Os filósofos procuram resolver problemas. É por isso que apresentam teorias, ideias ou teses. Estas três coisas não são exactamente o mesmo, mas para simplificar iremos falar apenas de teorias. A diferença é a seguinte: ao passo que uma teoria é uma forma completamente articulada de resolver um problema, uma ideia ou uma tese é algo mais vago. Mas o que há de comum entre as ideias, as teorias e as teses é que todas elas procuram resolver problemas.
Ora, sempre houve boas e más teorias, seja qual for o problema que procuram resolver. As teorias dos filósofos não podem constituir excepção. Assim, também há boas e más teorias filosóficas. Mas, como é óbvio, apenas estamos interessados nas boas teorias filosóficas. Por isso se torna crucial saber distinguir as boas das más teorias. Há duas maneiras de avaliarmos teorias, para procurarmos saber se são boas ou más: 1) podemos procurar saber se a teoria resolve o problema que pretendia resolver, e se essa solução é aceitável; 2) podemos procurar saber quais são os argumentos em que essas teorias se apoiam e verificar se tais argumentos constituem boas razões a favor daquilo que nelas se defende. Assim, 2 obriga-nos a pensar deste modo: «Que razões me dá o autor para aceitar a teoria dele?». E 1 obriga-nos a pensar assim: «Se eu aceitar a teoria dele, consigo explicar melhor o que a teoria procurava explicar, ou consigo resolver o problema que a teoria queria resolver? Será que há alternativas melhores a esta teoria?». Ora, tanto no primeiro como no segundo caso, temos de saber avaliar argumentos. Temos de saber se os argumentos que apoiam a teoria são bons ou não, e temos de saber se são bons ou não os argumentos que mostram que a teoria explica o que queria explicar e resolve o problema que queria resolver.
No caso dos filósofos, conhecer os argumentos que sustentam as suas teorias é ainda mais importante do que noutros casos. Isso é assim porque os problemas da filosofia são problemas de carácter conceptual e não empírico. Dificilmente acontece, com base em factos empíricos, mostrar que uma teoria filosófica é verdadeira ou falsa, ao contrário do que se verifica com muitas teorias científicas. Não há factos empíricos que mostrem que Deus existe ou não existe; mas a teoria segundo a qual existe vida em Marte pode ser refutada ou confirmada pelos factos. Daí que o valor de uma teoria filosófica, mais do que qualquer outro tipo de teoria, dependa essencialmente dos argumentos que a sustentam.
Não podemos, pois, saber se uma teoria é boa se não soubermos avaliar a qualidade dos seus argumentos. Esse é, precisamente, o nosso objectivo ao estudar lógica. Eis, então, a nossa primeira pergunta:
O que é um argumento?
Podemos começar por dizer que um argumento é um conjunto de frases. Só que não se trata de um qualquer conjunto de frases. O seguinte conjunto de frases, por exemplo, não é um argumento:
Gosto do Algarve por causa do clima, do Alentejo por causa do silêncio e do Alto Douro por causa da paisagem. E se nas próximas férias desse uma volta pelo país?
Para que um conjunto de frases constitua um argumento tem de haver entre elas uma certa relação, de tal modo que uma, e só uma, se apresente como conclusão e que todas as outras sirvam como razões para obter essa conclusão. Às frases, ou afirmações, que oferecemos como razões chamamos «premissas», podendo haver uma ou mais premissas num argumento; à afirmação que daí obtemos, fazendo apelo às premissas, chamamos, como se viu, «conclusão». Eis um exemplo de um conjunto de frases que é um argumento:
Se os filósofos têm sempre razão, então não vale a pena discutir o que dizem, porque se têm sempre razão não temos nada para criticar e se não temos nada para criticar não vale a pena discutir o que dizem.
Neste conjunto de frases há uma delas que é a conclusão e duas outras que são premissas. Perante um argumento, a primeira coisa a fazer é um trabalho de interpretação, identificando a conclusão e as premissas (ou premissa, caso haja apenas uma).
O que quero defender com o argumento anterior? É claro que estou a defender que «se os filósofos têm sempre razão, então não vale a pena discutir o que dizem». Esta frase, por sinal a primeira, é a conclusão. E que razões adianto para isso? Duas: «se têm sempre razão não temos nada para criticar» e «se não temos nada para criticar não vale a pena discutir o que dizem». Se quisermos, podemos reformular o argumento de modo a tornar as suas premissas e conclusão ainda mais claras. Podemos, por exemplo, destacar em primeiro lugar as suas premissas e depois a conclusão, de modo a exibir claramente cada uma delas:
Se os filósofos têm sempre razão, não temos nada para criticar. Se não temos nada para criticar, não vale a pena discutir o que dizem. Logo, se têm sempre razão, não vale a pena discutir o que dizem.
