Aristóteles
definiu o homem como sendo o animal racional. Prima facie, um animal é racional se, e somente se, de uma forma
geral, age racionalmente. Mas o que é agir racionalmente?
A
resposta aristotélica a esta pergunta encontra-se na Ética Nicomaqueia. Aí Aristóteles delineia os contornos da sua
teoria da acção racional. Esta pode ser resumida através da seguinte tese. Uma
acção é racional se, e somente se, pode ser representada como constituindo o
resultado da exemplificação por um dado agente A do seguinte silogismo
prático:
a
tem um desejo d
o conteúdo do qual é e;
|
a
tem uma crença g
o conteúdo da qual é que fazer q é a melhor maneira de alcançar e;
|
\ a
faz q.
|
Um
indivíduo cujas acções admitem ser derivadas de acordo com este algoritmo é
então um indivíduo que age racionalmente ou um agente racional. Por outro lado,
um indivíduo acerca do qual as premissas do silogismo prático são, em cada
circunstância, verdadeiras, mas que, nas circunstâncias nas quais elas são
verdadeiras, não se comporta de acordo com a conclusão do mesmo é um indivíduo
que age irracionalmente; não é, portanto, um agente racional.
A avaliação desta teoria coloca-nos
perante uma encruzilhada fundamental: será que, dada a natureza das nossas
atribuições de crenças e desejos, é possível determinar em cada caso o valor de
verdade das premissas de forma independente da determinação do valor de verdade
da conclusão? Ou será que a teoria tem uma validade a priori e que é apenas por intermédio da sua pressuposição que
atribuímos crenças e desejos aos agentes?
A
opção por uma resposta afirmativa à primeira pergunta coloca-nos dois novos e
difíceis problemas: primeiro, quais são então as condições de verdade das
frases que ocorrem nas premissas? segundo, se não somos obrigados pelo nosso
próprio quadro conceptual a associar a verdade das premissas à verdade da
conclusão, então, e uma vez que a conexão entre elas não é uma conexão lógica,
a verdade das premissas e a verdade da conclusão do silogismo prático deveriam
encontrar-se entre si numa relação apenas contingente.
Comecemos
por considerar este segundo problema. Se a relação entre as premissas e a
conclusão do silogismo prático é apenas contingente, então deveria ser
possível, pelo menos, colocar a hipótese de que a teoria poderia ser falsa a
nosso respeito. Mas a consideração desta última possibilidade parece, por seu
turno, conduzir-nos à seguinte alternativa indesejável: ou se pode dar o caso
de que seres racionais sejam os protagonistas de acções irracionais ou se pode
dar o caso de que o homem não seja racional. Ora, o primeiro termo desta
alternativa tem um toque de paradoxo e o seu segundo termo parece pôr em causa
os fundamentos da nossa concepção do humano. O primeiro problema, por seu lado,
tem alimentado todo um ramo de investigação filosófica sem que se tenha chegado
a qualquer acordo substancial sobre a questão.
A
opção por uma resposta afirmativa à segunda pergunta da encruzilhada mencionada
acima leva-nos também para caminhos difíceis. Com efeito, a selecção deste
termo da alternativa parece levar a que se tenha que pôr em causa o valor
psicológico da teoria. Na realidade, se a teoria é válida a priori e se é apenas por ela constituir o quadro conceptual por
intermédio do qual nós percepcionamos os comportamentos humanos como acções de
sujeitos racionais que nós podemos, em cada caso, transformar as frases abertas
das premissas em frases propriamente ditas, então a teoria torna-se
psicologicamente vazia. Isto é, se este é o caminho correcto para sair da
encruzilhada, então quando dizemos que o fulano A fez T porque A tinha um desejo D o conteúdo do qual era E e
A tinha uma crença C o conteúdo da qual era que fazer T seria a melhor maneira de agir para
alcançar E, não estaremos a dizer
outra coisa senão que A é uma pessoa,
o comportamento da qual nós somos, ipso
facto, levados a interpretar como sendo o de um sujeito racional. A causa eficiente das movimentações
observáveis de A fica, porém,
totalmente por esclarecer e, portanto, a teoria não tem valor empírico.
A
despeito desta dificuldade, Platão parece ter favorecido a opção por algo como
este caminho. Com efeito, ele considera no Protágoras
que não é possível imaginar-se que alguém dotado de desejos e crenças possa
agir contra a sua própria crença acerca de qual é a melhor forma de agir numa
dada ocasião para satisfazer o seu desejo. Isto é, que alguém acerca de quem
algo como as premissas do silogismo prático possam ser consideradas como
verdadeiras possa não agir de acordo com o que Aristóteles veio a considerar
ser a conclusão do mesmo é uma hipótese considerada por Platão como sendo
destituída de sentido. A satisfação da condição da racionalidade parece,
portanto, ser vista por este como necessária para que um dado comportamento
seja considerado como uma acção; um comportamento que, por qualquer razão, não
seja enquadrável na teoria que Aristóteles veio a codificar no algoritmo do
silogismo prático não seria, pura e simplesmente, uma acção e, portanto, não
contaria como contra-exemplo à validade da teoria, a qual deveria ser entendida
como uma teoria da acção e não como uma teoria geral do comportamento.
