domingo, 6 de julho de 2008

A CRIAÇÃO DA MULHER

Contam os gregos que originariamente só havia um sexo, o masculino. Eram magníficos os dotes do homem, para poder honrar os deuses; mas tão magnificamente dotado era que com os deuses se passou o que às vezes acontece ao poeta que dissipou todas as suas forças na sua criação poética: começaram a invejar o género humano. E pior ainda, passaram a temê-lo, receando que só contrafeito se submetesse ao jugo divino, receando mesmo, embora sem fundamento, que ele chegasse a abalar a solidez celestial. Haviam convocado, portanto, uma força que não acreditavam estar em condições de dominar. Havia pois agitação e preocupação no concílio dos deuses. Muito tinham despendido para criar o homem, tinha sido generosidade; agora era preciso arriscar tudo, era autodefesa, porque tudo estava em jogo, achavam os deuses; e não podiam desfazer-se dele, como um poeta pode desfazer-se do seu pensamento. Pela força não se pode submetê-lo, senão os deuses tê-lo-iam feito, e a verdade é que tinham dúvidas precisamente sobre isso. Portanto era necessário que fosse capturado e submetido por um poder que fosse mais fraco do que o seu e que contudo fosse mais forte, suficientemente forte para o subjugar. Que maravilhoso poder não teria que ser esse! Porém, a necessidade até aos deuses ensina a excederem a inventividade que já possuem. Procuraram, cismaram e encontraram. Esse poder era a mulher, a maravilha da criação; aos olhos dos deuses, uma maravilha maior ainda do que o homem; uma invenção a propósito da qual os deuses, na sua ingenuidade, não puderam deixar de a si mesmos se felicitar. Que mais se pode dizer em honra dela senão que haveria de realizar aquilo que nem os deuses ousaram fazer; que mais se pode dizer senão que ela conseguiu realizá-lo; quão maravilhosa não tem ela que ser para realizar tal coisa!
E, na verdade assim é, a mulher é um caso único, é o que há de mais sedutor, tanto na Terra como no Céu. Se se comparam os dois sexos nesta perspectiva, então o homem é algo de muito imperfeito.
Kierkegaard, In Vino Veritas, 1ª edição, 2005. Lisboa: Antígona, pp. 144-146

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