Pedro Madeira
Resumo
Na primeira secção, explica-se de que teses é
composto o modelo crença-desejo. Na segunda secção, procura-se desfazer um erro
muito fácil de cometer: o de pensar que racionalizar uma acção é a mesma coisa
que mostrar que essa acção é racional. Na parte final da secção, dão-se mais
alguns esclarecimentos rápidos acerca de a). Na terceira secção, explica-se em
que consiste o carácter intensional das descrições de acções. Avisa-se que é
preciso não confundir "intenção" com "intensão". Na quarta
secção, reformula-se a tese b) face a algumas conclusões a que chegámos anteriomente.
Na quinta secção, questiona-se se b) devia mesmo fazer parte da definição
canónica do modelo crença-desejo. Na sexta secção, procura-se fazer sentido de
uma ideia geral que costuma estar associada ao modelo crença-desejo: a de que o
desejo e a crença não têm igual estatuto; o desejo é o parceiro dominante da
relação, por assim dizer. Uma maneira de expressar esta ideia é dizer que a
crença e o desejo têm diferentes direcções de correspondência. Na última
secção, recorda-se que o ojectivo do ensaio não foi o de criticar o modelo
crença-desejo, mas sim procurar formulá-lo do modo mais preciso possível.
1. A definição canónica do modelo crença-desejo
O modelo crença-desejo é uma teoria da acção
composta por duas teses:
a) Para racionalizar uma acção, é sempre
necessário atribuir ao agente (pelo menos) um desejo e (pelo menos) uma crença
relevante.
b) O par formado pelo desejo e pela crença relevante que racionaliza a
acção também constitui a causa dessa acção.
Lá para a frente, veremos que é necessário
reformular ambas as teses, mas, por agora, podem ficar assim.
2. A diferença entre "racionalizar uma dada acção" e "mostrar que essa acção é racional"
O resto do ensaio será dedicado a clarificar
as teses a) e b). Como veremos, não será tarefa fácil, devido ao número imenso
de erros subtis que se podem cometer. Nesta secção e na próxima, ocupar-me da
primeira tese. Nas duas seguintes, da segunda.
Um dos meus maiores medos é o de que o
estudante incauto seja encaminhado para o artigo clássico de Davidson,
"Actions, reasons and causes", veja lá a expressão "racionalizar
uma acção", e pense que isso seja a mesma coisa que "mostrar que essa
acção é racional". Isto não é bem verdade. Como veremos dentro de
momentos, no entanto, é um erro fácil de cometer.
Uma teoria da acção procura dizer como é que
devemos explicar uma acção. Em geral, isso implicará atribuir certos estados
mentais (como crenças e desejos) ao agente. (As teorias da acção que defendem
que a atribuição de estados mentais ao agente não é fulcral para explicar a sua
acção, como a teoria da acção de Dancy, são denominadas
"não-psicologistas".) Uma teoria da razão prática, por outro lado,
procura dizer em que circunstâncias é que uma acção é racional ou irracional.
(Como mencionei em "Uma objecção à teoria instrumental da razão
prática", seria mais correcto dizer "teoria da racionalidade na
acção".)
A teoria da razão prática que recolhe
aprovação mais ampla é a teoria intrumental, segundo a qual uma acção é
racional se e só se o agente pensa (correcta ou incorrectamente) que essa acção
é o meio mais adequado para realizar os seus desejos.
Os defensores do modelo crença-desejo costumam
ser logo enfiados no grupo dos que dizem que não devemos ir além da teoria
intrumental da razão prática. Esta atitude é demasiado precipitada. Embora as
teorias da acção e as da razão prática não estejam completamente separadas, a
verdade é que gozam de um certo grau de autonomia uma em relação à outra. Não
seria inconsistente da parte de um defensor do modelo crença-desejo opôr-se a uma
teoria meramente intrumental da razão prática.
Suponhamos que alguém defendia que qualquer
acção que pusesse em perigo a sobrevivência da espécie humana seria irracional.
