um procedimento que permite distinguir o discurso verdadeiro do falso, mostrando as coisas que podem combinar-se entre si e aquelas que não podem combinar-se (Sof., 252 d-e). Para mostrar quais são as coisas que podem e aquelas que não podem combinar-se, a dialética procede compondo várias determinações em um único conceito e depois dividindo este conceito nas suas articulações, como faz um hábil trinchador (Fedro, 265 e). Ela então supõe a cada passo a escolha oportuna das determinações, para compô-las em um só conceito, e dos pontos sobre os quais deixar cair a divisão do mesmo conceito: escolha que supõe, como toda outra escolha, uma utilização de elementos: pelo que o método platônico foi justamente considerado como um método empírico (TAYLOR, Plato, 4ª ed., 1937, pág. 377).
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Que a filosofia seja uma atividade humana, isto é, limitada em seu alcance e em sua validade; que ela consista em efetuar escolhas e não em construir in toto seu objeto, são as características fundamentais da concepção analítica da filosofia. Destes dois caracteres porém o terceiro, que talvez seja o mais óbvio e ostensivo: aquele pelo qual este método é, entre outras coisas e em primeiro lugar, reconhecimento e utilização de elementos, isto é, de fatos, princípios ou condições que não são gerados pelo mesmo método. A escolha dos fatos e sua elaboração em vista de uma solução possível constitui o problema (v.). As F. analíticas são, em geral, marcadas pelo fato de que nelas a noção de problema é fundamenta, enquanto não existe ou é considerada secundária e negligenciável nas F. sintéticas (como acontece nas de Aristóteles e Hegel) . Uma ulterior determinação desta concepção (uma determinação que ela adquire só no mundo contemporâneo) é a que concerne ao campo do qual a F pode ou deve ser comparada. É só uma idéia recente que os resultados da F., como os de qualquer outra pesquisa, não são definitivos mas precisam ser provados e experimentados. Dewey, por causa disso, chamou a F. crítica das críticas. “Pode parecer a alguns uma traição, disse ele, conceber a F. como o método crítico para desenvolver os métodos da crítica. Mas esse conceito da F. também espera ser provado, e a prova que o confirmará ou o condenará consiste no êxito eventual. A importância do conhecimento que temos adquirido e da experiência que foi revivificada pelo pensamento consiste na evocação e na justificação da prova” (Experience and Nature, pág. 437).
Entretanto, esta exigência vem a ser operante só quando se determine o campo do qual a F. tire seus elementos e no qual encontre suas possibilidades de confirmação. A determinação deste campo constitui a característica própria da F. analítica dos nossos tempos. Ora, os campos aos quais podemos aludir são somente dois: 1º a existência individual; 2º a existência associada.
1º As F. que recorrem à existência individual pela procura dos elementos e pela eventual prova das soluções consideram habitualmente a existência individual como consciência e vêem na consciência o domínio próprio da filosofia. No mundo contemporâneo, a mais conhecida e característica F. deste tipo é a de Bergson, que explicitamente se organiza como busca dos “elementos imediatos da consciência” e que utiliza estes elementos para soluções que por sua vez podem ser provadas somente no âmbito da consciência. A este tipo de F. liga-se também a fenomenologia concebida por Husserl como uma volta radical ao ego cogito puro, para fazer reviver os valores eternos que dele procedem” (Cart. Med., § 2). O defeito metodológico deste tipo de F. consiste no fato de que o elemento, que deve servir como limitação ou controle do procedimento analítico, na verdade não é independente deste procedimento, porque pode ser descoberto ou contraído só na base dos pressupostos que o inspiram.
2º F. que recorrem à existência associada têm como iniciadora a F. de Platão, que exatamente pretendia provar os resultados da F. na vida associada. Ao mesmo gênero pertence a F. de Kant, segundo a qual os resultados da F. devem ser provados no domínio moral e político, isto é, no campo das relações humanas em geral e devem constituir em tal campo um instrumento de progresso [cfr. o escrito Se o gênero humano estaria progredindo constantemente para o melhor, de 1728, e também aquele Sobre o Iluminismo, 1784, e os citados precedentemente neste artigo, II, b]. A experiência inter-humana é também aquela à qual se refere Dewey para submeter à prova os resultados da F., isto é, as propostas que ela formula para a conduta inteligente da vida (Experience and Nature, cap. X). Por outro lado, o existencialismo de Heidegger, embora não planeje pôr à prova os resultados de suas análises, toma os elementos desta análise da existência comum cotidiana, daquilo que acontece entre os homens “antes de tudo e habitualmente” (Sein und Zeit, § 9). Enfim podemos reconduzir a este mesmo horizonte a F. considerada como análise da linguagem enquanto discerne na linguagem o fato intersubjetivo fundamental e, portanto, na explicação e na retificação deste o instrumento mais idôneo para a eliminação dos equívocos e a emenda das relações intersubjetivas. Esta pelo menos pareceria a significação mais importante de uma tal filosofia. Mas não é o caso desta significação, se ela vem compreendida simplesmente (como alguns a entendem) qual uma “terapia” dirigida a libertar das dúvidas, consideradas fictícias, geradas pela filosofia. Neste caso, como ninguém, à exceção do interessado, pode julgar se está suficientemente “curado”, a submissão à prova da F. teria como campo próprio a vida particular do indivíduo.
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