segunda-feira, 8 de setembro de 2008

Os instrumentos do ofício ii

Parte II
Outras formas válidas de argumentação
Obtemos algumas formas válidas de argumentação inserindo expressões que não são proposições. Para vermos isto, reflecte no seguinte argumento:
Todas as acções correctas são acções que produzem boas consequências.
Todas as acções que produzem boas consequências são acções que maximizam a felicidade e minimizam o sofrimento.
Logo; todas as acções correctas são acções que maximizam a felicidade e minimizam o sofrimento.
A mais pequena reflexão convencer-te-á de que se as premissas deste argumento são verdadeiras, então a conclusão tem também de ser verdadeira. Este argumento não tem a forma de um Modus Ponens, ou qualquer das outras formas examinadas anteriormente. O argumento é válido em virtude de ser um argumento com a seguinte forma:
Todos os X são Y.
Todos os Y são Z.
LogoTodos os X são Z.
Todos os argumentos desta forma são válidos. Obtemos um argumento desta forma pela substituição das letras X, Y, e Z por expressões que descrevem classes de coisas. Se substituirmos X pela expressão «acção correcta», Y por «acções que produzem boas consequências», e Z por «acções que maximizam a felicidade e minimizam o sofrimento», obteremos o argumento agora apreciado. Outras formas válidas de argumentação deste género são as seguintes:
Nenhum X é Y.
Todos os Z são X.
Nenhum Z é Y.
Todos os X são Y.
Alguns X são Z.
Alguns Z são Y.
Todos os X são Y.
Alguns X não sãp Z.
Alguns Y não são Z.
Estes argumentos são conhecidos como silogismos categóricos.
Validade e verdade
Os argumentos com uma forma válida são válidos mesmo que sejam completamente absurdos. Por exemplo, o argumento seguinte é válido:
Todas as mulheres são tigres.
Todos os tigres são homens.
LogoTodas as mulheres são homens.

Este argumento tem premissas e conclusão falsas. O facto de ser válido revela o carácter hipotético da validade. A validade dum argumento destes significa que nos garante que a conclusão tem de ser verdadeira se as premissas são verdadeiras.
Se um argumento pode ser válido e no entanto ter uma conclusão disparatadamente falsa, para que serve a validade? Por que deveremos estar interessados na validade? A resposta é que um argumento válido preserva a verdade. A verdade das premissas de um argumento válido é preservada na conclusão. Claro que, se as premissas não são verdadeiras, então mesmo um argumento válido não pode garantir que a conclusão é verdadeira. Mas apenas os argumentos válidos preservam a verdade. Uma analogia pode ajudar a clarificar este ponto. Podemos mais ou menos dizer que os argumentos válidos preservam a verdade como os bons frigoríficos preservam a comida. Se a comida quando a colocas num frigorífico está estragada, então até um bom frigorífico não a pode preservar. Mas se a comida colocada num bom frigorífico é fresca, então o frigorífico preservá-la-á. Os bons frigoríficos e os argumentos válidos preservam respectivamente a comida fresca e a verdade. Mas, tal como os primeiros não podem preservar a comida quando a comida está estragada, também os últimos não podem preservar a verdade quando as premissas são falsas. Se é lixo que lá metemos, é lixo que recebemos. No entanto, merece a pena termos frigoríficos e argumentos válidos porque preservam algo bom quando o temos, e sem eles acabamos com algo estragado mesmo quando começámos com algo impecável. Portanto, devemos desejar a validade e evitar a invalidade.
O método dos contra-exemplos e os mundos possíveis
Examinámos várias formas válidas de argumento. Contudo, estas formas são apenas umas quantas entre muitas. Para os nossos propósitos, não é necessário, mesmo que fosse útil, saber todas as formas válidas de argumento. Em vez disso confiaremos num teste de validade mais intuitivo. Primeiro, precisamos de um teste de invalidade, isto é, um método para mostrar que a conclusão de um argumento não se segue validamente das premissas. A técnica que iremos adoptar é conhecida como «método dos contra-exemplos».
Encontrar um contra-exemplo para um argumento é uma questão de imaginar um mundo possível no qual as premissas sejam verdadeiras e a conclusão falsa. A possibilidade desse mundo mostra que o argumento é inválido. Podes pensar em mundos possíveis como variantes do nosso mundo actual. Por cada aspecto que o nosso mundo actual possa ser diferente do que é, há um mundo possível que é diferente do nosso mundo actual nesse aspecto. Por exemplo: a crise do Iraque poderia ter dado origem à terceira guerra mundial; portanto, há um mundo possível em que esta crise leva à guerra. O Benfica poderia não ter perdido o campeonato; portanto, há um mundo possível onde não perdeu. Os teus pais poderiam nunca se ter encontrado; portanto, há um mundo no qual nunca nasceste. A expressão «mundo possível» é apenas uma forma imaginativa de falar acerca do modo como as coisas poderiam ter sido mas que na realidade não são. É muito fácil construir mundos possíveis: sempre que imaginas uma alteração possível ao mundo real, constróis um mundo possível que difere a respeito dessa alteração do mundo real. Encontrar um contra-exemplo para um alegado argumento válido desinteressante é uma questão de construir um mundo possível no qual as premissas do argumento são verdadeiras e a conclusão falsa. Isto mostra que é possível as premissas serem verdadeiras e a conclusão falsa.
Podes dar asas à imaginação ao pensar nestes mundos e nestes exemplos, mas não podes voar para além do possível. Um contra-exemplo não precisa de ser um exemplo de algo que tenha alguma vez acontecido ou de algo que possa acontecer. Desde que o contra-exemplo descreva claramente algo possível, um mundo claramente possível no qual a conclusão é falsa e as premissas verdadeiras, a pretensão do argumento à validade foi refutada. Podes refutar um argumento inválido pelo uso da tua imaginação. Tentemos fazê-lo. Examina o seguinte argumento:
Todos os comunistas se opõem ao capitalismo.
O Silva opõe-se ao capitalismo.
LogoO Silva é comunista.