Não estou a dizer que alguém tenha mesmo defendido isto: estou simplesmente a
dizer que é possível ter-se esta posição. Não é preciso pensar muito para se
chegar à conclusão de que um defensor da teoria instrumental não pode concordar
com tal coisa. De acordo com a teoria intrumental, uma acção é racional se o
agente pensa que é o meio mais eficiente para realizar os seus desejos; só se o
agente agir, conscientemente, de um modo que pensa não ser o mais eficiente
para realizar os seus desejos, é que estará a ser irracional. Por isso, um
humano (ou seja, o defensor da teoria instrumental) dirá que agir de modo a pôr
em perigo a sobrevivência da espécie humana será racional, caso o agente queira
pôr em perigo a sobrevivência da espécie humana, ou irracional, caso ele não
queira.
À partida, nada impede um defensor do modelo
crença-desejo de defender que é irracional realizar acções que ponham em perigo
a sobrevivência da espécie humana. Nesse caso, a posse do desejo de queimar
combustível e a da crença de que é possível queimar combustível atirando um
fósforo aceso para dentro de um bidão cheio de gasolina racionalizaria a nossa
acção de queimar combustível, mas não a tornaria racional, dado que queimar
combustível seria, em última análise, mau para a sobrevivência da espécie.
Qual é a diferença, então, entre racionalizar
uma acção e mostrar que ela é racional? A primeira coisa que há que dizer é a
que a noção de "racionalização" é meramente descritiva, ao passo que
a noção de "mostrar que é racional" é normativa. Ao racionalizarmos
um acção, não estamos, desse modo, a mostrar que a acção se coaduna com certas
regras de condutas; estamos simplesmente a fornecer uma explicação da acção.
Por outro lado, ao dizermos que uma acção é racional ou irracional, estamos a
emitir opinião sobre se essa acção se coaduna ou não com certas regras de conduta
que todos os agentes racionais deviam, idealmente, seguir (como acontece no
exemplo do parágrafo anterior).
Racionalizar uma acção é torná-la inteligível;
é tornar claro porque é que o agente a realizou. De acordo com o defensor do
modelo crença-desejo, isso implicará olhar para a sua acção à luz dos seus
desejos e das suas crenças relevantes e tentar descortinar porque estaria ele
interessado em
realizá-la. Ao atribuir-lhe o desejo de queimar combustível e
a crença de que é possível fazê-lo atirando um fósforo aceso para dentro de um
bidão cheio de gasolina, estamos a tornar claro porque é que faria sentido que
o agente atirasse o fósforo para dentro do bidão, tal como atirou.
3. O carácter intensional das descrições de acções
De modo a fazer a ponte entre esta secção e a
anterior, gostaria de dar mais um exemplo de como atribuir crenças e desejos ao
agente pode ajudar a racionalizar a sua acção.
Imagine que acabo de chegar a casa. É de
noite. Ao agir de determinada maneira (já vamos ver qual), alerto o ladrão que
estava dentro da casa e ele acaba por fugir. Perante esta situação, a minha
acção não é inteligível - não dá para perceber porque é que a realizei. Que
interesse é que eu teria em alertar o ladrão para a minha presença? À partida,
nenhum. Eu devia era querer apanhá-lo para que ele não fugisse com o saque.
O problema resolve-se da seguinte maneira: o
meu objectivo era acender a luz (lembre-se de que cheguei a casa de noite), não
alertar o ladrão da minha presença. Eu nem sequer sabia que lá estava um
ladrão. Eu tinha o desejo de acender a luz e a crença de que poderia fazê-lo
ligando o interruptor. Dada esta explicação, a acção que realizei e que teve a
consequência de alertar o ladrão da minha presença já se nos torna inteligível,
já é racionalizada. Note como um exemplo semelhante poderia ser construído em
relação ao caso que apresentei na secção anterior: imagine que tínhamos o tal
desejo de queimar combustível e a crença de que poderíamos fazê-lo deitando um
fósforo para dentro de um bidão cheio de gasolina. O desejo e a crença
certamente racionalizariam a minha acção de atirar o fósforo pra dentro do
bidão. No entanto, imagine agora que nós tínhamos um desejo adicional: o de não
fazer nada que pudesse pôr em perigo a sobrevivência da espécie humana. Sem que
nós soubéssemos, ao queimar esse combustível estaríamos a libertar nuvens de
fumo tóxicas. Por isso, parece que atribuir ao agente o desejo e a crença que
lhe atribuímos não chegaria, neste caso, para racionalizar a acção dele.