Torna-se, deste modo, mais fácil não apenas identificar premissas e conclusão como também verificar se a conclusão se segue das premissas, isto é, se as premissas apoiam a conclusão. Não podemos, contudo, esperar que os argumentos sejam apresentados sempre de modo a tornar completamente claras as suas premissas e conclusões. Na linguagem comum, e nos textos filosóficos, as premissas e conclusões dos argumentos são frequentemente difíceis de detectar, pois nem sempre se dispõem segundo uma ordem fixa. Por vezes surgem até intercaladas com outras frases que nem sequer fazem parte do argumento. Veja-se o seguinte exemplo:
Para quê discutir o que os filósofos dizem? Não vale a pena discutir o que dizem se não temos nada para criticar e não temos nada para criticar se têm sempre razão. Não me interessa perder tempo assim! Não vale a pena discutir o que dizem se têm sempre razão.
Como se vê, este é ainda o mesmo argumento, só que apresentado de maneira menos acessível. Convém, neste momento, dizer que há, mesmo assim, palavras ou expressões que costumam acompanhar quer as premissas, quer a conclusão e que facilitam a sua identificação. Trata-se de termos e de expressões que muitas vezes anunciam ou introduzem as premissas e a conclusão de um argumento. Termos e expressões como «logo», «daí que», «assim», «portanto» e «por isso» costumam servir para anunciar a conclusão inferida; termos e expressões como «porque», «pois», «uma vez que», «posto que», «tendo em conta que», «em virtude de», «devido a» e «dado que» indicam que se irão oferecer razões (premissas) para concluir algo. Frequentemente as premissas aparecem ligadas entre si por termos como «e», «ora» e «mas», ou por uma vírgula (uma pausa breve, no discurso oral) e também por um ponto final (uma pausa mais longa, no discurso oral). Com esta informação, torna-se relativamente fácil identificar as premissas e conclusão do seguinte argumento:
Tenho estudado lógica, uma vez que se não tivesse estudado lógica não seria bem sucedido em filosofia. Mas eu tenho sido bem sucedido em filosofia.
As premissas são (i) «se não tivesse estudado lógica não seria bem sucedido em filosofia» e (ii) «eu tenho sido bem sucedido em filosofia». A conclusão aparece logo no início e é «tenho estudado lógica». Qualquer pessoa, ainda que não tenha estudado lógica, consegue ver que se trata de um argumento válido, na medida em que intuitivamente se dá conta que aquelas premissas conduzem àquela conclusão. Mas repare-se agora no seguinte argumento:
O Luís Figo já comeu bacalhau porque todos os portugueses já comeram bacalhau.
Temos apenas uma premissa, que é «todos os portugueses já comeram bacalhau», sendo a conclusão «o Luís Figo já comeu bacalhau». Mas será que esta conclusão se segue daquela premissa? Muitos serão os que imediatamente respondem que sim. Outros dirão que não; que aquela premissa, por si só, não constitui uma boa razão para concluir que o Luís Figo já comeu bacalhau. Perguntariam estes: e se o Luís Figo for brasileiro? É preciso que se diga que o Luís Figo é português para, então sim, se poder concluir que ele já comeu bacalhau. Se não acrescentarmos a premissa «o Luís Figo é português», também não poderemos inferir que o Luís Figo já comeu bacalhau. Ao que possivelmente responderiam os primeiros: nem sequer é preciso dizê-lo, todos sabemos que o Luís Figo é português. A verdade é que, sem essa segunda premissa, o argumento não é válido. Assim, a única maneira de reparar o argumento, de forma a torná-lo válido, é introduzir tal premissa. O único cuidado que devemos ter é o de verificar que a premissa não está lá apenas porque quem apresentou o argumento achou desnecessário referir aquilo que lhe parecia ser óbvio para toda a gente. A uma premissa destas chama-se «premissa suprimida» e a um argumento que tem premissas suprimidas chama-se «entimema». Saber isto é importante porque muitas vezes nos deparamos com argumentos com premissas suprimidas e nem todos eles são casos fáceis de identificar. Disso pode depender a nossa decisão de aceitar um argumento como válido ou de o rejeitar como inválido.
Voltando ao início, afirmei que um argumento é um conjunto de frases; mas procurei também mostrar que nem todo o conjunto de frases é um argumento. Devo agora acrescentar que um argumento não é constituído por qualquer tipo de frases. Só as frases que exprimem proposições podem fazem parte dos argumentos.
O que é uma proposição?
Acabei de dizer que só um certo tipo de frases exprime proposições. Embora talvez todas as proposições se possam exprimir por meio de frases, há frases que não exprimem proposições. As frases seguintes não exprimem proposições:
Que horas são?
Tira os pés da mesa!
Ser sempre corajoso.
Quem me dera saber lógica.
Prometo que amanhã vou à praia contigo.
Estas frases não exprimem proposições porque não são frases declarativas. Ou seja, não afirmam nada; exprimem apenas promessas, desejos, ordens e perguntas. Por isso não estamos em condições de dizer se são verdadeiras ou falsas. Diz-se que não têm condições de verdade. Assim, as frases declarativas são todas as frases, e só essas, que têm condições de verdade. Donde se excluem todas as frases que, como acontece nos exemplos anteriores, exprimem promessas, desejos, ordens e perguntas. As seguintes frases podem ser verdadeiras ou falsas, e portanto têm condições de verdade:
São seis horas da tarde.
Alguém disse ao Paulo para tirar os pés da mesa.
Nós somos sempre corajosos.
Gosto de aprender lógica.
Prometi à Carla que amanhã vou à praia com ela.
Saber se uma frase é declarativa ou não torna-se fácil, embora haja frases muito semelhantes em que uma é declarativa e outra não. Eis um exemplo, em que a primeira é uma frase declarativa e a segunda não é:
Rui está na sala.
O Rui está na sala?
É claro que podemos ter dúvidas ou nem sequer saber se algumas daquelas frases são verdadeiras ou falsas. Mas, apesar das nossas dúvidas, e quer saibamos ou não, elas hão-de ser verdadeiras ou falsas. Quer dizer, elas têm um valor de verdade. A frase «são seis horas da tarde» proferida às nove da manhã é falsa e proferida às seis da tarde é verdadeira. Não deixa, contudo, de ter um valor de verdade. Assim como a frase «gosto de aprender lógica», proferida por umas pessoas pode ser verdadeira e por outras falsa. Mas tem de ser verdadeira ou falsa. Eis alguns exemplos de frases declarativas claramente verdadeiras:
A Lua não é feita de queijo.
Três vezes nove é igual a vinte e sete.
Portugal é um país europeu.
Nenhuma galinha fala português.
Eis agora algumas frases declarativas claramente falsas:
As bananas têm caroço.
Faro não fica no Algarve.
Portugal é o país mais poderoso da Europa.
Nenhum italiano fala português.
Sabemos agora o que é uma frase declarativa e que só as frases declarativas são proposições. Mas, ainda assim, há diferenças entre frases declarativas e proposições. Tanto que o número de frases declarativas é superior ao número de proposições. O que acontece porque há diferentes frases declarativas que, apesar disso, exprimem a mesma proposição. As frases são entidades linguísticas e as proposições são aquilo que tais frases exprimem, isto é, o seu conteúdo. As seguintes frases declarativas exprimem todas a mesma proposição:
A Lua inspira os poetas.
Os poetas são inspirados pelo satélite natural da Terra.
Os poetas deixam-se inspirar pela Lua.
Poets are inspired by the moon.
La luna inspira los poetas.
Mas por que precisamos nós de saber o que são proposições? Porque, recordando o que disse acima, as frases que constituem os argumentos têm de exprimir proposições. Assim, todas as premissas e conclusões de todos os argumentos exprimem proposições, por isso têm de ter um valor de verdade. Só que, ao contrário das frases de um argumento, os próprios argumentos nunca são verdadeiros ou falsos. Verdade e falsidade são propriedades das proposições e não dos argumentos. Dos argumentos diz-se que são válidos ou inválidos.
O que é a validade?
Dizemos frequentemente que uma ideia, uma pessoa ou uma iniciativa são válidas. Com isso queremos dizer que tal pessoa, tal ideia ou tal iniciativa são boas ou úteis, ou que têm um certo valor. Isso é o que acontece na linguagem comum. Em lógica e filosofia, porém, o termo «validade» tem um significado diferente e muito preciso, que já veremos qual é. Antes disso, há uma ideia que tem de ficar bem clara. Essa ideia é a da distinção entre verdade e validade; distinção fundamental em lógica e filosofia.
De uma proposição dizemos que é verdadeira ou falsa. Mas de um argumento, que é formado por várias proposições, já não podemos dizer que é verdadeiro ou falso. Isso seria um erro enorme. Algumas pessoas pensam que se um argumento é um conjunto de proposições e como as proposições são verdadeiras ou falsas, assim também os argumentos podem ser verdadeiros ou falsos. Isso seria o mesmo que dizer que um conjunto de pessoas é alto porque é formado por pessoas altas. As pessoas podem ser altas ou baixas, mas os conjuntos (sejam eles de pessoas ou de outra coisa qualquer) não são altos nem baixos. Se, como se verá, o mesmo argumento pode conter proposições verdadeiras e falsas, por que razão afirmaríamos que esse argumento é verdadeiro em vez de falso, ou vice-versa? Aquilo que, primeiramente, nos interessa num argumento é saber se a conclusão se segue das premissas. No caso de isso acontecer estamos perante um argumento válido. Caso contrário, estamos perante um argumento inválido. O seguinte argumento é claramente válido:
Todos os espanhóis são toureiros.