É muito fácil descrever um contra-exemplo que mostre que a conclusão deste argumento não se segue das premissas. Imagina um mundo possível no qual o Silva é uma pessoa que acredita que todas as riquezas e propriedades devem ser possuídas e controladas pela sua família e passadas por herança. Portanto, ele rejeita o capitalismo e o comunismo a favor do Silvismo, uma doutrina económica até agora desconhecida que afirma que tudo deve pertencer aos Silvas. O que é descrito neste exemplo é um mundo possível, e, supondo que a primeira e a segunda premissas são verdadeiras, é um exemplo no qual as premissas são verdadeiras e a conclusão falsa. Este contra-exemplo mostra que é possível às premissas do argumento serem verdadeiras e à conclusão ser falsa. Mostrou-se que o argumento é inválido. A imaginação triunfa sobre a invalidade. O argumento é destruído.
As observações anteriores ilustram o método dos contra-exemplos tal como se aplica aos argumentos. É essencialmente um método para estabelecer a invalidade. Também temos alguns testes para a validade. Se um argumento tem uma das formas válidas de argumento citadas acima, então é um argumento válido. Além disso, pode-se mostrar que um argumento é válido pelo uso repetido das formas de argumento. Contudo, alguns argumentos são obviamente válidos, mesmo que não sejam de nenhumas das formas de argumento discutidas. Por exemplo, de uma afirmação como
A Joana é advogada criminal.
podemos obviamente concluir validamente que
A Joana é advogada.
Uma vez que há argumentos válidos que não pertencem a nenhuma das formas de argumento aqui enunciadas, precisamos de um procedimento que permita decidir se um argumento é válido. O nosso procedimento será como segue. Veremos um argumento como inocente até prova de que é culpado. Isto é, aceitaremos um argumento como válido até que pensemos nalgum contra-exemplo que prove que é inválido. Claro que este procedimento não deve ser aplicado irreflectidamente ou acriticamente. Deveremos perguntar a nós mesmos se é de todo possível mostrar que este argumento é inválido por intermédio de um contra-exemplo. Deveremos passear as nossas imaginações pelos mundos possíveis. Se, após uma reflexão cuidadosa, concluirmos que não se pode encontrar nenhum contra-exemplo, poderemos a título experimental aceitar o argumento como válido. Este será o procedimento que adoptaremos.
Petições de princípio
Outras características de um argumento, algumas das quais referimos já, podem levar-nos a rejeitar um argumento mesmo que o consideremos válido. Podemos saber, por exemplo, que as premissas de um argumento são falsas. Outra razão importante para rejeitar um argumento é que podemos ver que o argumento é uma petição de princípio. Um argumento é uma petição de princípio quando uma premissa do argumento é meramente a reafirmação da conclusão.
Supõe que um filósofo está a afirmar que nenhum acto involuntário deve ser punido. O argumento seguinte é manifestamente uma petição de princípio:
Todos os actos que devem ser punidos são voluntários.
LogoTodos os actos que devem ser punidos não são involuntários.
Neste argumento, a conclusão e a premissa são diferentes formas de dizer a mesma coisa. Assim, se a conclusão do argumento é o que está em discussão, então o argumento é uma petição de princípio.
Às vezes a premissa que reafirma a conclusão numa petição de princípio está melhor disfarçada. Considera o argumento seguinte:
Um acto sem a volição do agente não deve ser punido.
Um acto involuntário é um acto sem a volição do agente.
LogoUm acto involuntário não deve ser punido.

Descobre-se que este argumento é uma petição de princípio quando perguntamos o que significa dizer que um acto é "sem a volição do agente", porque se tivermos reflectido nessa curiosa expressão, tornar-se-á óbvio que significa mais ou menos "involuntário". Assim, quando compreendemos o que a primeira premissa do argumento significa, percebemos que afirma precisamente a mesma coisa que a conclusão.
Um exemplo de um argumento que não é uma petição de princípio e que tem a mesma conclusão é o seguinte:
Nenhum acto involuntário é errado.
Um acto não deve ser punido a menos que seja errado.
LogoNenhum acto involuntário deve ser punido.
Nenhuma destas premissas é uma reformulação disfarçada da conclusão. Dizer que um acto é voluntário é muito diferente de dizer que é errado, porque muitos actos voluntários são perfeitamente correctos. As premissas deste argumento válido podem ser desafiadas. Mas esta é a única forma que um contendor tem para escapar à conclusão.
Cornman, Lehrer e Pappas
Retirado de www.criticanarede.com

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