Alguém poderia expressar esta preocupação da
seguinte forma, desta vez em relação ao caso da pessoa que, sem querer, alerta
o ladrão para a sua presença:
"Então mas porque é que o desejo e a
crença relevante racionalizam a minha acção de ligar o interruptor, mas não a
minha acção de alertar o ladrão para a minha presença? Afinal, a minha acção de
ligar o interruptor e minha acção de alertar o ladrão são a mesma acção. Não há
aqui duas acções diferentes. Como é que o desejo e a crença relevante podem,
num sentido, racionalizar a minha acção, e noutro, não? Não será isso
contraditório?"
O resto desta secção será, em grande parte,
dedicado a tentar fornecer os materiais para responder a esta dúvida.
A primeira coisa a dizer é que não é líquido
que a minha acção de ligar o interruptor e a minha acção de alertar o ladrão
sejam a mesma acção. Nem sequer é líquido que o alertar do ladrão seja uma
acção. Afinal, não alertámos o ladrão intencionalmente, e quando fazemos uma
coisa sem intenção, não parece que tenhamos realizado uma acção. Se uma pessoa
assina um contrato sem estar ciente de uma das cláusulas, não é claro que
possamos descrever a acção dele como "assinar um contrato com tal
cláusula". Parece que a única acção que ele realizou foi "assinar um
contrato". À partida, parece que só comportamento intencionais é que são
acções. É preciso notar que, quando digo que um agente fez algo de forma não
intencional, estou a dizer que o agente não se apercebeu do que estava
realmente a fazer, como no caso da pessoa que assina o contrato sem saber da
cláusula.
Há, no entanto, quem defenda uma noção mais
abrangente de "comportamento não-intencional". Os defensores da
chamada doutrina do duplo efeito, que pertence à área da ética aplicada,
sustentam que há certas consequências da nossa acção que são previstas, mas não
intencionadas. Deste modo, eu prevejo que matar o líder do Hamas implicará
matar vários civis, mas não tenciono matar esses civis - eu simplesmente
prevejo que eles serão mortos. Os méritos da doutrina do duplo efeito, enquanto
teoria de ética aplicada, são bastante dúbios. Mas não quero agora falar disso.
Aquilo que me parece é que, em termos de filosofia da acção, é um disparate
dizer que não tenho a intenção de matar os civis ao atirar uma bomba em cima do
líder do Hamas. Parece-me óbvio que tenciono matar os civis. Posso não gostar
disso, posso ficar com remorsos, posso justificar-me dizendo que era mesmo
preciso matar o terrorista - não posso é dizer que não tencionava matar os
civis.
Bom, voltemos ao nosso problema: como é que um
desejo e uma crença podem racionalizar uma acção sob certas descrições do que
aconteceu, mas não sob outras? Para tentar resolver isto, será preciso fazer
uma pequena incursão pela filosofia da linguagem.
As expressões "Final da Taça de Portugal
2002-2003" e "jogo que em que o Porto ganhou a sua última Taça de
Portugal 2002-2003" referem-se ao mesmo jogo, pelo que são co-extensivas
(quando duas, ou mais, expressões se referem ao mesmo objecto, nós dizemos que
elas são co-extensivas, ou co-referenciais). Todavia, mesmo sendo essas
expressões co-extensivas, eu posso não saber que são co-extensivas. Se calhar
não ligo ao futebol e não sei, nem quero saber, quem é que ganhou a Taça de
Portugal.
Outro exemplo, desta vez mais próximo daquilo
que nos interessa: se perguntarmos a Lois Lane se ela ama o Super-Homem, ela
dirá que sim. No entanto, se lhe perguntássemos se ela amava Clark Kent, ela
dir-nos-ia que não (pelo menos antes de descobrir que eles são a mesma pessoa,
o que, salvo erro, ocorre em "Super-Homem 2"). Como nós sabemos que
as expressões "Super-Homem" e "Clark Kent" são
co-extensivas, nós pensaríamos, à partida, que são sempre inter-substituíveis
salva veritate. Dois termos são inter-substituíveis salva veritate quando podem
ser trocados um pelo outro sem alterar o valor de verdade da frase em que
ocorrem ("salva veritate" significa, precisamente, "preservando
a verdade"). Por exemplo: se é verdade que o Super-Homem é invencível,
então também é verdade que Clark Kent é invencível. Se é verdade que o
Super-Homem tem um metro e noventa, também é verdade que Clark Kent tem um
metro e noventa.
No entanto, as coisas mudam quando estamos a
falar de contextos referencialmente opacos (ou "contextos
intensionais"; é a mesma coisa). Um contexto é referencialmente opaco
quando, por exemplo, determinar a referência dos termos que ocorrem numa frase
não é suficiente para determinar o valor de verdade dessa frase. Tome o exemplo
da frase "Lois Lane ama Clark Kent". Ora suponha que nós sabemos a
quem é que os termos "Lois Lane" e "Clark Kent" se referem
e que também sabemos o que significa o verbo "amar". Será isso
suficiente para determinar se a frase "Lois Lane ama Clark Kent" é
verdadeira? Não. Pense nas semelhanças entre "Lois Lane ama Clark
Kent" e "Lois Lane ama o Super-Homem". "Lois Lane"
refere-se à mesma pessoa em ambas as frases. "Clark Kent" e
"Super-Homem" também se referem à mesma pessoa. O verbo
"amar" tem exactamente o mesmo significado. No entanto, parece que,
de modo a determinar se cada uma das frases é verdadeira, não basta saber a
referência de "Super-Homem" e "Clark Kent".
Isto mostra-se facilmente através do seguinte
argumento. Lois Lane sabe a referência de "Clark Kent" (ela conhece-o
porque trabalha com ele) e também sabe a referência de "Super-Homem"
(ele já a salvou umas quantas vezes), ainda que não saiba que "Clark
Kent" e "Super-Homem" são termos co-extensivos, isto é, que
Clark Kent é o Super-Homem (e vice-versa, naturalmente). No entanto, responderia
negativamente, caso lhe perguntássemos se amava Clark Kent, e afirmativamente,
caso lhe perguntássemos se amava o Super-Homem. Por isso, a impressão que dá é
a de que, para determinar o valor de verdade de "Lois Lane ama Clark
Kent" e "Lois Lane ama o Super-Homem", não basta saber a
extensão de "Clark Kent" e a extensão de "Super-Homem":
também temos que saber a intensão de cada um dos termos.
(Um aparte: o leitor que esteja ao corrente da
controvérsia entre Fregeanos (lê-se "Freguianos") e Millianos na
filosofia da linguagem saberá que este problema da falha de
inter-substitutividade salva veritate de termos co-extensivos em contextos
referencialmente opacos é uma grande dor de cabeça para os Millianos.)
Agora vamos parar aqui um bocadinho para
explicar o que é isso de "intensão", porque senão isto pode tornar-se
tudo muito confuso. "Intensão" com "s" não deve ser
confundida com "intenção" com "ç". A nossa intenção é
aquilo que queremos fazer. Eu tenho a intenção de subir a escada, de abrir a
porta, etc. "Intensão" é uma coisa diferente. Para se saber o que é
"intensão", será melhor lembrar o que é a extensão. Lembra-se de eu
dizer que "Super-Homem" e "Clark Kent" eram termos
co-extensivos? Trocado por miúdos, isso quer dizer que têm a mesma extensão. A
extensão de uma expressão referencial é, simplesmente, a coisa a que expressão
se refere. A intensão é algo que está supostamente associado a expressões
referenciais, mas que é distinto da extensão. O que essa intensão seja, porém,
é coisa altamente polémica. Há quem diga que as intensões são significados. Há
quem diga que são descrições definidas. Hoje em dia, há uma definição mais
"janota": a intensão de um termo é uma função de um mundo possível w
para a extensão do termo.
Estas polémicas são todas muito interessantes,
mas não nos interessam para aqui. Aquilo que nos interessa é o seguinte. Parece
que, quando estamos a lidar com predicados como "... tem um metro e
noventa" e "... é invencível", a única coisa que conta para
determinar o valor de verdade das frases que formemos, inserindo nomes próprios
no espaço em branco, é a extensão desses nomes próprios. Se é verdade que Clark
Kent tem um metro e noventa, e Clark Kent é o Super-Homem, então é
necessariamente verdade que "O Super-Homem tem um metro e noventa".
Neste caso, saber a extensão dos dois termos basta para determinar o valor de
verdade das frases. Estamos, por isso, num contexto extensional, ou
referencialmente transparente (que é, obviamente, o oposto de contexto
intensional, ou referencialmente opaco)
Quando estamos a falar de frases como
"Lois Lane ama Clark Kent", parece que estamos a entrar num contexto
referencialmente opaco, dado que saber a extensão de "Clark Kent" não
parece ser suficiente para determinar o valor de verdade dessa frase. Se "Clark
Kent" tivesse uma intensão, e essa intensão fosse qualquer coisa como
"colega de trabalho a quem Lois Lane dá pouca atenção", já seria
possível determinar o valor de verdade da frase "Lois Lane ama Clark
Kent": seria falsa.
Bom, suponho que o leitor já esteja um pouco perdido,
nesta altura. Aonde quero eu chegar com tudo isto, afinal? Peço desculpa por
esta incursão algo demorada pela filosofia da linguagem, mas tinha receio de
que, se não o fizesse, aquilo que vou dizer a seguir poderia não ser entendido.
Ora voltemos um pouco atrás. Como se lembrará,
a objecção que nos estava a ser colocada era a seguinte: a minha acção de ligar
o interruptor e de alertar o ladrão são a mesma acção; como é que pode ser
possível, então, que o meu desejo de ligar a luz e minha crença de que poderia
fazê-lo simplesmente ligando o interruptor racionalizem a minha acção de ligar
o interruptor, mas não a minha acção de alertar o ladrão?
Depois de tudo o que disse, a resposta deverá
ser óbvia: ao falarmos de descrições de acções, estamos a entrar num contexto
referencialmente opaco (ou intensional; é a mesma coisa). Tal como pode ser
verdade que "Lois Lane não ama Clark Kent", muito embora ela ame o
Super-Homem e "Clark Kent" e "Super-Homem" sejam
co-extensivos, também pode ser verdade que "O meu desejo de ligar a luz e
a minha crença de que poderia fazê-lo simplesmente ligando o interruptor não
racionalizam a minha acção de alertar o ladrão", muito embora racionalizem
a minha acção de ligar o interruptor, e a minha acção de ligar o interruptor e
a minha acção de alertar o ladrão sejam a mesma acção.
Tal como, para se determinar o valor de
verdade de "Lois Lane ama Clark Kent", não é suficiente saber a
extensão de "Clark Kent", também no caso de "Tal desejo e tal
crença racionalizam a minha acção de alertar o ladrão" não chega saber a
extensão de "acção de alertar o ladrão". O desejo e a crença podem
racionalizar a acção, se olharmos para ela de uma maneira, e não a
racionalizar, se olharmos para ela de outra maneira. É nisto que consiste o
carácter intensional das descrições de acções, que mencionei no título desta
secção.
Alguém que tenha lido "Actions, reasons
and causes", o artigo clássico de Davidson, poderá ter ficado com uma
dúvida: porque é que Davidson diz que as descrições de acções são apenas
semi-intensionais?
Boa pergunta. A resposta reside na definição
de "contexto intensional". Já aqui mencionei uma das características
dos contextos intensionais: os termos co-extensivos não são inter-substituíveis
salva veritate. A outra característica dos contextos intensionais que me falta
mencionar é que, neles, nada impede um termo de ser vazio, isto é, de não ter
qualquer extensão.
Tome o exemplo da frase "As crianças
acreditam no Pai Natal". O valor de verdade desta frase é completamente
independente de haver ou não um Pai Natal. Este tipo de coisas não acontece num
contexto extensional.
De acordo com Davidson, as descrições de
acções não são intensionais neste sentido, porque, mesmo que seja falso que tal
desejo e tal crença racionalizem uma dada, essa acção teve mesmo que acontecer.
Neste sentido, as descrições de acções não são como o Pai Natal: podemos tentar
racionalizá-las da maneira que quisermos, mas elas têm que existir.
A conclusão que podemos retirar daqui é a de
que, de acordo com o modelo crença-desejo, para racionalizar uma acção não
basta atribuir ao agente um desejo e uma crença relevante - de modo a acomodar
o carácter intensional das descrições de acções, se quisermos racionalizar uma
acção teremos também que a apresentar sob uma descrição que revele o seu
carácter intencional.
É melhor fazer aqui outra pausa antes de
prosseguir, porque se não pode haver confusão outra vez. Já expliquei em que
consiste o carácter intensional das descrições de acções: no facto de as acções
poderem ser racionalizadas, se forem apresentadas sob uma dada descrição, e de
poderem não ser racionalizadas, se forem apresentadas sob outra descrição.
Tendo isto em mente, temos que procurar encontrar a descrição certa da acção.
Essa descrição certa será uma descrição intencional. Porquê
"intencional"? Porque deverá tornar claro porque é que o agente teria
tido a intenção de a realizar.
Lembre-se do caso da pessoa que acende a luz e
alerta o ladrão. De modo a racionalizar a sua acção, temos primeiro de apontar
para o desejo e para a crença que o levaram a agir dessa maneira. Neste caso,
estaríamos a falar do desejo de acender a luz e da crença de que poderia
fazê-lo ligando o interruptor. De seguida, teríamos que encontrar uma descrição
intencional da sua acção: uma descrição da acção que nos mostre que fazia
sentido realizá-la, dado o seu desejo e a sua crença. Se apresentássemos a
nossa acção como "acção de alertar o ladrão", não teríamos conseguido
racionalizar a nossa acção. Teríamos que descrever a sua acção como "acção
de ligar o interruptor".
Isto significa que a tese a) deve, portanto,
ser reformulada mais ou menos da seguinte maneira:
a) Para racionalizar uma acção, é sempre
necessário atribuir ao agente (pelo menos) um desejo e (pelo menos) uma crença
relevante e apresentar uma descrição da acção que revele o seu carácter
intencional.
Antes de avançar para a próxima secção,
aproveito para dar três esclarecimentos adicionais sobre a).
Em primeiro lugar, porque é que digo que a
crença tem que ser relevante? Nada de muito complicado: apenas que a crença tem
de ter uma relação apropriada com o desejo. Para a crença ser relevante, tem
que nos dizer como é que o agente acreditava que o seu desejo podia ser
realizado. Imagine o leitor que tinha o desejo de ir tomar uma cerveja. De modo
a racionalizar a sua acção, temos que lhe atribuir uma crença que explique como
é que pensava poder realizar o seu desejo. Não faria, por isso, sentido
atribuir-lhe a crença de que 21 de Junho é o dia mais longo do ano. Uma crença
relevante, neste caso, seria qualquer coisa tão banal como "creio que o
empregado me dará uma cerveja se eu lhe der 1 euro".
Em segundo lugar, as crenças relevantes não
têm necessariamente de ser instrumentais, embora geralmente o sejam. (Uma crença
instrumental tem a forma "Se eu usar tais e tais e tais meios, conseguirei
realizar o meu desejo.") No exemplo usado, a crença necessária seria uma
crença instrumental: uma crença acerca de como podíamos arranjar uma cerveja.
Mas suponha agora que o seu desejo não era simplesmente o de beber uma cerveja,
mas sim o de beber uma cerveja no dia mais longo do ano. De modo a poder
concretizar este desejo, continuará, naturalmente, a precisar de uma crença
acerca de qual é o meio apropriado para arranjar uma cerveja, mas agora teremos
que lhe atribuir uma crença acerca de qual é o dia mais longo do ano. Qualquer
coisa como "creio que o dia 21 de Junho é o dia mais longo do ano".
Esta crença, tal como a crença de que o Super-Homem é Clark Kent, não é
instrumental.
Em terceiro lugar - este é um ponto importante
-, nada impede que haja mais do que um modo de racionalizar a acção do agente,
nem que uma racionalização possível da acção de um agente não constitua a razão
pela qual o agente agiu.
Tomemos o exemplo da pessoa que assina o
contrato de modo a obter um empréstimo para a casa. Se calhar, ao assinar o
contrato, a pessoa estaria a realizar dois desejos ao mesmo tempo: ter casa
própria e conquistar a sua independência, por exemplo. Deste modo, haveria duas
racionalizações disponíveis da acção: uma composta pelo par "desejo
comprar uma casa" e "creio que o modo mais eficiente de o fazer é
obter um empréstimo"; e outra pelo par "desejo conquistar a minha
indepêndencia" e "creio que o modo mais eficiente de o fazer é obter
um empréstimo".