Bill Clinton é espanhol.
Logo, Bill Clinton é toureiro.
Ao analisar este argumento, a diferença entre verdade e validade torna-se clara. É fácil verificar que tanto as premissas como a conclusão são falsas. Contudo, a conclusão segue-se das premissas. Por isso o argumento é válido. Falamos de verdade e falsidade quando referimos as premissas e a conclusão e falamos de validade ou invalidade quando referimos o próprio argumento. Veja-se agora o seguinte argumento claramente inválido:
Todos os portugueses são europeus.
Luís Figo é europeu.
Logo, Luís Figo é português.
É muito fácil verificar que se trata de um argumento inválido, bastando substituir o nome de Luís Figo por outro nome como, digamos, Tony Blair, mas mantendo tudo o resto. E, apesar de ser um argumento inválido, todas as proposições que o constituem são verdadeiras. Só que a conclusão não é sustentada pelas premissas.
Mais uma vez se diz que um argumento é válido ou inválido consoante a sua conclusão se segue ou não das premissas, sejam elas verdadeiras ou falsas. Mas esta é ainda uma forma imprecisa de dizer o que é a validade. Existe, contudo, uma definição explícita de «argumento válido». Assim, diz-se que «um argumento é válido se, e só se, é logicamente impossível ter premissas verdadeiras e conclusão falsa». Sabemos agora exactamente o que procurar num argumento para saber se é válido ou não. Tudo pode acontecer com um argumento válido, menos uma coisa: ter premissas verdadeiras e conclusão falsa. Mas isto não significa que o argumento é válido desde que não tenha premissas verdadeiras e conclusão falsa. Não basta que não tenha as premissas verdadeiras e a conclusão falsa; é necessário que isso seja impossível de acontecer. Repare-se no meu último exemplo: não acontece ele ter as premissas verdadeiras e a conclusão falsa, até porque premissas e conclusão são todas verdadeiras. Mas se no mesmo argumento substituirmos, como atrás sugeri, o nome de Luís Figo pelo de Tony Blair, o que acontece? Acontece que as premissas continuam verdadeiras mas a conclusão é falsa. E essa é a única coisa que não pode acontecer num argumento válido. Portanto, é inválido.
Para tornar mais clara a noção de validade, podemos mesmo prescindir de qualquer nome, seja ele Luís Figo ou Tony Blair, e construir um argumento com a seguinte forma:
Todo o A é B.
C é A.
Logo, C é B.
Seja o que for que A, B e c signifiquem, este argumento é claramente válido. Admitindo que as premissas são verdadeiras, a sua conclusão não pode ser falsa. Mas como sabemos que este argumento é válido se não sabemos ainda o que significam A, B e c? Sabemos isso porque a validade de um argumento não depende daquilo que nele se afirma, isto é, do seu conteúdo, mas da sua forma lógica. Para sabermos se um argumento é válido nada mais temos de fazer senão atender à forma como está estruturado. É por isso que um argumento pode ser válido mesmo que nele se afirmem as coisas mais inverosímeis do mundo. Um bom exemplo disso é o seguinte:
Se as bananas têm asas, o ouro é um fruto seco.
Acontece que as bananas têm asas.
Logo, o ouro é um fruto seco.
Também aqui a conclusão terá de ser verdadeira, caso as premissas o sejam. Contudo, dificilmente alguém estaria disposto a aceitar um argumento destes. O que acontece é que não é suficiente um argumento ser válido para termos de o aceitar, mostrando assim que nem todos os argumentos válidos são bons. Não estamos interessados em aceitar a conclusão de um argumento válido quando essa conclusão é inferida de falsidades. Queremos também que um argumento seja sólido. Ou seja, que, além de ser válido, tenha premissas verdadeiras. Assim, se um argumento for válido e tiver premissas verdadeiras, somos, racionalmente, obrigados a aceitar a sua conclusão. Se não quisermos aceitar a conclusão de um argumento válido, só nos resta, então, mostrar que alguma das premissas é falsa.
Pelo que disse até aqui, dir-se-ia que apenas existem argumentos válidos e inválidos. E que os inválidos, ao contrário dos válidos, apresentam uma forma que não permite preservar sempre na conclusão a verdade das premissas. Assim, a lógica seria apenas o estudo da forma dos argumentos, ocupando-se exclusivamente dos argumentos válidos. Só que isso não corresponde à verdade. Há outros tipos de argumentos cuja aceitabilidade não depende da forma que apresentam. Tais argumentos fazem, por isso, parte da chamada «lógica informal».
