Parte II
A tese do determinismo psicológico é que as causas psicológicas prévias determinam todo o nosso comportamento da maneira como determinam o comportamento do sujeito sob hipnose ou o viciado em heroína. Para esta concepção, todo o comportamento, de um ou de outro modo, é psicologicamente compulsivo. Mas, as provas disponíveis sugerem que uma tal tese é falsa. Na realidade, agimos normalmente com base nos nossos estados intencionais – as nossas crenças, esperanças, temores, desejos, etc. – e, nesse sentido, os nossos estados mentais funcionam causalmente. Mas esta forma de causa e efeito não é determinística. Poderíamos ter tido exactamente esses estados mentais e, apesar de tudo, não termos feito o que fazemos. Tanto quanto às causas psicológicas diz respeito, poderíamos ter agido de outra maneira.
Mas é esta solução um avanço sobre o compatibilismo? Não estamos justamente a dizer, mais uma vez, que sim, todo o comportamento é determinado, mas o que chamamos comportamento livre é o tipo determinado por processos racionais de pensamento? Não teremos nós o resultado de que tudo o que fazemos estava inteiramente escrito num livro de história biliões de anos antes de termos nascido e, por conseguinte, nada do que fazemos é livre em qualquer sentido filosoficamente interessante? Se decidimos chamar livre ao nosso comportamento, isto é apenas uma questão de adoptar uma terminologia tradicional. Assim como continuamos a falar de “pôr do Sol”, embora saibamos que o Sol literalmente não se põe, assim também continuamos a falar de “agir por livre vontade”, embora não exista tal fenómeno.
Parte da atracção do determinismo, creio eu, provém de ele parecer consistente com a maneira como o Mundo funciona realmente, pelo menos, tanto quanto conhecemos algo acerca dele pela física. Isto é, se o determinismo fosse verdadeiro, então, o Mundo actuaria na mesmíssima maneira como actua, e a única diferença seria que algumas das nossas crenças a propósito do seu funcionamento seriam falsas. E, por seu turno, esta crença liga-se com crenças acerca da responsabilidade moral e da nossa própria natureza como pessoas. Mas se o libertarismo, que é a tese da vontade livre, fosse verdadeiro, parece que teríamos de fazer algumas mudanças realmente radicais das nossas crenças acerca do Mundo. Para termos uma liberdade radical, parece que deveríamos postular a existência, dentro de cada um de nós, de um si mesmo que fosse capaz de interferir com a ordem causal da natureza, isto é, parece que de certa maneira deveríamos conter alguma entidade que fosse capaz de desviar as moléculas das suas trajectórias. Não sei se uma tal concepção é sequer inteligível, mas decerto não se harmoniza com o que sabemos pela física acerca do modo como funciona o Mundo.
A ciência não deixa espaço para a liberdade da vontade e o indeterminismo da física não oferece para ela qualquer apoio. Por outro lado, somos incapazes de abandonar a crença na liberdade da vontade.
Por que é que não há espaço para a liberdade da vontade na concepção científica contemporânea? Na física, os nossos mecanismos explanatórios básicos funcionam de baixo para cima. E a relação da mente com o cérebro é um exemplo de uma tal relação. As características mentais são causadas por e realizadas em fenómenos neurofisiológicos. Mas deparamos com a causação da mente para o corpo, isto é, deparamos com a causação de cima para baixo, durante uma passagem de tempo. Assim, por exemplo, suponhamos que eu quero causar a libertação de acetilcolina neurotransmissora nas placas terminais do axónio dos meus neurónios motores; posso fazer isso mediante a simples decisão de levantar o meu braço e, em seguida, de o levantar. Aqui, o acontecimento mental, a intenção de levantar o meu braço causa o acontecimento físico, a libertação da acetilcolina – um caso de causação de cima para baixo. Mas a causação de cima para baixo opera unicamente porque os acontecimentos mentais se baseiam na neurofisiologia para se iniciarem. Enquanto aceitarmos esta concepção do modo como a natureza opera, então não parece haver qualquer espaço para a liberdade da vontade, porque, nesta concepção, a mente pode apenas afectar a natureza enquanto é uma parte da natureza. Mas, se assim é, então, tal como o resto da natureza, as suas características são determinadas nos microníveis básicos da física.
Mas se a liberdade é uma ilusão, por que é que é uma ilusão que, aparentemente, somos incapazes de abandonar? A primeira coisa a observar a propósito da concepção da liberdade humana é que ela está essencialmente ligada à consciência. Apenas atribuímos liberdade aos seres conscientes.
Não podemos abandonar a convicção de liberdade, porque esta convicção está inserida em toda a acção intencional normal e consciente. E usamos esta convicção para identificarmos e explicarmos as acções. Este sentido de liberdade não é apenas uma característica de deliberação, mas é parte de qualquer acção, seja premeditada ou espontânea.
