Parte VI
O mal é necessário como um meio para o bem
Depois de ter exposto a falácia do argumento da necessidade lógica da existência simultânea do bem e do mal como correlativos, Mackie expõe a falácia do argumento que apresenta a necessidade do mal como meio para o bem.
O filósofo começa por dizer que um tal argumento dificilmente poderá responder ao problema do mal, uma vez que "implica obviamente uma severa restrição do poder de Deus." (p. 30) Quando alguém afirma que um certo elemento é um meio para atingir um certo fim está a afirmar que essa é uma acção causal, ou seja, não é uma acção livre, estando, portanto, determinada. Se Deus tem de introduzir o elemento mal como um meio para atingir o fim que é o bem, então isso quer dizer que Deus está submetido às leis da causalidade, não sendo absolutamente livre porque está sujeito à determinação, o que colide frontalmente com o seu predicado de omnipotente, habitualmente afirmado pela maior parte dos teístas. Do mesmo modo, esta perspectiva não só implica que Deus está limitado pelas leis causais, como também que, ao estar limitado por elas, não pode ter sido ele a criá-las, o que, uma vez mais, não é a posição generalizada dos teístas.
Assim, como conclui Mackie, se o teísta quiser apresentar este argumento como solução para o problema do mal, terá de negar uma das duas seguintes proposições: ou que "Deus é omnipotente", ou que "«omnipotente» significa aquilo que exprime" (p. 30), ou seja, o poder de fazer tudo.
O universo é melhor com algum mal em si do que se fosse se não houvesse mal
Mackie entende este argumento como a defesa do mal como mal físico, ou seja, males como a dor e a doença, que despertam o bem moral, como a empatia ou compaixão, a benevolência ou o heroísmo. Deste modo, "o universo é melhor com algum mal em si do que se fosse se não houvesse mal" porque este mal que o universo contém desperta, alegadamente, o bem, que não se manifestaria de forma tão forte se não houvesse mal no universo. Mackie estabelece um quadro de base para tentar clarificar e compreender em que consiste este argumento:
Vejamos exactamente o que está a ser feito aqui. Vamos chamar à dor e à miséria "mal de primeira ordem" ou "mal 1". O que contrasta com este, nomeadamente o prazer e a felicidade, será chamado de "bem de primeira ordem" ou "bem 1". Distinto deste é o "bem de segunda ordem" ou "bem 2", que, de algum modo, emerge numa situação complexa em que o mal 1 é uma componente necessária — logicamente, não apenas causalmente, mas necessariamente. (Exactamente como ele emerge não importa: na solução mais imediata desta solução, o bem 2 é simplesmente a elevação da felicidade em contraste com a miséria, noutras versões inclui a empatia com o sofrimento, o heroísmo em face do perigo, e o decréscimo gradual do mal de primeira ordem e o aumento do bem de primeira ordem.) Também se pressupõe que o bem de segunda ordem é mais importante do que o mal ou o bem de primeira ordem, em particular que excede o mal de primeira ordem que envolve. (p. 31)
Mackie reconhece a subtileza desta solução para o problema do mal, pois que procura sustentar a bondade e a omnipotência de Deus com a justificação de que este é o melhor de todos os mundos logicamente possíveis, uma vez que permite a existência de bens de segunda ordem (os mais importantes), ao mesmo tempo que permite a existência de males, designadamente males de primeira ordem. De facto, segundo esta explicação, seriam estes males de primeira ordem que fariam com que houvesse os bens mais importantes — os bens de segunda ordem.
Em resposta, Mackie afirma que esta explicação deixa de opor o bem ao mal — antes os torna interdependentes —, o que implica que, ao contrário do que tinha estabelecido no princípio da sua análise, uma coisa boa deixa de tender para a eliminação do mal. Ora, nenhum teísta quererá nem poderá defender isto seriamente, pois, ainda que use este argumento, descobrirá que é inconsistente com a perfeita bondade (e mesmo com a omnipotência) de Deus. Mackie explica que, com esta solução, o quadro se modifica substancialmente:
O bem de primeira ordem (como a felicidade) contrasta com o mal de primeira ordem (como a miséria): estes dois opõem-se de uma forma bastante mecânica; alguns bens de segunda ordem (como a benevolência) tentam maximizar o bem de primeira ordem e minimizar o mal de primeira ordem; mas a bondade de Deus não é isto, é antes a vontade de maximizar o bem de segunda ordem. Podemos, portanto, chamar à bondade de Deus um exemplo de um bem de terceira ordem, ou bem 3. Ainda que este quadro de considerações seja diferente do nosso quadro original, pode muito bem ser defendido como um melhoramento do mesmo, para dar uma descrição muito mais precisa do modo como o bem se opõe ao mal, e sendo consistente com a posição teísta essencial. (pp. 31-32)
Aqui, Mackie está, claramente, a cumprir aquilo que se propõe fazer logo no início do seu artigo, isto é, não procura apenas demonstrar as inconsistências entre as principais crenças do teísmo quanto aos atributos de Deus, como também, em alguns casos, procura oferecer uma explicação que ele mesmo constrói de modo a que haja alguma consistência entre as mesmas crenças dos teístas.
Mackie refere que, ao admitir e adoptar este quadro de considerações, os teístas terão que reconhecer que Deus não é propriamente benevolente, dado que não procura minimizar o mal de primeira ordem; procura apenas promover o bem de segunda ordem, o que, uma vez mais, contraria a concepção teísta generalizada de Deus como perfeitamente bom.
Mas Mackie acaba por voltar a refutar este argumento para a solução do problema do mal, incluindo aquele quadro de considerações que ele mesmo construiu:
A nossa análise mostra claramente a possibilidade da existência de um mal de segunda ordem, um mal 2 que contrasta com o bem 2, tal como o mal 1 contrasta com o bem 1. Isto incluiria a malevolência, a crueldade, a insensibilidade, a cobardia, e declara que, naquilo em que o bem 1 está a decrescer, o mal 1 está a aumentar. E do mesmo modo que o bem 2 é tido como o género importante de bem, o género que Deus está interessado em promover, então o mal 2 será, por analogia, o género importante de mal, o género que Deus, se fosse sumamente bom e omnipotente, eliminaria. E, ainda assim, o mal 2 existe plenamente, e é um facto que a maior parte dos teístas (noutros contextos) evidenciam a sua existência mais do que a do mal 1. Devemos, portanto, declarar o problema do mal nos termos de mal de segunda ordem, e, contra esta forma do problema, a presente solução é inútil. (p. 32)
Mackie conclui, assim, que não é a existência do mal físico (como a dor e a doença) no universo que contrasta com o bem moral, mas sim o próprio mal moral. Por outras palavras, como Mackie referiu, não é o mal de primeira ordem que contrasta com o bem de segunda ordem, mas é o mal de segunda ordem que contrasta com esse. E é neste mal de segunda ordem, o mal moral, que o problema do mal se põe. Assim, a afirmação de que "o universo é melhor com algum mal em si do que se fosse se não houvesse mal" deixa de fazer sentido, pois refere-se ao mal de primeira ordem, procurando justificá-lo, quando o problema, ao invés deste, assenta no mal moral ou de segunda ordem.
Depois de ter exposto a falácia do argumento da necessidade lógica da existência simultânea do bem e do mal como correlativos, Mackie expõe a falácia do argumento que apresenta a necessidade do mal como meio para o bem.
O filósofo começa por dizer que um tal argumento dificilmente poderá responder ao problema do mal, uma vez que "implica obviamente uma severa restrição do poder de Deus." (p. 30) Quando alguém afirma que um certo elemento é um meio para atingir um certo fim está a afirmar que essa é uma acção causal, ou seja, não é uma acção livre, estando, portanto, determinada. Se Deus tem de introduzir o elemento mal como um meio para atingir o fim que é o bem, então isso quer dizer que Deus está submetido às leis da causalidade, não sendo absolutamente livre porque está sujeito à determinação, o que colide frontalmente com o seu predicado de omnipotente, habitualmente afirmado pela maior parte dos teístas. Do mesmo modo, esta perspectiva não só implica que Deus está limitado pelas leis causais, como também que, ao estar limitado por elas, não pode ter sido ele a criá-las, o que, uma vez mais, não é a posição generalizada dos teístas.
Assim, como conclui Mackie, se o teísta quiser apresentar este argumento como solução para o problema do mal, terá de negar uma das duas seguintes proposições: ou que "Deus é omnipotente", ou que "«omnipotente» significa aquilo que exprime" (p. 30), ou seja, o poder de fazer tudo.
O universo é melhor com algum mal em si do que se fosse se não houvesse mal
Mackie entende este argumento como a defesa do mal como mal físico, ou seja, males como a dor e a doença, que despertam o bem moral, como a empatia ou compaixão, a benevolência ou o heroísmo. Deste modo, "o universo é melhor com algum mal em si do que se fosse se não houvesse mal" porque este mal que o universo contém desperta, alegadamente, o bem, que não se manifestaria de forma tão forte se não houvesse mal no universo. Mackie estabelece um quadro de base para tentar clarificar e compreender em que consiste este argumento:
Vejamos exactamente o que está a ser feito aqui. Vamos chamar à dor e à miséria "mal de primeira ordem" ou "mal 1". O que contrasta com este, nomeadamente o prazer e a felicidade, será chamado de "bem de primeira ordem" ou "bem 1". Distinto deste é o "bem de segunda ordem" ou "bem 2", que, de algum modo, emerge numa situação complexa em que o mal 1 é uma componente necessária — logicamente, não apenas causalmente, mas necessariamente. (Exactamente como ele emerge não importa: na solução mais imediata desta solução, o bem 2 é simplesmente a elevação da felicidade em contraste com a miséria, noutras versões inclui a empatia com o sofrimento, o heroísmo em face do perigo, e o decréscimo gradual do mal de primeira ordem e o aumento do bem de primeira ordem.) Também se pressupõe que o bem de segunda ordem é mais importante do que o mal ou o bem de primeira ordem, em particular que excede o mal de primeira ordem que envolve. (p. 31)
Mackie reconhece a subtileza desta solução para o problema do mal, pois que procura sustentar a bondade e a omnipotência de Deus com a justificação de que este é o melhor de todos os mundos logicamente possíveis, uma vez que permite a existência de bens de segunda ordem (os mais importantes), ao mesmo tempo que permite a existência de males, designadamente males de primeira ordem. De facto, segundo esta explicação, seriam estes males de primeira ordem que fariam com que houvesse os bens mais importantes — os bens de segunda ordem.
Em resposta, Mackie afirma que esta explicação deixa de opor o bem ao mal — antes os torna interdependentes —, o que implica que, ao contrário do que tinha estabelecido no princípio da sua análise, uma coisa boa deixa de tender para a eliminação do mal. Ora, nenhum teísta quererá nem poderá defender isto seriamente, pois, ainda que use este argumento, descobrirá que é inconsistente com a perfeita bondade (e mesmo com a omnipotência) de Deus. Mackie explica que, com esta solução, o quadro se modifica substancialmente:
O bem de primeira ordem (como a felicidade) contrasta com o mal de primeira ordem (como a miséria): estes dois opõem-se de uma forma bastante mecânica; alguns bens de segunda ordem (como a benevolência) tentam maximizar o bem de primeira ordem e minimizar o mal de primeira ordem; mas a bondade de Deus não é isto, é antes a vontade de maximizar o bem de segunda ordem. Podemos, portanto, chamar à bondade de Deus um exemplo de um bem de terceira ordem, ou bem 3. Ainda que este quadro de considerações seja diferente do nosso quadro original, pode muito bem ser defendido como um melhoramento do mesmo, para dar uma descrição muito mais precisa do modo como o bem se opõe ao mal, e sendo consistente com a posição teísta essencial. (pp. 31-32)
Aqui, Mackie está, claramente, a cumprir aquilo que se propõe fazer logo no início do seu artigo, isto é, não procura apenas demonstrar as inconsistências entre as principais crenças do teísmo quanto aos atributos de Deus, como também, em alguns casos, procura oferecer uma explicação que ele mesmo constrói de modo a que haja alguma consistência entre as mesmas crenças dos teístas.
Mackie refere que, ao admitir e adoptar este quadro de considerações, os teístas terão que reconhecer que Deus não é propriamente benevolente, dado que não procura minimizar o mal de primeira ordem; procura apenas promover o bem de segunda ordem, o que, uma vez mais, contraria a concepção teísta generalizada de Deus como perfeitamente bom.
Mas Mackie acaba por voltar a refutar este argumento para a solução do problema do mal, incluindo aquele quadro de considerações que ele mesmo construiu:
A nossa análise mostra claramente a possibilidade da existência de um mal de segunda ordem, um mal 2 que contrasta com o bem 2, tal como o mal 1 contrasta com o bem 1. Isto incluiria a malevolência, a crueldade, a insensibilidade, a cobardia, e declara que, naquilo em que o bem 1 está a decrescer, o mal 1 está a aumentar. E do mesmo modo que o bem 2 é tido como o género importante de bem, o género que Deus está interessado em promover, então o mal 2 será, por analogia, o género importante de mal, o género que Deus, se fosse sumamente bom e omnipotente, eliminaria. E, ainda assim, o mal 2 existe plenamente, e é um facto que a maior parte dos teístas (noutros contextos) evidenciam a sua existência mais do que a do mal 1. Devemos, portanto, declarar o problema do mal nos termos de mal de segunda ordem, e, contra esta forma do problema, a presente solução é inútil. (p. 32)
Mackie conclui, assim, que não é a existência do mal físico (como a dor e a doença) no universo que contrasta com o bem moral, mas sim o próprio mal moral. Por outras palavras, como Mackie referiu, não é o mal de primeira ordem que contrasta com o bem de segunda ordem, mas é o mal de segunda ordem que contrasta com esse. E é neste mal de segunda ordem, o mal moral, que o problema do mal se põe. Assim, a afirmação de que "o universo é melhor com algum mal em si do que se fosse se não houvesse mal" deixa de fazer sentido, pois refere-se ao mal de primeira ordem, procurando justificá-lo, quando o problema, ao invés deste, assenta no mal moral ou de segunda ordem.
Miguel Moutinho
Retirado de http://www.criticanarede.com/
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