segunda-feira, 15 de setembro de 2008

O que é o modelo crença-desejo?

Parte I
1. A definição canónica do modelo crença-desejo
O modelo crença-desejo é uma teoria da acção composta por duas teses:
a) Para racionalizar uma acção, é sempre necessário atribuir ao agente (pelo menos) um desejo e (pelo menos) uma crença relevante.
b) O par formado pelo desejo e pela crença relevante que racionaliza a acção também constitui a causa dessa acção.
Lá para a frente, veremos que é necessário reformular ambas as teses, mas, por agora, podem ficar assim.
2. A diferença entre "racionalizar uma dada acção" e "mostrar que essa acção é racional"
O resto do ensaio será dedicado a clarificar as teses a) e b). Como veremos, não será tarefa fácil, devido ao número imenso de erros subtis que se podem cometer. Nesta secção e na próxima, ocupar-me-ei da primeira tese. Nas duas seguintes, da segunda.
Um dos meus maiores medos é o de que o estudante incauto seja encaminhado para o artigo clássico de Davidson, "Actions, reasons and causes", veja lá a expressão "racionalizar uma acção", e pense que isso seja a mesma coisa que "mostrar que essa acção é racional". Isto não é bem verdade. Como veremos dentro de momentos, no entanto, é um erro fácil de cometer.
Uma teoria da acção procura dizer como é que devemos explicar uma acção. Em geral, isso implicará atribuir certos estados mentais (como crenças e desejos) ao agente. (As teorias da acção que defendem que a atribuição de estados mentais ao agente não é fulcral para explicar a sua acção, como a teoria da acção de Dancy, são denominadas "não-psicologistas".) Uma teoria da razão prática, por outro lado, procura dizer em que circunstâncias é que uma acção é racional ou irracional. (Como mencionei em "Uma objecção à teoria instrumental da razão prática", seria mais correcto dizer "teoria da racionalidade na acção".)
A teoria da razão prática que recolhe aprovação mais ampla é a teoria intrumental, segundo a qual uma acção é racional se e só se o agente pensa (correcta ou incorrectamente) que essa acção é o meio mais adequado para realizar os seus desejos.
Os defensores do modelo crença-desejo costumam ser logo enfiados no grupo dos que dizem que não devemos ir além da teoria intrumental da razão prática. Esta atitude é demasiado precipitada. Embora as teorias da acção e as da razão prática não estejam completamente separadas, a verdade é que gozam de um certo grau de autonomia uma em relação à outra. Não seria inconsistente da parte de um defensor do modelo crença-desejo opôr-se a uma teoria meramente intrumental da razão prática.
Suponhamos que alguém defendia que qualquer acção que pusesse em perigo a sobrevivência da espécie humana seria irracional. Não estou a dizer que alguém tenha mesmo defendido isto: estou simplesmente a dizer que é possível ter-se esta posição. Não é preciso pensar muito para se chegar à conclusão de que um defensor da teoria instrumental não pode concordar com tal coisa. De acordo com a teoria intrumental, uma acção é racional se o agente pensa que é o meio mais eficiente para realizar os seus desejos; só se o agente agir, conscientemente, de um modo que pensa não ser o mais eficiente para realizar os seus desejos, é que estará a ser irracional. Por isso, um humano (ou seja, o defensor da teoria instrumental) dirá que agir de modo a pôr em perigo a sobrevivência da espécie humana será racional, caso o agente queira pôr em perigo a sobrevivência da espécie humana, ou irracional, caso ele não queira.
À partida, nada impede um defensor do modelo crença-desejo de defender que é irracional realizar acções que ponham em perigo a sobrevivência da espécie humana. Nesse caso, a posse do desejo de queimar combustível e a da crença de que é possível queimar combustível atirando um fósforo aceso para dentro de um bidão cheio de gasolina racionalizaria a nossa acção de queimar combustível, mas não a tornaria racional, dado que queimar combustível seria, em última análise, mau para a sobrevivência da espécie.
Qual é a diferença, então, entre racionalizar uma acção e mostrar que ela é racional? A primeira coisa que há que dizer é a que a noção de "racionalização" é meramente descritiva, ao passo que a noção de "mostrar que é racional" é normativa. Ao racionalizarmos um acção, não estamos, desse modo, a mostrar que a acção se coaduna com certas regras de condutas; estamos simplesmente a fornecer uma explicação da acção. Por outro lado, ao dizermos que uma acção é racional ou irracional, estamos a emitir opinião sobre se essa acção se coaduna ou não com certas regras de conduta que todos os agentes racionais deviam, idealmente, seguir (como acontece no exemplo do parágrafo anterior).
Racionalizar uma acção é torná-la inteligível; é tornar claro porque é que o agente a realizou. De acordo com o defensor do modelo crença-desejo, isso implicará olhar para a sua acção à luz dos seus desejos e das suas crenças relevantes e tentar descortinar porque estaria ele interessado em realizá-la. Ao atribuir-lhe o desejo de queimar combustível e a crença de que é possível fazê-lo atirando um fósforo aceso para dentro de um bidão cheio de gasolina, estamos a tornar claro porque é que faria sentido que o agente atirasse o fósforo para dentro do bidão, tal como atirou.

Pedro Madeira
Retirado de http://www.intelectu.com/

Sem comentários: