No seu livro de 1996, Living High and Letting Die, Peter Unger, um filósofo da Universidade de Nova Iorque, apresenta uma série de exemplos imaginários engenhosos, concebidos para avaliar as nossas intuições acerca da moralidade de viver bem sem doar quantias avultadas para ajudar pessoas que passam fome, estão desnutridas ou então a morrer de doenças facilmente tratáveis, como a diarreia. Eis a minha paráfrase de um dos seus exemplos:
Bernardo está quase a reformar-se. Investiu a maior parte das suas poupanças num automóvel antigo muito raro e valioso, um Bugatti, mas não conseguiu segurá-lo. O Bugatti é a sua alegria e o seu motivo de orgulho. Além de ter prazer a conduzir e a cuidar do seu carro, Bernardo sabe que o seu crescente valor comercial significa que conseguirá sempre vendê-lo e viver confortavelmente depois de se ter reformado. Um dia, durante um passeio de automóvel, Bernardo estaciona o Bugatti perto do fim de um desvio ferroviário e começa a passear, subindo pela linha. Vê imediatamente que um comboio, sem ninguém a conduzi-lo, está a descer pela linha. Ao olhar para baixo, vê a pequena silhueta de uma criança que muito provavelmente será morta pelo comboio. Ele não pode travar o comboio e a criança está demasiado longe para ser alertada, mas pode mudar a agulha que conduzirá o comboio ao desvio onde está o seu Bugatti estacionado. Se o fizer ninguém será morto, mas o comboio destruirá o seu Bugatti. Ao pensar no prazer de possuir o carro e na segurança financeira que este representa, Bernardo decide não mudar a agulha. A criança é morta. Durante muitos anos, Bernardo desfruta da posse do seu Bugatti e da segurança financeira que este representa.
A conduta de Bernardo, dirão prontamente muitos de nós, foi profundamente errada. Unger concorda. Mas depois recorda-nos que também nós temos a oportunidade de salvar a vida de crianças. Podemos fazer donativos a instituições como a Unicef ou a Oxfam America. Quanto dinheiro teríamos de dar a uma destas organizações para existir uma forte probabilidade de salvarmos uma criança cuja vida está ameaçada por doenças facilmente evitáveis? (Não penso que valha mais a pena salvar crianças do que adultos, mas, como ninguém pode sustentar que as crianças são responsáveis pela sua própria pobreza, concentrarmo-nos nelas simplifica as questões.) Unger consultou alguns especialistas e utilizou a informação que eles lhe deram para fazer algumas estimativas plausíveis, que incluem os custos de angariar fundos, as despesas administrativas e o custo de proporcionar ajuda onde esta é mais necessária. Pelas suas contas, um donativo de 200 dólares ajudaria a transformar uma criança de dois anos debilitada numa criança de seis anos saudável, proporcionando uma passagem segura pelos anos mais perigosos da infância.
Uma diferença genuína entre Bernardo e aqueles que podem fazer, mas não fazem, donativos a organizações de ajuda internacional é a seguinte: Bernardo é o único que pode salvar a criança que está na linha, mas existem centenas de milhões de pessoas que podem doar 200 dólares a organizações de ajuda internacional. O problema é que a maior parte delas não o estão a fazer. Será que isto significa que não é errado o leitor o não fazer?
Suponhamos que existem mais proprietários de carros de colecção com um valor incalculável (Carla, David, Ema, Frederico e assim por diante, até Zulmira), todos na mesma situação de Bernardo, com o seu próprio desvio ferroviário e a sua própria agulha – e que todos sacrificam a criança de modo a preservar o automóvel que tanto estimam. Será que isto implicaria que Bernardo não agiria mal se fizesse o mesmo? Responder afirmativamente a esta questão é subscrever uma ética de rebanho – o tipo de ética que levou muitos alemães a olhar para o lado quando as atrocidades nazis estavam a ser cometidas. O facto de outros não se terem comportado melhor não nos faz desculpá-los.
Parece que não temos um fundamento sólido para traçar uma linha moral clara entre a situação de Bernardo e a de qualquer leitor deste artigo que tenha 200 dólares a mais e não os doe a uma agência de ajuda internacional. Estes leitores parecem estar a agir pelo menos tão mal como Bernardo agiu quando escolheu deixar o comboio atropelar a criança desprevenida.
Embora o cenário do Bugatti se torne tão absurdo quando é levado ao extremo, não deixa de suscitar uma ideia importante: só quando os sacrifícios se tornam realmente muito importantes é que a maior parte das pessoas está disposta a dizer que Bernardo nada faz de errado quando decide não mudar a agulha. Obviamente, é possível que a maior parte das pessoas esteja enganada; não podemos resolver questões morais através de sondagens. Mas considere por si mesmo o nível de sacrifício que exigia a Bernardo, e pense depois na quantia que teria de doar de modo a fazer um sacrifício aproximadamente igual. Essa quantia será quase de certeza muito, muito superior a 200 dólares. Para a maior parte dos americanos da classe média, estará mais perto dos 200 000 dólares.
