domingo, 21 de setembro de 2008

O que é o modelo crença-desejo? v

Parte V
Lembre-se do caso da pessoa que acende a luz e alerta o ladrão. De modo a racionalizar a sua acção, temos primeiro de apontar para o desejo e para a crença que o levaram a agir dessa maneira. Neste caso, estaríamos a falar do desejo de acender a luz e da crença de que poderia fazê-lo ligando o interruptor. De seguida, teríamos que encontrar uma descrição intencional da sua acção: uma descrição da acção que nos mostre que fazia sentido realizá-la, dado o seu desejo e a sua crença. Se apresentássemos a nossa acção como "acção de alertar o ladrão", não teríamos conseguido racionalizar a nossa acção. Teríamos que descrever a sua acção como "acção de ligar o interruptor".
Isto significa que a tese a) deve, portanto, ser reformulada mais ou menos da seguinte maneira:
a) Para racionalizar uma acção, é sempre necessário atribuir ao agente (pelo menos) um desejo e (pelo menos) uma crença relevante e apresentar uma descrição da acção que revele o seu carácter intencional.
Antes de avançar para a próxima secção, aproveito para dar três esclarecimentos adicionais sobre a).
Em primeiro lugar, porque é que digo que a crença tem que ser relevante? Nada de muito complicado: apenas que a crença tem de ter uma relação apropriada com o desejo. Para a crença ser relevante, tem que nos dizer como é que o agente acreditava que o seu desejo podia ser realizado. Imagine o leitor que tinha o desejo de ir tomar uma cerveja. De modo a racionalizar a sua acção, temos que lhe atribuir uma crença que explique como é que pensava poder realizar o seu desejo. Não faria, por isso, sentido atribuir-lhe a crença de que 21 de Junho é o dia mais longo do ano. Uma crença relevante, neste caso, seria qualquer coisa tão banal como "creio que o empregado me dará uma cerveja se eu lhe der 1 euro".
Em segundo lugar, as crenças relevantes não têm necessariamente de ser instrumentais, embora geralmente o sejam. (Uma crença instrumental tem a forma "Se eu usar tais e tais e tais meios, conseguirei realizar o meu desejo.") No exemplo usado, a crença necessária seria uma crença instrumental: uma crença acerca de como podíamos arranjar uma cerveja. Mas suponha agora que o seu desejo não era simplesmente o de beber uma cerveja, mas sim o de beber uma cerveja no dia mais longo do ano. De modo a poder concretizar este desejo, continuará, naturalmente, a precisar de uma crença acerca de qual é o meio apropriado para arranjar uma cerveja, mas agora teremos que lhe atribuir uma crença acerca de qual é o dia mais longo do ano. Qualquer coisa como "creio que o dia 21 de Junho é o dia mais longo do ano". Esta crença, tal como a crença de que o Super-Homem é Clark Kent, não é instrumental.
Em terceiro lugar - este é um ponto importante -, nada impede que haja mais do que um modo de racionalizar a acção do agente, nem que uma racionalização possível da acção de um agente não constitua a razão pela qual o agente agiu.
Tomemos o exemplo da pessoa que assina o contrato de modo a obter um empréstimo para a casa. Se calhar, ao assinar o contrato, a pessoa estaria a realizar dois desejos ao mesmo tempo: ter casa própria e conquistar a sua independência, por exemplo. Deste modo, haveria duas racionalizações disponíveis da acção: uma composta pelo par "desejo comprar uma casa" e "creio que o modo mais eficiente de o fazer é obter um empréstimo"; e outra pelo par "desejo conquistar a minha indepêndencia" e "creio que o modo mais eficiente de o fazer é obter um empréstimo".
Suponhamos agora que, embora conquistar a nossa independência fosse importante para nós, aquilo que verdadeiramente nos levou a obter o empréstimo foi o desejo de comprar casa própria. Nesse caso, embora a acção de assinar o contrato pudesse ser racionalizado de duas maneiras, só uma delas é que corresponde à razão pela qual o agente agiu. Nós tínhamos dois motivos para querer pedir um empréstimo, mas só um desses motivos, o de comprar casa própria, suponhamos, é que nos levou a agir.

Pedro Madeira
Retirado de http://www.intelectu.com/

Sem comentários: