domingo, 23 de novembro de 2008

METAÉTICA: INTRODUÇÃO vi

Parte VI
Teoria do erro
Simon Blackburn apresenta argumentos muito semelhantes contra a existência de factos morais objectivos em Spreading the Word [Blackburn, 1984, caps. 6 e 7]. Blackburn também desenvolve considerações sobre explicação, motivação e superveniência, mas a sua perspectiva difere da de Mackie num aspecto importante.
Mackie pensa que o pensamento moral comum está comprometido com a suposição de que existem factos morais objectivos. Pensa que, se estamos interessados em analisar conceitos morais como «bem», «certo» e «dever» tal como normalmente os entendemos, temos de concluir que estes conceitos incorporam de algum modo a noção de objectividade. Assim, segundo Mackie o pensamento moral comum incorpora um erro. A sua teoria, como ele próprio diz, é uma teoria do erro da moralidade.
Aqui é útil introduzir uma distinção de Michael Smith [Smith 1994, pp. 63-66 e 185]. Um realista moral é alguém que acredita na objectividade dos valores morais, mas na verdade o realismo é complexo e devemos distinguir duas teses:
A tese conceptual do realista: o conceito moral de certo (por exemplo) é o conceito de uma propriedade objectiva.
A tese substantiva do realista: tal propriedade existe.
A tese conceptual é apenas uma tese sobre os nossos conceitos: procura indicar-nos as condições de verdade das crenças morais. A minha crença de que castigar criminosos é moralmente certo, por exemplo, é verdadeira se, e apenas se, as acções de castigar criminosos têm a propriedade objectiva em questão.
Mackie pensa que esta tese conceptual é verdadeira, mas nega a existência de uma tal propriedade. Pensa que as nossas crenças morais comuns comprometem-nos com a sua existência e que, por esta razão, todas essas crenças são falsas. Assim, embora aceite a tese conceptual, rejeita a tese substantiva.
Pode valer a pena recorrer aqui a uma analogia de Smith [1994, p. 64]. Suponha-se que decidimos fazer uma investigação sobre bruxas. A primeira questão que podemos colocar é esta: o que são exactamente as bruxas? Esta questão requer alguma análise conceptual, e obviamente é suposto os filósofos serem bons nisso. De que estão a falar as pessoas que falam de bruxas? Quais são as condições de verdade das afirmações sobre bruxas? Como teria de ser o mundo para que, por exemplo, a afirmação de que trabalham seis bruxas na Universidade de Lisboa fosse verdadeira? Podemos responder a esta última questão dizendo que a afirmação seria verdadeira se existissem seis mulheres com poderes mágicos a trabalhar na Universidade de Lisboa, mas por agora estamos apenas a investigar conceitos. Ainda não começámos a investigar o próprio mundo: ainda não avançámos para a próxima questão, a questão substantiva. Depois de termos esclarecido o que é suposto serem as bruxas, podemos perguntar se existem bruxas. Depois de termos compreendido o que é preciso para o conceito ser satisfeito, podemos perguntar se de facto alguma coisa o satisfaz. Neste ponto muitos de nós adoptariam uma teoria do erro sobre bruxas. Depois de termos decidido que algo é uma bruxa se, e apenas se, é uma mulher com poderes mágicos, podemos determinar que nada é uma bruxa. Analogamente, a tese conceptual do realista é apenas uma tese sobre o conceito de (por exemplo) moralmente certo. Diz-nos que este é o conceito de uma propriedade objectiva, deixando em aberto o problema de saber se alguma coisa satisfaz esse conceito, ou seja, o problema de saber se a tese substantiva é verdadeira. É esta tese substantiva que Mackie, um defensor da teoria do erro quanto à moralidade, rejeita.
Blackburn não defende a teoria do erro. Tal como Mackie, rejeita a tese substantiva do realista, mas também rejeita a tese conceptual. Pensa que podemos considerar perfeitamente inteligível todo o discurso moral comum sem pensar que este nos compromete com a existência de um domínio de factos morais. Admite que aparentemente esse compromisso se verifica, ou seja, que a um nível superficial a linguagem que usamos para fazer juízos morais dá a ideia de estarmos a indicar factos, mas pensa que podemos entendê-la perfeitamente sem pressupor isso. Na verdade, pensa que o anti-realista pode ir muito longe na tentativa de explicar por que razão, embora não existam factos morais, a um nível superficial a nossa linguagem moral dá a ideia de que existem. Blackburn chama quase-realismo a este projecto que examinaremos mais adiante.
Rejeitar a moralidade?
Dado que Mackie é um defensor da teoria do erro, poderíamos esperar que rejeitasse totalmente a moralidade. Podemos chamar niilista ou rejeicionista quanto à moralidade a quem adopta essa posição. Mackie, no entanto, não chega bem a adoptá-la. Pensa que devemos rejeitar a ideia de que existem factos morais objectivos, mas não vê por que razão não poderemos ainda assim construir uma moralidade para regular a nossa vida, e dedica a maior parte do resto do seu livro à discussão de sugestões e argumentos sobre a melhor maneira de a construir.
Wittgenstein também não recomendou que rejeitássemos a moralidade. Embora tenha passado toda a sua conferência a defender que os juízos éticos são literalmente absurdos, não deixou de insistir que tinha um enorme respeito por esta forma de absurdidade!
É natural pensar que as reacções de Mackie e Wittgenstein às suas próprias conclusões não são muito satisfatórias, mas estas suscitam uma questão importante com que vamos terminar esta aula. Se o anti-realismo ético é verdadeiro, o que podemos concluir? Em que situação é que ficamos? O rejeicionismo não parece uma opção que possamos levar muito a sério. Imagine-se que no caso de João, o assassino de senhoras idosas, decidimos que na verdade não há qualquer facto objectivo sobre a sua perversidade. Será que isto significa que devemos deixar de pensar que João é perverso? Nesse caso, se João for condenado a uma pena de prisão muito longa, não deveremos ir para junto da prisão com cartazes a protestar contra a injustiça de castigar um homem que não fez nada de mal? É óbvio que não, pois certamente isso seria inconsistente com uma posição rejeicionista. Se alguns argumentos metaéticos nos convencerem a deixarmos de nos preocupar com crueldades e assassinatos, também nos darão razões para deixarmos de nos importar com injustiças. Na verdade, talvez nos dessem razões para deixarmos de nos preocupar com quase tudo.
Obviamente, isto parece totalmente descabido. Importamo-nos com muitas coisas de muitas maneiras diferentes, e por que razão deveremos pensar que precisamos de uma teoria metafísica sobre factos morais objectivos para tornar isso legítimo? Afinal, a ética é o domínio de investigação que se ocupa do raciocínio prático, ou seja, do raciocínio sobre o que é melhor fazer, e deixar de realizar este tipo de raciocínio é algo que não conseguimos fazer. Deste modo, como devemos enfrentar as perspectivas do anti-realista? Uma resposta a isto, como Blackburn sugere, é dizer que Mackie está enganado quanto à tese conceptual do realista, isto é, que na verdade o pensamento moral comum não nos compromete com uma metafísica objectivista. Outra resposta é dizer simplesmente que o anti-realista está enganado, que na verdade a sua perspectiva é descabida. Mas esta resposta é ociosa, e quem se incline para ela terá de responder de alguma maneira aos argumentos que, como vimos, o anti-realista tem para oferecer.
James Lenman
Retirado de www.spfil.pt/trolei/

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