Aires Almeida
Retirado de http://www.criticanarede.com/
Ora, sempre houve boas e más teorias, seja qual for o problema que procuram resolver. As teorias dos filósofos não podem constituir excepção. Assim, também há boas e más teorias filosóficas. Mas, como é óbvio, apenas estamos interessados nas boas teorias filosóficas. Por isso se torna crucial saber distinguir as boas das más teorias. Há duas maneiras de avaliarmos teorias, para procurarmos saber se são boas ou más: 1) podemos procurar saber se a teoria resolve o problema que pretendia resolver, e se essa solução é aceitável; 2) podemos procurar saber quais são os argumentos em que essas teorias se apoiam e verificar se tais argumentos constituem boas razões a favor daquilo que nelas se defende. Assim, 2 obriga-nos a pensar deste modo: «Que razões me dá o autor para aceitar a teoria dele?». E 1 obriga-nos a pensar assim: «Se eu aceitar a teoria dele, consigo explicar melhor o que a teoria procurava explicar, ou consigo resolver o problema que a teoria queria resolver? Será que há alternativas melhores a esta teoria?». Ora, tanto no primeiro como no segundo caso, temos de saber avaliar argumentos. Temos de saber se os argumentos que apoiam a teoria são bons ou não, e temos de saber se são bons ou não os argumentos que mostram que a teoria explica o que queria explicar e resolve o problema que queria resolver.
No caso dos filósofos, conhecer os argumentos que sustentam as suas teorias é ainda mais importante do que noutros casos. Isso é assim porque os problemas da filosofia são problemas de carácter conceptual e não empírico. Dificilmente acontece, com base em factos empíricos, mostrar que uma teoria filosófica é verdadeira ou falsa, ao contrário do que se verifica com muitas teorias científicas. Não há factos empíricos que mostrem que Deus existe ou não existe; mas a teoria segundo a qual existe vida em Marte pode ser refutada ou confirmada pelos factos. Daí que o valor de uma teoria filosófica, mais do que qualquer outro tipo de teoria, dependa essencialmente dos argumentos que a sustentam.
Não podemos, pois, saber se uma teoria é boa se não soubermos avaliar a qualidade dos seus argumentos. Esse é, precisamente, o nosso objectivo ao estudar lógica. Eis, então, a nossa primeira pergunta:
O que é um argumento?
Podemos começar por dizer que um argumento é um conjunto de frases. Só que não se trata de um qualquer conjunto de frases. O seguinte conjunto de frases, por exemplo, não é um argumento:
Gosto do Algarve por causa do clima, do Alentejo por causa do silêncio e do Alto Douro por causa da paisagem. E se nas próximas férias desse uma volta pelo país?
Para que um conjunto de frases constitua um argumento tem de haver entre elas uma certa relação, de tal modo que uma, e só uma, se apresente como conclusão e que todas as outras sirvam como razões para obter essa conclusão. Às frases, ou afirmações, que oferecemos como razões chamamos «premissas», podendo haver uma ou mais premissas num argumento; à afirmação que daí obtemos, fazendo apelo às premissas, chamamos, como se viu, «conclusão». Eis um exemplo de um conjunto de frases que é um argumento:
Se os filósofos têm sempre razão, então não vale a pena discutir o que dizem, porque se têm sempre razão não temos nada para criticar e se não temos nada para criticar não vale a pena discutir o que dizem.
Neste conjunto de frases há uma delas que é a conclusão e duas outras que são premissas. Perante um argumento, a primeira coisa a fazer é um trabalho de interpretação, identificando a conclusão e as premissas (ou premissa, caso haja apenas uma).
O que quero defender com o argumento anterior? É claro que estou a defender que «se os filósofos têm sempre razão, então não vale a pena discutir o que dizem». Esta frase, por sinal a primeira, é a conclusão. E que razões adianto para isso? Duas: «se têm sempre razão não temos nada para criticar» e «se não temos nada para criticar não vale a pena discutir o que dizem». Se quisermos, podemos reformular o argumento de modo a tornar as suas premissas e conclusão ainda mais claras. Podemos, por exemplo, destacar em primeiro lugar as suas premissas e depois a conclusão, de modo a exibir claramente cada uma delas:
Se os filósofos têm sempre razão, não temos nada para criticar. Se não temos nada para criticar, não vale a pena discutir o que dizem. Logo, se têm sempre razão, não vale a pena discutir o que dizem.