Suponhamos agora que, embora conquistar a
nossa independência fosse importante para nós, aquilo que verdadeiramente nos
levou a obter o empréstimo foi o desejo de comprar casa própria. Nesse caso,
embora a acção de assinar o contrato pudesse ser racionalizado de duas
maneiras, só uma delas é que corresponde à razão pela qual o agente agiu. Nós
tinhamos dois motivos para querer pedir um empréstimo, mas só um desses
motivos, o de comprar casa própria, suponhamos, é que nos levou a agir.
4. Uma reformulação necessária de b)
Até agora, estive para aqui só a falar da tese
a). A tese b) andou um pouco esquecida. A tese b) era, lembre-se,
b) O par formado pelo desejo e pela crença
relevante que racionaliza a acção também constitui a causa dessa acção.
Como dissemos no final da secção anterior, pode haver mais do que um par
de desejos e crenças a racionalizar a acção. Como também dissémos, alguns
desses pares poderiam servir para racionalizar a acção, mas não constituiram,
efectivamente, a razão pela qual o agente a realizou. A tese b) deve ser
reformulada de modo a acomodar estes pontos. Talvez do seguinte modo:
b) Alguns dos pares formados por um desejo e
por uma crença relevante que racionalizam a acção também constituiram a causa dessa
acção.
Esta definição parece acomodar os dois pontos que mencionei. Em primeiro
lugar, abre a porta para mais de um par de desejos e crenças relevantes poderem
ter constituído a causa da acção. Em segundo lugar, não afirma que todos os
pares que poderiam racionalizar a acção fizerem parte da causa da acção.
5. Precisará o modelo crença-desejo de b)?
Impõe-se
um esclarecimento em relação a b). Que quero eu dizer com "causa"? O
que é que significa dizer que a crença e o desejo constituiram a causa da
acção?
O termo "causa" está a ser usado no
sentido aristotélico de "causa eficiente". Uma causa eficiente é uma
causa no sentido comum do termo. A bola de bilhar mexeu-se porque eu lhe dei
uma tacada. A minha tacada foi a causa eficiente de a bola se mexer. Do mesmo
modo, de acordo com o modelo crença-desejo, o desejo e a crença constituem a
causa eficiente da minha acção.
Há quem olhe para este modo de formular b) com
alguma suspeição. Não é de estranhar: intuitivamente, não diríamos que a minha
tacada causou o movimento da bola no mesmo sentido em que o meu desejo e a
minha crença "causaram" a minha acção.
Historicamente, há quem tenha levado esta
ideia muito a sério e passado a falar de "causalidade do agente"
("agent causation") , que é, supostamente, um tipo de causalidade
diferente do modo como a minha tacada causou o movimento da bola. Não tenciono
falar disto agora, mas parece-me que essa ideia não passa de uma grande
confusão. (Veja-se a crítica de Searle em Rationality in action, por exemplo.)
O que gostaria de frisar é que não me parece
que concordar com b) seja essencial para se acreditar no modelo crença-desejo.
Acho que o cerne do modelo crença-desejo reside em a) - b) é, por assim dizer,
descartável. Com isto não estou, obviamente, a dizer que b) é falsa; estou
simplesmente a dizer que não é essencial para o modelo crença-desejo.
Como é que b) terá arranjado maneira de ter
lugar cativo na definição canónica do modelo crença-desejo, então?
Cá para mim, essa intromissão deve-se a duas
coisas. Em primeiro lugar, ao medo generalizado de que, se uma acção não foi
causada, então surgiu espontâneamente, o que ainda deixa menos lugar para a
liberdade, como os compatibilistas (os filósofos que dizem que a liberdade e o
determinismo são compatíveis) costumam agoirar. As minhas ideias em relação à
disputa entre compatibilistas e incompatibilistas não são muito claras, pelo
que não tenho, verdadeiramente, opinião sobre se o facto de uma acção ter sido
causada significa que não foi livre. No entanto, dou comigo a pensar: porque
haveria a nossa definição do modelo crença-desejo de estar dependente de
avanços nesta área? Isso não parece fazer muito sentido. Parece-me claro que a
única posição em relação à liberdade que estaríamos "proibidos" de
ter caso defendêssemos o modelo crença-desejo seria a de que as acções ocorrem
espontâneamente. Caso tivéssemos essa posição, seria tempo perdido andar a
descobrir formas de racionalizar as acções das pessoas. Mas ninguém nos diz
que, caso recusemos aceitar que todas as acções são espontâneas, estaremos
forçados a aceitar que estão determinadas. Caso haja uma terceira via, parecida
à da teoria da "causalidade do agente" (e que, para além do mais,
tenha a vantagem de ser verdadeira, coisa que essa teoria não é), não vejo
porque não pudessemos continuar a defender o modelo crença-desejo.