A
despeito das dificuldades mencionadas acima, Aristóteles parece inclinar-se
mais para o primeiro caminho definido na encruzilhada mencionada acima do que
para o segundo. Com efeito, ele aceita como plausível a ideia de que indivíduos
racionais possam por vezes agir em desarmonia com a doutrina codificada no
silogismo prático. Ele considera, em particular, duas situações nas quais isso
é possível: a situação da fraqueza da
vontade, na qual o indivíduo racional tem um mau momento e se deixa dominar
por impulsos sensíveis que determinam que ele desempenhe uma acção que ele
próprio não considera como sendo a melhor para atingir os seus fins; e a
situação na qual o agente aplica incorrectamente o princípio geral a um caso
particular, isto é, aquela situação na qual o agente pretende, de facto, agir
de acordo com o conteúdo da sua crença, mas na qual a acção que ele de facto
leva a cabo não constitui realmente uma instância do género de acção que ele
pretendia ter levado a cabo. Ora, se casos como estes são imagináveis, isto tem
que significar que as frases constantes nas premissas do silogismo prático têm
um valor de verdade intrínseco, o qual deverá ser acessível independentemente
do nosso uso interpretativo da teoria.
O
toque de paradoxo associado à ideia de que seres racionais poderiam agir irracionalmente
é combatido por Aristóteles com a introdução daquilo a que se poderia chamar
uma concepção disposicionalista da acção. Isto é, para Aristóteles,
comportamentos irracionais poderiam também ser considerados como acções, desde
que fossem comportamentos de indivíduos que, em geral, agem, ou tenham a
disposição para agir, racionalmente. Em todo o caso, convém salientar que, a
menos que um agente racional seja vítima momentânea de alguma das
insuficiências cognitivas tipificadas acima, Aristóteles, tal como Platão,
tão-pouco parece conceber a possibilidade de que um agente racional possa realmente agir contra a sua crença
acerca de qual é a melhor forma de agir. Isto é, os casos de irracionalidade
considerados por Aristóteles são, na realidade, ou casos de desvios pulsionais
ou casos de uso inadequado de termos gerais e não genuínos contra-exemplos,
mesmo que apenas imaginários, à validade necessária do silogismo prático para
seres como nós.
Isto
é insatisfatório porque, das duas, uma: ou a conexão entre a verdade das
premissas e a verdade da conclusão do silogismo prático é realmente uma conexão
necessária ou essa conexão não é necessária. No primeiro caso, dado que essa
conexão não é uma conexão lógica, isso implica que ela é conceptualmente determinada
por uma teoria interpretativa implícita, como defende o ponto de vista
platonista. Mas nessas circunstâncias torna-se difícil conceber como seria
então possível determinar de forma independente o valor de verdade das
premissas.
No
segundo caso, teria de ser possível imaginar, mesmo que isso fosse
empiricamente falso, que seres como nós poderiam agir contra a sua própria
crença acerca da melhor maneira de agir numa dada ocasião, hipótese essa que
Aristóteles parece não aceitar. Saliente-se, ainda, que Aristóteles não
esclarece de todo como determinar quais possam ser as condições de verdade
debaixo das quais as premissas de um silogismo prático poderiam ser
verificadas, respectivamente, falsificadas, de forma independente.
As
posições expostas no Protágoras e na Ética Nicomaqueia cristalizam o
essencial dos pontos de vista posteriormente exemplificados pelos diferentes
intervenientes no debate da tradição filosófica ocidental em torno do problema
da acção racional (nomeadamente, Tomás de Aquino, Kant, Dray, Hempel ou von
Wright, apenas para citar alguns). Mais recentemente, todavia, no artigo «How
is weakness of the will possible?», Davidson defendeu, tanto contra Platão como
contra Aristóteles, que é não apenas possível como factual que um indivíduo racional
(nomeadamente, um ser humano) aja contra a sua crença acerca de qual é a melhor
forma de agir sem estar a ser vítima ou de um assalto incontrolável das suas
pulsões instintivas ou de um erro de identificação ou de qualquer outro
fenómeno psicológico que o diminua enquanto agente. Neste caso, o agente
racional estará, pura e simplesmente, a agir irracionalmente.
A
posição de Davidson sobre esta questão pode, todavia, ser vista como uma
extensão da posição disposicionalista de Aristóteles. Com efeito, aquele
considera, tal como este, que um comportamento dirigido de um ser que é, prima facie, racional é uma acção, mesmo
que seja irracional. Por outro lado, desde que as acções irracionais constituam
a excepção e não a regra, um agente não deixa de ser racional por, de quando em
vez, agir irracionalmente. De um modo um pouco paradoxal, porém, Davidson
combina esta sua tese com a adesão à perspectiva platonista de acordo com a
qual uma dada teoria adequada da acção racional (que, no caso de Davidson, é não
a teoria do silogismo prático mas uma versão particular da teoria bayesiana da
decisão) tem uma validade a priori
para a explicação da acção humana, constituindo, por conseguinte, a rede
interpretativa no interior da qual é possível, e fora da qual não é possível,
desenvolver um trabalho fecundo de explicação psicológica.
António
Zilhão
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