domingo, 8 de fevereiro de 2009

O argumento do desígnio iii


Parte III
É a personagem Fílon, nos Diálogos de Hume, que discute principalmente este argumento que Cleantes apresenta. Fílon começa por apresentar outras analogias que podem ser estabelecidas entre acontecimentos naturais e cujas conclusões são reconhecidamente erradas, acabando por evidenciar a dissimilitude entre os relógios, casas (outro dos exemplos muito usados pelos teístas) e outras obras humanas, e os objectos e acontecimentos naturais, afirmando que só uma conjectura falível poderia pressupor uma causa similar entre objectos e fenómenos de semelhança tão remota. Mas uma das objecções mais fortes que Fílon apresenta a Cleantes e ao seu argumento do desígnio é a seguinte:
«Mas, permitindo que possamos tomar as operações de uma parte da natureza sobre outra como o fundamento do nosso juízo com respeito à origem do todo (o que nunca se pode admitir), porquê, todavia, seleccionar um princípio tão minúsculo, tão fraco, tão limitado como a razão e o desígnio dos animais que encontramos neste planeta? Que privilégio peculiar tem esta pequena agitação do cérebro a que chamamos "pensamento" que temos assim de fazer dela o modelo de todo o universo? A nossa parcialidade a nosso próprio favor apresenta-a de facto sempre que pode; mas a filosofia sólida deve proteger-se cuidadosamente de uma ilusão tão natural.» (Op. Cit., p. 19)
É deste modo que Fílon torna evidente a fragilidade da analogia. É que do facto de haver operações mentais como o pensamento e a intenção em algumas partes da natureza, nomeadamente nos humanos e noutros animais, não se segue que essa possa ser a regra do todo que é a natureza, que excede em muito esta parte de que Fílon fala. Chegar à explicação do todo partindo apenas de uma parte, sem mais, torna o argumento muito frágil. Ao mesmo tempo, como diz Fílon, se estamos preparados para admitir (ainda que não o devamos fazer) este método de raciocínio como válido, porquê, então, escolher a parte da natureza que mais nos diz respeito, e não outra? Isto leva-nos a outra das objecções contra o argumento do desígnio, que é a arbitrariedade com que os teístas escolhem a hipótese de Deus e do desígnio como a explicação certa, quando muitas outras são possíveis, umas igualmente frágeis (ou mesmo absurdas), outras bastante mais sérias. Eis o que diz Fílon a Cleantes propósito de outras explicações possíveis:
«Se o universo suporta uma maior semelhança com os corpos animais e vegetais do que com as obras da sabedoria humana, é mais provável que a sua causa se assemelhe à causa dos primeiros do que à da última, e a sua origem deva mais propriamente ser atribuída à geração animal ou vegetal do que à razão ou ao desígnio. A tua conclusão, mesmo de acordo com os teus próprios princípios, é portanto fraca e imperfeita. [...] O mundo assemelha-se mais a um animal ou a um vegetal do que a um relógio ou tear. É mais provável, portanto, que a sua causa se assemelhe à causa dos primeiros. A causa dos primeiros é a geração animal ou vegetal. Podemos inferir, portanto, que a causa do mundo é algo semelhante ou análogo à geração animal ou vegetal.» (Op. Cit., pp. 44-45) De facto, esta hipótese de Fílon, para além de ser mais lógica e plausível do que a hipótese teísta de Cleantes, é a que se aproxima mais das teorias darwinistas da evolução das espécies por selecção natural, que surgiriam um século mais tarde (séc. XIX), bem como se aproxima de todas as descobertas científicas posteriores, não só da biologia, como da química, e sobretudo da física, quanto às possíveis certezas que podemos ter sobre a criação do universo. Segundo a ciência, foram os acontecimentos naturais que, numa sucessão de acasos (sem qualquer desígnio especial ou divino), embora de acordo com as "leis da natureza", deram origem à criação do mundo e à sua existência tal como o conhecemos. Assim, antes ainda de poder sonhar sequer com as teses darwinistas e o modo como estas revolucionaram o conhecimento científico, Hume, através do seu personagem Fílon, já apresentava uma objecção ao argumento do desígnio que nem ele poderia imaginar que viesse a ser uma das bases científicas mais devastadoras para este argumento.

Miguel Moutinho

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