Suspeito que a segunda razão pela qual b) se
intrometeu na definição canónica do modelo crença-desejo é a de ter sido
explicitamente defendida por Davidson, que é, talvez, o mais importante
defensor do modelo crença-desejo desde Hume. A influência de Davidson na
filosofia moderna é avassaladora, mas temos que saber resistir-lhe. Não podemos
partir logo do princípio de que o modelo crença-desejo tem, obrigatoriamente,
de incorporar a segunda tese só porque Davidson a defende.
Se queremos vencer, temos de saber quem são os
nossos inimigos. Não adianta andar a disparar para o ar para ver se acertamos
em alguém - podemos acabar por acertar nos nossos. Isto é tão verdadeiro para a
guerra, como para a filosofia. Penso que a inclusão de b) na definição canónica
do modelo crença-desejo só tem como resultado afugentar possíveis aliados, ou
seja: pessoas que pensam que precisamos sempre de desejos e crenças para
racionalizar acções, mas que não gostam de pensar em desejos e crenças como
causas eficientes da acção.
Os grandes inimigos do modelo crença-desejo
são os que defendem um modelo não-psicologista da acção, ou que defendem um
modelo psicologista da acção, mas que, das duas, uma: ou dizem que as crenças
chegam para motivar; ou então que os desejos chegam para motivar. Estes três é
que são os verdadeiros inimigos - é para lá que o defensor do modelo
crença-desejo deve apontar os canhões.
6. Uma relação desigual?
Há ainda uma ideia geral que anda associada ao
modelo crença-desejo, mas que é difícil de formular com precisão. É a ideia de
que, embora a crença e o desejo sejam ambos necessários para haver acção, a
importância deles é desigual: o desejo é, de certa forma, o parceiro dominante
da relação.
Uma tese que capta bem esta ideia é a das
"direcções de correspondência". É comum dizer-se, desde Anscombe, que
o desejo e a crença têm diferentes direcções de correspondência. O desejo tem
uma direcção de correspondência mente-mundo; a crença, uma direcção de
correspondência mundo-mente. Porquê esta diferença? Porque o desejo tem por
objectivo criar uma alteração no mundo - daí ter a direcção de correspondência
mente-mundo; a crença, por outro lado, tem por objectivo representar o mundo de
forma de forma exacta - daí ter a direcção de correspondência mundo-mente.
Há quem pareça pensar que a diferença entre
desejos e crenças não é apenas de função, mas também de poder causal. No
próximo ensaio, terei oportunidade de falar sobre isso.
7. Conclusão
Como foi visível, o meu objectivo neste ensaio
não foi o de apresentar críticas ao modelo crença-desejo, mas somente o de
formular da forma mais precisa possível as teses de que é composto, tendo
sempre o cuidado de o demarcar de outras teorias que por vezes se metem à
mistura. Espero que tenha ficado com uma ideia mais clara sobre o que é o
modelo crença-desejo (ou que, pelo menos, não tenha ficado mais confuso do que
já estava!)
Ficou com curiosidade acerca de qual poderá
ser a tese segundo a qual crença e desejo são causalmente desiguais? Então não
há como enganar: leia o próximo artigo.
Bibliografia:
Branquinho - "Extensão/intensão", em Enciclopédia de termos
lógico-filosóficos,
Branquinho e Murcho, Eds., Gradiva, 2001
Dancy - Practical
reality, Oxford University Press, 2002
Davidson -
"Actions, reasons and causes" e "Agency", ambos em Essays
on actions and events, Oxford University Press, 2001
Guttenplan, ed. -
"Action (2)", "Intention" e "Reasons and causes",
todos em A companion to the philosophy of mind, Blackwell Publishers, 2001
Searle - Rationality
in action, MIT Press, 2001 (especialmente cap. 3)
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