Torna-se, deste modo, mais fácil não apenas identificar premissas e conclusão como também verificar se a conclusão se segue das premissas, isto é, se as premissas apoiam a conclusão. Não podemos, contudo, esperar que os argumentos sejam apresentados sempre de modo a tornar completamente claras as suas premissas e conclusões. Na linguagem comum, e nos textos filosóficos, as premissas e conclusões dos argumentos são frequentemente difíceis de detectar, pois nem sempre se dispõem segundo uma ordem fixa. Por vezes surgem até intercaladas com outras frases que nem sequer fazem parte do argumento. Veja-se o seguinte exemplo:
Para quê discutir o que os filósofos dizem? Não vale a pena discutir o que dizem se não temos nada para criticar e não temos nada para criticar se têm sempre razão. Não me interessa perder tempo assim! Não vale a pena discutir o que dizem se têm sempre razão.
Como se vê, este é ainda o mesmo argumento, só que apresentado de maneira menos acessível. Convém, neste momento, dizer que há, mesmo assim, palavras ou expressões que costumam acompanhar quer as premissas, quer a conclusão e que facilitam a sua identificação. Trata-se de termos e de expressões que muitas vezes anunciam ou introduzem as premissas e a conclusão de um argumento. Termos e expressões como «logo», «daí que», «assim», «portanto» e «por isso» costumam servir para anunciar a conclusão inferida; termos e expressões como «porque», «pois», «uma vez que», «posto que», «tendo em conta que», «em virtude de», «devido a» e «dado que» indicam que se irão oferecer razões (premissas) para concluir algo. Frequentemente as premissas aparecem ligadas entre si por termos como «e», «ora» e «mas», ou por uma vírgula (uma pausa breve, no discurso oral) e também por um ponto final (uma pausa mais longa, no discurso oral). Com esta informação, torna-se relativamente fácil identificar as premissas e conclusão do seguinte argumento:
Tenho estudado lógica, uma vez que se não tivesse estudado lógica não seria bem sucedido em filosofia. Mas eu tenho sido bem sucedido em filosofia.
As premissas são (i) «se não tivesse estudado lógica não seria bem sucedido em filosofia» e (ii) «eu tenho sido bem sucedido em filosofia». A conclusão aparece logo no início e é «tenho estudado lógica». Qualquer pessoa, ainda que não tenha estudado lógica, consegue ver que se trata de um argumento válido, na medida em que intuitivamente se dá conta que aquelas premissas conduzem àquela conclusão. Mas repare-se agora no seguinte argumento:
O Luís Figo já comeu bacalhau porque todos os portugueses já comeram bacalhau.
Temos apenas uma premissa, que é «todos os portugueses já comeram bacalhau», sendo a conclusão «o Luís Figo já comeu bacalhau». Mas será que esta conclusão se segue daquela premissa? Muitos serão os que imediatamente respondem que sim. Outros dirão que não; que aquela premissa, por si só, não constitui uma boa razão para concluir que o Luís Figo já comeu bacalhau. Perguntariam estes: e se o Luís Figo for brasileiro? É preciso que se diga que o Luís Figo é português para, então sim, se poder concluir que ele já comeu bacalhau. Se não acrescentarmos a premissa «o Luís Figo é português», também não poderemos inferir que o Luís Figo já comeu bacalhau. Ao que possivelmente responderiam os primeiros: nem sequer é preciso dizê-lo, todos sabemos que o Luís Figo é português. A verdade é que, sem essa segunda premissa, o argumento não é válido. Assim, a única maneira de reparar o argumento, de forma a torná-lo válido, é introduzir tal premissa. O único cuidado que devemos ter é o de verificar que a premissa não está lá apenas porque quem apresentou o argumento achou desnecessário referir aquilo que lhe parecia ser óbvio para toda a gente. A uma premissa destas chama-se «premissa suprimida» e a um argumento que tem premissas suprimidas chama-se «entimema». Saber isto é importante porque muitas vezes nos deparamos com argumentos com premissas suprimidas e nem todos eles são casos fáceis de identificar. Disso pode depender a nossa decisão de aceitar um argumento como válido ou de o rejeitar como inválido.
Voltando ao início, afirmei que um argumento é um conjunto de frases; mas procurei também mostrar que nem todo o conjunto de frases é um argumento. Devo agora acrescentar que um argumento não é constituído por qualquer tipo de frases. Só as frases que exprimem proposições podem fazem parte dos argumentos.
O que é uma proposição?
Acabei de dizer que só um certo tipo de frases exprime proposições. Embora talvez todas as proposições se possam exprimir por meio de frases, há frases que não exprimem proposições. As frases seguintes não exprimem proposições:
Que horas são?
Tira os pés da mesa!
Ser sempre corajoso.
Quem me dera saber lógica.
Prometo que amanhã vou à praia contigo.