SINGER, Peter, Escritos sobre uma vida ética, 2008. Lisboa: D. Quixote, pp. 134- 137
Bernardo está quase a reformar-se. Investiu a maior parte das suas poupanças num automóvel antigo muito raro e valioso, um Bugatti, mas não conseguiu segurá-lo. O Bugatti é a sua alegria e o seu motivo de orgulho. Além de ter prazer a conduzir e a cuidar do seu carro, Bernardo sabe que o seu crescente valor comercial significa que conseguirá sempre vendê-lo e viver confortavelmente depois de se ter reformado. Um dia, durante um passeio de automóvel, Bernardo estaciona o Bugatti perto do fim de um desvio ferroviário e começa a passear, subindo pela linha. Vê imediatamente que um comboio, sem ninguém a conduzi-lo, está a descer pela linha. Ao olhar para baixo, vê a pequena silhueta de uma criança que muito provavelmente será morta pelo comboio. Ele não pode travar o comboio e a criança está demasiado longe para ser alertada, mas pode mudar a agulha que conduzirá o comboio ao desvio onde está o seu Bugatti estacionado. Se o fizer ninguém será morto, mas o comboio destruirá o seu Bugatti. Ao pensar no prazer de possuir o carro e na segurança financeira que este representa, Bernardo decide não mudar a agulha. A criança é morta. Durante muitos anos, Bernardo desfruta da posse do seu Bugatti e da segurança financeira que este representa.
A conduta de Bernardo, dirão prontamente muitos de nós, foi profundamente errada. Unger concorda. Mas depois recorda-nos que também nós temos a oportunidade de salvar a vida de crianças. Podemos fazer donativos a instituições como a Unicef ou a Oxfam America. Quanto dinheiro teríamos de dar a uma destas organizações para existir uma forte probabilidade de salvarmos uma criança cuja vida está ameaçada por doenças facilmente evitáveis? (Não penso que valha mais a pena salvar crianças do que adultos, mas, como ninguém pode sustentar que as crianças são responsáveis pela sua própria pobreza, concentrarmo-nos nelas simplifica as questões.) Unger consultou alguns especialistas e utilizou a informação que eles lhe deram para fazer algumas estimativas plausíveis, que incluem os custos de angariar fundos, as despesas administrativas e o custo de proporcionar ajuda onde esta é mais necessária. Pelas suas contas, um donativo de 200 dólares ajudaria a transformar uma criança de dois anos debilitada numa criança de seis anos saudável, proporcionando uma passagem segura pelos anos mais perigosos da infância.
Uma diferença genuína entre Bernardo e aqueles que podem fazer, mas não fazem, donativos a organizações de ajuda internacional é a seguinte: Bernardo é o único que pode salvar a criança que está na linha, mas existem centenas de milhões de pessoas que podem doar 200 dólares a organizações de ajuda internacional. O problema é que a maior parte delas não o estão a fazer. Será que isto significa que não é errado o leitor o não fazer?
Suponhamos que existem mais proprietários de carros de colecção com um valor incalculável (Carla, David, Ema, Frederico e assim por diante, até Zulmira), todos na mesma situação de Bernardo, com o seu próprio desvio ferroviário e a sua própria agulha – e que todos sacrificam a criança de modo a preservar o automóvel que tanto estimam. Será que isto implicaria que Bernardo não agiria mal se fizesse o mesmo? Responder afirmativamente a esta questão é subscrever uma ética de rebanho – o tipo de ética que levou muitos alemães a olhar para o lado quando as atrocidades nazis estavam a ser cometidas. O facto de outros não se terem comportado melhor não nos faz desculpá-los.
Parece que não temos um fundamento sólido para traçar uma linha moral clara entre a situação de Bernardo e a de qualquer leitor deste artigo que tenha 200 dólares a mais e não os doe a uma agência de ajuda internacional. Estes leitores parecem estar a agir pelo menos tão mal como Bernardo agiu quando escolheu deixar o comboio atropelar a criança desprevenida.
Embora o cenário do Bugatti se torne tão absurdo quando é levado ao extremo, não deixa de suscitar uma ideia importante: só quando os sacrifícios se tornam realmente muito importantes é que a maior parte das pessoas está disposta a dizer que Bernardo nada faz de errado quando decide não mudar a agulha. Obviamente, é possível que a maior parte das pessoas esteja enganada; não podemos resolver questões morais através de sondagens. Mas considere por si mesmo o nível de sacrifício que exigia a Bernardo, e pense depois na quantia que teria de doar de modo a fazer um sacrifício aproximadamente igual. Essa quantia será quase de certeza muito, muito superior a 200 dólares. Para a maior parte dos americanos da classe média, estará mais perto dos 200 000 dólares.
SINGER, Peter, Escritos sobre uma vida ética, 2008. Lisboa: D. Quixote, pp. 134- 137
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