SEARLE, John, Mente, Cérebro e Ciência, 2000. Lisboa: Edições 70, pp.105-121
A tese do determinismo psicológico é que as causas psicológicas prévias determinam todo o nosso comportamento da maneira como determinam o comportamento do sujeito sob hipnose ou o viciado em heroína. Para esta concepção, todo o comportamento, de um ou de outro modo, é psicologicamente compulsivo. Mas, as provas disponíveis sugerem que uma tal tese é falsa. Na realidade, agimos normalmente com base nos nossos estados intencionais – as nossas crenças, esperanças, temores, desejos, etc. – e, nesse sentido, os nossos estados mentais funcionam causalmente. Mas esta forma de causa e efeito não é determinística. Poderíamos ter tido exactamente esses estados mentais e, apesar de tudo, não termos feito o que fazemos. Tanto quanto às causas psicológicas diz respeito, poderíamos ter agido de outra maneira.
Mas é esta solução um avanço sobre o compatibilismo? Não estamos justamente a dizer, mais uma vez, que sim, todo o comportamento é determinado, mas o que chamamos comportamento livre é o tipo determinado por processos racionais de pensamento? Não teremos nós o resultado de que tudo o que fazemos estava inteiramente escrito num livro de história biliões de anos antes de termos nascido e, por conseguinte, nada do que fazemos é livre em qualquer sentido filosoficamente interessante? Se decidimos chamar livre ao nosso comportamento, isto é apenas uma questão de adoptar uma terminologia tradicional. Assim como continuamos a falar de “pôr do Sol”, embora saibamos que o Sol literalmente não se põe, assim também continuamos a falar de “agir por livre vontade”, embora não exista tal fenómeno.
Parte da atracção do determinismo, creio eu, provém de ele parecer consistente com a maneira como o Mundo funciona realmente, pelo menos, tanto quanto conhecemos algo acerca dele pela física. Isto é, se o determinismo fosse verdadeiro, então, o Mundo actuaria na mesmíssima maneira como actua, e a única diferença seria que algumas das nossas crenças a propósito do seu funcionamento seriam falsas. E, por seu turno, esta crença liga-se com crenças acerca da responsabilidade moral e da nossa própria natureza como pessoas. Mas se o libertarismo, que é a tese da vontade livre, fosse verdadeiro, parece que teríamos de fazer algumas mudanças realmente radicais das nossas crenças acerca do Mundo. Para termos uma liberdade radical, parece que deveríamos postular a existência, dentro de cada um de nós, de um si mesmo que fosse capaz de interferir com a ordem causal da natureza, isto é, parece que de certa maneira deveríamos conter alguma entidade que fosse capaz de desviar as moléculas das suas trajectórias. Não sei se uma tal concepção é sequer inteligível, mas decerto não se harmoniza com o que sabemos pela física acerca do modo como funciona o Mundo.
A ciência não deixa espaço para a liberdade da vontade e o indeterminismo da física não oferece para ela qualquer apoio. Por outro lado, somos incapazes de abandonar a crença na liberdade da vontade.
Por que é que não há espaço para a liberdade da vontade na concepção científica contemporânea? Na física, os nossos mecanismos explanatórios básicos funcionam de baixo para cima. E a relação da mente com o cérebro é um exemplo de uma tal relação. As características mentais são causadas por e realizadas em fenómenos neurofisiológicos. Mas deparamos com a causação da mente para o corpo, isto é, deparamos com a causação de cima para baixo, durante uma passagem de tempo. Assim, por exemplo, suponhamos que eu quero causar a libertação de acetilcolina neurotransmissora nas placas terminais do axónio dos meus neurónios motores; posso fazer isso mediante a simples decisão de levantar o meu braço e, em seguida, de o levantar. Aqui, o acontecimento mental, a intenção de levantar o meu braço causa o acontecimento físico, a libertação da acetilcolina – um caso de causação de cima para baixo. Mas a causação de cima para baixo opera unicamente porque os acontecimentos mentais se baseiam na neurofisiologia para se iniciarem. Enquanto aceitarmos esta concepção do modo como a natureza opera, então não parece haver qualquer espaço para a liberdade da vontade, porque, nesta concepção, a mente pode apenas afectar a natureza enquanto é uma parte da natureza. Mas, se assim é, então, tal como o resto da natureza, as suas características são determinadas nos microníveis básicos da física.
Mas se a liberdade é uma ilusão, por que é que é uma ilusão que, aparentemente, somos incapazes de abandonar? A primeira coisa a observar a propósito da concepção da liberdade humana é que ela está essencialmente ligada à consciência. Apenas atribuímos liberdade aos seres conscientes.
Não podemos abandonar a convicção de liberdade, porque esta convicção está inserida em toda a acção intencional normal e consciente. E usamos esta convicção para identificarmos e explicarmos as acções. Este sentido de liberdade não é apenas uma característica de deliberação, mas é parte de qualquer acção, seja premeditada ou espontânea.
SEARLE, John, Mente, Cérebro e Ciência, 2000. Lisboa: Edições 70, pp.105-121
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