Estas frases não exprimem proposições porque não são frases declarativas. Ou seja, não afirmam nada; exprimem apenas promessas, desejos, ordens e perguntas. Por isso não estamos em condições de dizer se são verdadeiras ou falsas. Diz-se que não têm condições de verdade. Assim, as frases declarativas são todas as frases, e só essas, que têm condições de verdade. Donde se excluem todas as frases que, como acontece nos exemplos anteriores, exprimem promessas, desejos, ordens e perguntas. As seguintes frases podem ser verdadeiras ou falsas, e portanto têm condições de verdade:
São seis horas da tarde.
Alguém disse ao Paulo para tirar os pés da mesa.
Nós somos sempre corajosos.
Gosto de aprender lógica.
Prometi à Carla que amanhã vou à praia com ela.
Saber se uma frase é declarativa ou não torna-se fácil, embora haja frases muito semelhantes em que uma é declarativa e outra não. Eis um exemplo, em que a primeira é uma frase declarativa e a segunda não é:
Rui está na sala.
O Rui está na sala?
É claro que podemos ter dúvidas ou nem sequer saber se algumas daquelas frases são verdadeiras ou falsas. Mas, apesar das nossas dúvidas, e quer saibamos ou não, elas hão-de ser verdadeiras ou falsas. Quer dizer, elas têm um valor de verdade. A frase «são seis horas da tarde» proferida às nove da manhã é falsa e proferida às seis da tarde é verdadeira. Não deixa, contudo, de ter um valor de verdade. Assim como a frase «gosto de aprender lógica», proferida por umas pessoas pode ser verdadeira e por outras falsa. Mas tem de ser verdadeira ou falsa. Eis alguns exemplos de frases declarativas claramente verdadeiras:
A Lua não é feita de queijo.
Três vezes nove é igual a vinte e sete.
Portugal é um país europeu.
Nenhuma galinha fala português.
Eis agora algumas frases declarativas claramente falsas:
As bananas têm caroço.
Faro não fica no Algarve.
Portugal é o país mais poderoso da Europa.
Nenhum italiano fala português.
Sabemos agora o que é uma frase declarativa e que só as frases declarativas são proposições. Mas, ainda assim, há diferenças entre frases declarativas e proposições. Tanto que o número de frases declarativas é superior ao número de proposições. O que acontece porque há diferentes frases declarativas que, apesar disso, exprimem a mesma proposição. As frases são entidades linguísticas e as proposições são aquilo que tais frases exprimem, isto é, o seu conteúdo. As seguintes frases declarativas exprimem todas a mesma proposição:
A Lua inspira os poetas.
Os poetas são inspirados pelo satélite natural da Terra.
Os poetas deixam-se inspirar pela Lua.
Poets are inspired by the moon.
La luna inspira los poetas.
Mas por que precisamos nós de saber o que são proposições? Porque, recordando o que disse acima, as frases que constituem os argumentos têm de exprimir proposições. Assim, todas as premissas e conclusões de todos os argumentos exprimem proposições, por isso têm de ter um valor de verdade. Só que, ao contrário das frases de um argumento, os próprios argumentos nunca são verdadeiros ou falsos. Verdade e falsidade são propriedades das proposições e não dos argumentos. Dos argumentos diz-se que são válidos ou inválidos.
O que é a validade?
Dizemos frequentemente que uma ideia, uma pessoa ou uma iniciativa são válidas. Com isso queremos dizer que tal pessoa, tal ideia ou tal iniciativa são boas ou úteis, ou que têm um certo valor. Isso é o que acontece na linguagem comum. Em lógica e filosofia, porém, o termo «validade» tem um significado diferente e muito preciso, que já veremos qual é. Antes disso, há uma ideia que tem de ficar bem clara. Essa ideia é a da distinção entre verdade e validade; distinção fundamental em lógica e filosofia.
De uma proposição dizemos que é verdadeira ou falsa. Mas de um argumento, que é formado por várias proposições, já não podemos dizer que é verdadeiro ou falso. Isso seria um erro enorme. Algumas pessoas pensam que se um argumento é um conjunto de proposições e como as proposições são verdadeiras ou falsas, assim também os argumentos podem ser verdadeiros ou falsos. Isso seria o mesmo que dizer que um conjunto de pessoas é alto porque é formado por pessoas altas. As pessoas podem ser altas ou baixas, mas os conjuntos (sejam eles de pessoas ou de outra coisa qualquer) não são altos nem baixos. Se, como se verá, o mesmo argumento pode conter proposições verdadeiras e falsas, por que razão afirmaríamos que esse argumento é verdadeiro em vez de falso, ou vice-versa? Aquilo que, primeiramente, nos interessa num argumento é saber se a conclusão se segue das premissas. No caso de isso acontecer estamos perante um argumento válido. Caso contrário, estamos perante um argumento inválido. O seguinte argumento é claramente válido:
Todos os espanhóis são toureiros.
