Desidério Murcho
É comum falar em argumentos dedutivos, opondo-os aos
indutivos. Este artigo procura mostrar que há um conjunto de aspectos subtis
que devem ser tidos em linha de conta, caso contrário será tudo muito confuso.
Antes de mais: a expressão "argumento
indutivo" ou "indução" dá origem a confusões porque se pode ter
dois tipos muito diferentes de argumentos: as generalizações e as previsões.
Uma generalização é um argumento como
Todos os corvos observados até hoje são pretos.
Logo, todos os corvos são pretos.
Numa generalização parte-se de algumas verdades acerca
de alguns membros de um dado domínio e generaliza-se essas verdades para todos
os membros desse domínio, ou pelo menos para mais.
Uma previsão é um argumento como
Todos os corvos observados até hoje são pretos.
Logo, o próximo corvo que observarmos será preto.
Uma pessoa imaginativa e com vontade de reduzir coisas
— uma síndrome comum em filosofia — pode querer afirmar que podemos reduzir as
previsões às generalizações via dedução: a conclusão da previsão acima segue-se
dedutivamente da conclusão da generalização anterior. Não acho que isto capta
de modo algum a natureza lógica ou conceptual da previsão, mas isso não é
relevante neste artigo. O que conta é que, mesmo que a previsão seja redutível
à generalização mais dedução, continua a ser um modo comum de falar e uma parte
importante do nosso pensamento.
Numa veia ainda reducionista, algumas pessoas poderão
querer dizer que todos os outros tipos de argumentos não dedutivos se reduzem à
generalização e à previsão. Assim, não valeria a pena falar de argumentos de
autoridade, por exemplo, que são argumentos como o seguinte:
Einstein afirmou que não se pode viajar mais depressa
do que a luz.
Logo, não se pode viajar mais depressa do que a luz.
Logo, não se pode viajar mais depressa do que a luz.
Uma vez mais: pode ser que este tipo de argumentos
seja redutível à generalização e à previsão. Mas é útil compreender que este
tipo de argumentos tem exigências próprias e portanto é útil falar deles
explicitamente, ainda que se trate de um tipo de inferência redutível a
qualquer outro tipo ou tipos.
Dados estes esclarecimentos, importa agora esclarecer
o seguinte: O que é um argumento dedutivo? E como se distingue tal coisa de um
argumento indutivo?
Vou começar por dizer o modo como não se deve entender
estas noções. A primeira coisa a não fazer é pensar que um argumento dedutivo
se caracteriza por ser impossível a sua conclusão ser falsa se as suas
premissas forem verdadeiras. Pensar isto provoca confusão porque significaria
que não há argumentos dedutivos inválidos. Porquê? Porque só nos argumentos
dedutivos válidos é impossível a conclusão ser falsa se as suas premissas forem
verdadeiras; nos argumentos dedutivos inválidos, nas falácias (como a afirmação
da antecedente, por exemplo) é perfeitamente possível as premissas serem
verdadeiras e a conclusão falsa.
Em termos rigorosos, não há problema algum com esta
opção; significa apenas que estamos a dar ao termo "dedução" força
factiva, como damos ao termo "demonstração". Do mesmo modo que não há
demonstrações inválidas, também não há, de acordo com esta opção, deduções
inválidas. Se é uma dedução, é válida; se é uma demostração, é válida. Uma
"demonstração" inválida nada demonstra; uma "dedução"
inválida nada deduz.
O primeiro problema desta opção é exigir a reforma do
modo como geralmente se fala e escreve sobre argumentos dedutivos — pois é
comum falar de argumentos dedutivos inválidos, como as falácias formais (por
oposição às informais). Este problema não é decisivo, caso não se levantasse
outro problema: o segundo.
O segundo problema é o seguinte: Dado que todos os
argumentos são dedutivos ou não dedutivos (ou indutivos, se quisermos reduzir
todo o campo da não dedução à indução), e dado que não faz muito sentido usar o
termo "dedução" factivamente e o termo "indução" não
factivamente, o resultado bizarro é que deixa de haver argumentos inválidos.
