quinta-feira, 11 de setembro de 2008

Os instrumentos do ofício iii

Parte III
Comentários adicionais acerca de verdade e de validade
Já notámos que um argumento válido pode ter premissas falsas e não conseguir estabelecer a verdade da sua conclusão. Contudo, é igualmente essencial notar que um argumento que não seja sólido, embora não consiga estabelecer a verdade da sua conclusão, pode no entanto ter uma conclusão verdadeira. Por consequência, ao mostrar que um argumento não é sólido porque tem algumas premissas falsas, não se prova que a conclusão do argumento é falsa.
Para ilustrar estes pontos consideremos dois argumentos, sendo um, um argumento teísta e o outro, um argumento ateu, que, embora ambos válidos, têm conclusões contrárias. O argumento do teísta é o seguinte:
O mundo exibe provas conclusivas de desígnio.
Se o mundo exibe provas conclusivas de desígnio, então o mundo tem um autor, que é Deus.
LogoO mundo tem um autor, que é Deus.
O segundo argumento poderia ser usado por um ateu:
Se Deus existe, há um ser todo-poderoso, omnisciente, e perfeitamente bom que criou o mundo.
Se há um ser todo-poderoso, omnisciente, e perfeitamente bom que criou o
mundo, então não há mal no mundo.
Não é verdade que não há mal no mundo.
LogoDeus não existe.
Estes dois argumentos têm conclusões diametralmente opostas. A conclusão do primeiro é inconsistente com a conclusão do segundo; assim, um dos argumentos tem de ter uma conclusão falsa. Ambos são perfeitamente válidos. A sua conclusão tem de ser verdadeira se as premissas forem verdadeiras. Portanto, um dos argumentos, embora válido, não pode ser sólido. Pelo menos uma das premissas de um dos argumentos tem de ser falsa; ou ambos podem conter algumas premissas falsas, e nesse caso nenhum dos dois é sólido. Isto ilustra a ideia de que o facto de um argumento não ser sólido não mostra que a sua conclusão é falsa. Um dos argumentos pode ter uma conclusão verdadeira apesar de nenhum deles ser sólido. Ao atacar um argumento, podemos apenas estabelecer que não é sólido. Não podemos deste modo mostrar que a sua conclusão é falsa. Por outro lado, pela apresentação de um argumento que é sólido e não é uma petição de princípio, podemos estabelecer que a conclusão do argumento é verdadeira. Por esse motivo, construir argumentos sólidos, embora mais difícil que expor as falácias dos argumentos dos outros, é a tarefa que dá os melhores resultados.
Modalidade
Possibilidade, analiticidade e consistência
Ao definir a noção de validade, usámos frequentemente a palavra «impossível». Este termo tem muitos usos, mas até agora examinámos apenas um único uso do termo. Indicámos este uso ao falar de impossibilidade lógica. A ideia intuitiva de impossibilidade lógica é a seguinte: pode-se mostrar que algumas coisas são impossíveis recorrendo apenas à lógica e ao significado dos termos. Estas coisas são logicamente impossíveis. É logicamente impossível que Deus exista e não exista, visto que é uma mera verdade lógica que nada pode existir e não existir. Dizer que uma afirmação descreve algo logicamente impossível é equivalente a dizer que a afirmação é contraditória ou inconsistente. Eis alguns exemplos de afirmações contraditórias:
O João passa a Introdução à Filosofia e o João não passa a Introdução à Filosofia.
Todos os jogadores de futebol são atletas mas alguns jogadores de futebol não são atletas.
Qualquer irmão é uma mulher.
Tomada literalmente, nenhuma destas afirmações pode ser verdadeira. Mas para o mostrar são necessárias considerações ligeiramente diferentes para cada caso. A primeira afirmação é uma contradição perfeitamente explícita. A segunda frase conjunta (1) desta conjunção nega com a palavra «não» o que a primeira frase conjunta afirma. A segunda afirmação, embora obviamente contraditória, difere da primeira. Na segunda afirmação, o que é afirmado na primeira frase conjunta não é negado na segunda usando apenas a palavra «não». Para mostrar que a segunda afirmação é contraditória precisamos examinar o significado das palavras «algum» e «todos», assim como da palavra «não». Estas três palavras ocorrem no léxico do lógico e são consideradas "palavras lógicas" porque aparecem nas formas válidas de argumentação da lógica formal.
A terceira afirmação, embora igualmente contraditória, origina uma situação algo diferente. Para mostrar que é contraditória, para além de recorrer à lógica formal, temos também de examinar o significado ou definição do termo «irmão», isto é, devemos saber que uma pessoa a quem o termo se aplica é por definição do sexo masculino e não do feminino. Uma vez isto claro, poderemos ver que a afirmação enuncia que algumas pessoas são e não são do sexo feminino. Por razões puramente lógicas, isto é impossível. Contudo, o termo «irmão» não é um termo da lógica formal; é um termo descritivo. Alguns filósofos negam que possa resultar alguma coisa importante da distinção entre termos lógicos e termos descritivos, porque sustentam que, em última análise, a distinção é arbitrária e artificial. Para os nossos propósitos, é suficiente notar que, para mostrar que algumas afirmações são contraditórias, como as anteriores afirmações 2 e 3, temos de examinar o significado ou definição dos termos-chave dentro da afirmação.
Necessidade e analiticidade
As afirmações que descrevem algo logicamente impossível são contraditórias e por isso pode-se mostrar que são falsas recorrendo apenas à lógica e ao significado dos termos. Pode-se mostrar que outras afirmações são verdadeiras recorrendo apenas à lógica e ao significado dos termos. Estas afirmações descrevem algo logicamente necessário e são frequentemente chamadas «afirmações analíticas».
Por exemplo, é logicamente necessário que Deus exista ou não exista. A negação de uma afirmação logicamente impossível é uma afirmação logicamente necessária, e vice-versa. Por exemplo, a afirmação
1a. Não é verdade que o João passa a Introdução à Filosofia e o João não passa a Introdução à Filosofia.
é a negação da afirmação 1 e é logicamente necessária. Analogamente, as afirmações
2a. Não é verdade que todos os jogadores de futebol são atletas mas alguns jogadores de futebol não são atletas.3a. Não é o caso que qualquer irmão é uma mulher.
que são negações de 2 e 3, respectivamente, são ambas logicamente necessárias ou analíticas. A necessidade destas afirmações pode ser ainda mais evidente se as reformularmos. Por exemplo, 1a e 2a são equivalentes a
1b. Ou o João passa a Introdução à Filosofia ou o João não passa a Introdução à Filosofia.2b. Ou todos os jogadores de futebol são atletas ou alguns jogadores de futebol não são atletas.
respectivamente. É óbvio que todas estas afirmações são logicamente necessárias. A necessidade de afirmações como 2b e 3a pode tornar-se ainda mais explícita se considerarmos as definições dos termos «todos», «alguns», «irmão», e «feminino». Para compreender com exactidão como é que isto pode ser feito, temos de examinar o tópico das definições, o que faremos adiante. Antes disso, contudo, teremos de considerar um teste simples para determinar a necessidade e a impossibilidade.
Mundos possíveis: um teste de possibilidade e necessidade
Há um teste de possibilidade ou impossibilidade lógica que pode revelar-se útil e divertido. É imaginar mundos possíveis. Para decidir se algo é logicamente necessário, pergunta a ti próprio se podes imaginar um mundo possível no qual a afirmação pudesse ser falsa sem mudar o significado de qualquer das palavras que a compõem. Encontrar um mundo possível desses é como encontrar um contra-exemplo. É um caso possível que refuta a afirmação de que algo é logicamente necessário. Para vermos um exemplo, podes pensar que é obviamente verdade que todo o pensamento ocorre num cérebro. Talvez isto seja verdade no nosso mundo. É, contudo, fácil imaginar um mundo no qual há seres, almas não incarnadas, por exemplo, que pensam. Não precisas de admitir que há realmente um mundo desses, mas apenas a sua possibilidade, para refutar a asserção de que é logicamente necessário que todo o pensamento ocorra em cérebros. Por consequência, embora possa ser verdade no nosso mundo que todo o pensamento ocorre em cérebros, não é logicamente necessário que todo o pensamento ocorra em cérebros. Podemos imaginar mundos possíveis nos quais seres pensem sem terem cérebros. O Paraíso é um desses mundos imaginados, e, desgraçadamente, também o inferno.
Temos, assim, um teste, uma espécie de experiência mental, para testar a asserção de que uma afirmação é logicamente necessária. Se podes imaginar um mundo possível no qual a proposição é falsa, então não é logicamente necessária. Isto acontece porque a alegação de que algo é logicamente necessário é equivalente à alegação de que é verdadeiro em todos os mundos possíveis e falso em nenhum. O recurso a mundos possíveis é também útil quando examinamos se uma proposição é logicamente impossível. Tenta imaginar um mundo possível, que pode ser bastante diferente do mundo real, no qual a proposição seja verdadeira. Se podes pensar um tal mundo, então refutaste a alegação de que a proposição é logicamente impossível. Isso acontece porque a alegação de que uma proposição é logicamente impossível é equivalente à alegação de que não há nenhum mundo possível em que seja verdadeira. Por isso, encontrar um mundo possível no qual a proposição é verdadeira refuta a alegação de que é logicamente impossível. Considera a alegação de que é logicamente impossível aos gatos falar. Nenhum gato do mundo fala português, claro, mas podemos imaginar um mundo no qual os gatos evoluíram de modo a poderem aprender a falar, e que alguns deles falam português. Em vez de miarem queixosamente à porta, os gatos deste mundo dizem: "Eu gostaria de ir lá fora agora, por favor". Isto não acontece, mas é possível e divertido contemplar o mundo imaginado. Isso é suficiente para refutar a alegação de que é logicamente impossível que os gatos falem português.
Deste modo, podes testar se uma proposição é logicamente impossível perguntando a ti próprio se podes pensar num mundo possível no qual a proposição seja verdadeira. Se podes, então a proposição não é logicamente impossível. A alegação de que uma proposição é necessária ou impossível é implicitamente uma alegação acerca da verdade ou falsidade da proposição em todos os mundos possíveis. A alegação de que uma proposição é logicamente necessária é equivalente à alegação de que é verdadeira em todos os mundos possíveis, enquanto a alegação de que é logicamente impossível é equivalente à alegação de que é falsa em todos os mundos possíveis. É por esta razão que o teste funciona.
Pensar acerca de mundos possíveis pode dar-te um grande prazer porque podes dar livre curso à tua imaginação em vez de estar confinado à consideração do mundo como realmente é. Contudo, sê cuidadoso. A imaginação pode exceder tanto o mundo possível como o real. Se imaginas um mundo em que há quadrados redondos conversando com números, imaginas um mundo que não é possível. Não há nenhum mundo possível que contenha quadrados redondos porque esses objectos seriam ao mesmo tempo redondos e não redondos, quadrados e não quadrados. Se o mundo que imaginaste é desta forma implicitamente contraditório, não é um mundo possível. Portanto, o teste tem de ser usado com cuidado. No entanto, é útil aos filósofos como método-padrão para determinar aquilo a que se chama «a modalidade das proposições»; isto é, a sua necessidade, impossibilidade ou possibilidade.
Podemos recorrer aos mundos possíveis para mostrar que uma proposição é logicamente necessária, ou que uma proposição é logicamente impossível, em vez de tentar apenas refutar essas alegações? Se tentaste imaginar mundos possíveis nos quais uma proposição seja falsa, e após um esforço judicioso não encontraste nenhum, podes concluir a título experimental que a proposição é necessária. Analogamente, se tentaste imaginar mundos possíveis nos quais uma proposição seja verdadeira, e após deliberação cuidadosa não pudeste encontrar nenhum, podes concluir a título experimental, que a proposição é impossível. Como resultado da tua busca por um mundo possível, podes apenas concluir a título experimental que uma proposição é necessária ou impossível; porque a alegação de necessidade ou impossibilidade é uma alegação acerca de todos os mundos possíveis. Claro que na tua investigação podes não dar por alguns mundos possíveis. À medida que te tornares um explorador de mundos possíveis experiente, tornar-te-ás mais confiante na descoberta de mundos possíveis. Por consequência, o teu uso do teste tornar-se-á mais confiante, e tornar-te-ás um filósofo mais competente.
Para determinar se uma proposição é logicamente necessária ou logicamente impossível, é importante compreender o seu significado tão claramente quanto possível. Na verdade, para determinar se descreveste um contra-exemplo ou um mundo possível, tens frequentemente de reflectir no significado das palavras na tua descrição para garantir que não se esconde nela nenhuma contradição. As definições dizem-nos o que uma palavra significa, e portanto temos de virar-nos agora para o exame das definições.
Cornman, Lehrer e Pappas

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