Bill Clinton é espanhol.
Logo, Bill Clinton é toureiro.
Ao analisar este argumento, a diferença entre verdade e validade torna-se clara. É fácil verificar que tanto as premissas como a conclusão são falsas. Contudo, a conclusão segue-se das premissas. Por isso o argumento é válido. Falamos de verdade e falsidade quando referimos as premissas e a conclusão e falamos de validade ou invalidade quando referimos o próprio argumento. Veja-se agora o seguinte argumento claramente inválido:
Todos os portugueses são europeus.
Luís Figo é europeu.
Logo, Luís Figo é português.
É muito fácil verificar que se trata de um argumento inválido, bastando substituir o nome de Luís Figo por outro nome como, digamos, Tony Blair, mas mantendo tudo o resto. E, apesar de ser um argumento inválido, todas as proposições que o constituem são verdadeiras. Só que a conclusão não é sustentada pelas premissas.
Mais uma vez se diz que um argumento é válido ou inválido consoante a sua conclusão se segue ou não das premissas, sejam elas verdadeiras ou falsas. Mas esta é ainda uma forma imprecisa de dizer o que é a validade. Existe, contudo, uma definição explícita de «argumento válido». Assim, diz-se que «um argumento é válido se, e só se, é logicamente impossível ter premissas verdadeiras e conclusão falsa». Sabemos agora exactamente o que procurar num argumento para saber se é válido ou não. Tudo pode acontecer com um argumento válido, menos uma coisa: ter premissas verdadeiras e conclusão falsa. Mas isto não significa que o argumento é válido desde que não tenha premissas verdadeiras e conclusão falsa. Não basta que não tenha as premissas verdadeiras e a conclusão falsa; é necessário que isso seja impossível de acontecer. Repare-se no meu último exemplo: não acontece ele ter as premissas verdadeiras e a conclusão falsa, até porque premissas e conclusão são todas verdadeiras. Mas se no mesmo argumento substituirmos, como atrás sugeri, o nome de Luís Figo pelo de Tony Blair, o que acontece? Acontece que as premissas continuam verdadeiras mas a conclusão é falsa. E essa é a única coisa que não pode acontecer num argumento válido. Portanto, é inválido.
Para tornar mais clara a noção de validade, podemos mesmo prescindir de qualquer nome, seja ele Luís Figo ou Tony Blair, e construir um argumento com a seguinte forma:
Todo o A é B.
C é A.
Logo, C é B.
Seja o que for que A, B e c signifiquem, este argumento é claramente válido. Admitindo que as premissas são verdadeiras, a sua conclusão não pode ser falsa. Mas como sabemos que este argumento é válido se não sabemos ainda o que significam A, B e c? Sabemos isso porque a validade de um argumento não depende daquilo que nele se afirma, isto é, do seu conteúdo, mas da sua forma lógica. Para sabermos se um argumento é válido nada mais temos de fazer senão atender à forma como está estruturado. É por isso que um argumento pode ser válido mesmo que nele se afirmem as coisas mais inverosímeis do mundo. Um bom exemplo disso é o seguinte:
Se as bananas têm asas, o ouro é um fruto seco.
Acontece que as bananas têm asas.
Logo, o ouro é um fruto seco.
Também aqui a conclusão terá de ser verdadeira, caso as premissas o sejam. Contudo, dificilmente alguém estaria disposto a aceitar um argumento destes. O que acontece é que não é suficiente um argumento ser válido para termos de o aceitar, mostrando assim que nem todos os argumentos válidos são bons. Não estamos interessados em aceitar a conclusão de um argumento válido quando essa conclusão é inferida de falsidades. Queremos também que um argumento seja sólido. Ou seja, que, além de ser válido, tenha premissas verdadeiras. Assim, se um argumento for válido e tiver premissas verdadeiras, somos, racionalmente, obrigados a aceitar a sua conclusão. Se não quisermos aceitar a conclusão de um argumento válido, só nos resta, então, mostrar que alguma das premissas é falsa.
Pelo que disse até aqui, dir-se-ia que apenas existem argumentos válidos e inválidos. E que os inválidos, ao contrário dos válidos, apresentam uma forma que não permite preservar sempre na conclusão a verdade das premissas. Assim, a lógica seria apenas o estudo da forma dos argumentos, ocupando-se exclusivamente dos argumentos válidos. Só que isso não corresponde à verdade. Há outros tipos de argumentos cuja aceitabilidade não depende da forma que apresentam. Tais argumentos fazem, por isso, parte da chamada «lógica informal».
Aires Almeida
Retirado de http://www.criticanarede.com/
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