O termo "argumento" torna-se factivo tal como os termos
"dedução" e "indução". E isto já é demasiado rebuscado; as
pessoas não usam mesmo o termo deste modo, nunca; passamos a vida a falar de
argumentos inválidos. E faz todo o sentido que o façamos, pois se adoptarmos o
entendimento factivo do termo um "argumento" inválido não é de todo
em todo um argumento: é apenas um conjunto de proposições.
É sem dúvida possível aceitar o resultado bizarro, e
passar a usar o termo "argumento" factivamente. Mas se tivermos a
possibilidade de o evitar, de forma fundamentada e reflectida, estaremos a
facilitar as coisas — sobretudo ao nível do ensino.
E temos possibilidade de evitar este resultado
bizarro, e manter o uso de "argumento" de tal modo que faça sentido
falar de argumentos inválidos, de deduções inválidas e de induções inválidas.
Para o fazer temos de distinguir cuidadosamente a noção de argumento (dedutivo
ou não) da noção de validade (dedutiva ou não). Podemos, claro, usar um termo
diferente para a validade não dedutiva, e reservar o termo "validade"
para a validade dedutiva, mas esta é uma mera opção terminológica: tanto faz. O
que é crucial é poder dizer que um argumento é dedutivo, apesar de inválido, ou
indutivo, apesar de inválido. E como se faz isso?
Apresentando os argumentos dedutivos como argumentos
cuja validade ou invalidade depende exclusivamente da sua forma lógica; e os
argumentos não dedutivos como argumentos cuja validade ou invalidade não
depende exclusivamente da sua forma lógica. Evidentemente, isto não se aplica a
todos os argumentos dedutivos, mas esta é uma complicação que esclareceremos
dentro de momentos. Para já, vejamos alguns exemplos:
Se Sócrates era ateniense, era grego.
Sócrates era grego.
Logo, era ateniense.
Se Sócrates era ateniense, era grego.
Sócrates era ateniense.
Logo, era grego.
O primeiro argumento é inválido. Mas qualquer
argumento indutivo, ainda que válido, sofre deste tipo de invalidade dedutiva.
Devemos então dizer que os argumentos dedutivamente inválidos não se distinguem
dos argumentos indutivos válidos? Claro que não, dado que eles se distinguem
muito claramente uns dos outros.
O primeiro argumento é dedutivamente inválido porque a
sua invalidade pode ser explicada recorrendo unicamente à sua forma lógica. Mas
seria uma enorme falta de sensibilidade lógica abandonar uma indução boa com
base no facto de a sua forma lógica e a verdade das suas premissas não garantir
a verdade da sua conclusão.
Assim, um argumento é dedutivo ou indutivo em função
da explicação mais adequada que tivermos para a sua validade ou invalidade. Um
argumento dedutivo inválido explica-se adequadamente recorrendo unicamente à
sua forma lógica, no sentido em que a sua forma lógica é suficiente para
distinguir os argumentos dedutivos inválidos dos válidos; o mesmo não acontece
com os argumentos indutivos, pois a sua validade ou invalidade não depende
exclusivamente da sua forma lógica.
Deste modo, podemos manter a tradição de falar de
argumentos dedutivos e indutivos; e podemos dizer que há argumentos dedutivos
inválidos; e não somos forçados a aceitar que todo o argumento indutivo, por
melhor que seja, é sempre um argumento dedutivo inválido. Isto não acontece
porque os argumentos dedutivos nunca são indutivos, ainda que sejam inválidos.
Porque o que conta é o tipo de explicação adequada para a sua validade ou
invalidade.
Em termos primitivos, pois, o que conta é a validade e
invalidade; há diferentes tipos de validade e invalidade: a dedutiva e a
indutiva. E os argumentos são dedutivos ou indutivos consoante a sua validade
ou invalidade for dedutiva ou indutiva.
É agora tempo de esclarecer que nem todos os
argumentos dedutivos dependem exclusivamente da sua forma lógica; há argumentos
dedutivos de carácter conceptual, como "O João é casado; logo, não é
solteiro". Não é difícil acomodar estas variedades de dedução não formal
no esquema aqui proposto: tudo depende da melhor explicação disponível para a
validade ou invalidade em causa.
Podemos assim continuar a falar de argumentos
dedutivos e indutivos, validos ou inválidos. E os argumentos dedutivos
inválidos nunca são uma subclasse dos argumentos indutivos.
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