Parte V
A perspectiva ateísta de Mackie sobre o problema do mal
Em "Evil and Omnipotence" (trad.: "O Mal e a Omnipotência"), um artigo já considerado clássico, John L. Mackie demonstra a inconsistência que existe entre algumas das crenças dos teístas, nomeadamente a inconsistência que se verifica entre a proposição "Deus é perfeitamente bom" e a proposição "Deus é omnipotente", duas crenças que fazem parte da concepção geral de Deus.
De facto, Mackie tem o cuidado de advertir, no seu artigo, que o mesmo se dirige apenas a quem defende que Deus é, simultaneamente, omnipotente e sumamente bom, sendo que o problema do mal tratado por Mackie apenas deve ser considerado para quem defende esta concepção de Deus. Mackie ressalva também que o problema do mal, ao revelar uma inconsistência entre crenças próprias de uma mesma concepção, não é um problema científico (que possa ser solucionado ou compreendido pela ciência) nem prático (que dependa de qualquer decisão ou acção), sendo, isso sim, um problema lógico. E é nesta esfera que Mackie analisa o problema do mal e as suas implicações:
Na sua forma mais simples, o problema é o seguinte: Deus é omnipotente; Deus é sumamente bom; e, ainda assim, o mal existe. Parece haver alguma contradição entre estas três proposições, de tal modo que, se duas quaisquer delas fossem verdadeiras, a terceira seria falsa. (p. 25)
Como se vê, a argumentação de Mackie começa por ser sobre o problema lógico do problema do mal. E, a propósito desta contradição, Mackie continua:
Contudo, a contradição não surge imediatamente; para a mostrar, precisamos de premissas adicionais, ou talvez de algumas regras quase-lógicas que relacionem os termos "bem", "mal", e "omnipotente". Estes princípios adicionais são: que o bem se opõe ao mal, de modo que uma coisa boa elimina sempre o mal tanto quanto pode, e que não há limites para aquilo que uma coisa omnipotente pode fazer. Daqui segue-se que uma coisa boa e omnipotente elimina o mal completamente, e, então, as proposições de que uma coisa boa e omnipotente existe, e de que o mal existe, são incompatíveis. (p. 26)
Esta passagem assume a maior importância, uma vez que é aqui que Mackie afirma a importância de, ao tratar e pensar o problema do mal, considerar sempre os termos "bem", "mal" e "omnipotente" de uma forma inter-relacionada, para ser possível compreender os argumentos, quer dos teístas, quer dos ateístas.
Depois de expor o problema com toda a clareza, Mackie centra a sua atenção nas soluções falaciosas normalmente apresentadas para o problema com o objectivo de manter todas as proposições que o constituem. É assim que se propõe analisar algumas destas soluções, analisando pormenorizadamente as falácias nelas presentes, ou mesmo considerando ligeiras alterações nas proposições para permitir que estas soluções sejam válidas e possam, mesmo com estas alterações, corresponder ao teísmo normal. É esta análise de Mackie que estudo e que passo a expor e analisar.
"O bem não pode existir sem o mal" ou "O mal é necessário como correlativo do bem"
Mackie começa por identificar uma implicação que põe sérios problemas à omnipotência de Deus; quando se diz que "o bem não pode existir sem o mal", é o mesmo que afirmar que Deus não pode criar apenas o bem, tendo de criar o mal também, o que significa que Deus não pode fazer tudo, ou que está de algum modo determinado; logo, não é omnipotente. Embora afirme serem uma excepção, Mackie admite também que há teístas que, quando se referem à omnipotência de Deus, fazem-no deixando subentendida a ideia de uma omnipotência não como o poder de fazer tudo, mas como o poder de fazer tudo o que é logicamente possível fazer, como Swinburne defende.
Assim, os teístas que defendem que Deus é pura e simplesmente omnipotente não podem apresentar a proposição "o bem não pode existir sem o mal" para solucionar o problema do mal, uma vez que esta traduz uma impossibilidade para Deus, negando a sua omnipotência. Por outro lado, os teístas que defendem que Deus só pode fazer aquilo que é logicamente possível fazer não podem afirmar que a lógica é criada por Deus, pois, segundo este argumento, a lógica constitui um limite para a omnipotência de Deus.
A par deste problema quanto à omnipotência de Deus, Mackie afirma ainda sobre esta solução:
Mas, em segundo lugar, esta solução nega que o mal se opõe ao bem no nosso sentido original. Se o bem e o mal são correlativos, uma coisa boa não "elimina o mal tanto quanto possível". De facto, esta perspectiva sugere que o bem e o mal não são de todo estritamente qualidades das coisas. Talvez a sugestão seja de que o bem e o mal estão relacionados em grande medida da mesma maneira que grande e pequeno. Sem dúvida que quando o termo "grande" é usado relativamente como uma condensação de "maior do que isto-e-aquilo", e "pequeno" é usado correspondentemente, grandeza e pequenez são correlativos e não podem existir uma sem a outra. Mas, neste sentido, a grandeza não é uma qualidade, não é uma característica intrínseca de nada; e seria absurdo pensar num movimento a favor da grandeza e contra a pequenez neste sentido. (p. 29)
Supondo, com alguma segurança, que nenhum teísta quereria comparar este tipo de "grandeza" (como categoria de comparação quanto à dimensão) com a grandeza de Deus (como categoria de classificação), Mackie afirma que uma coisa, no sentido em que ele se lhe refere, pode ser "grande" ou "pequena" sem que um termo seja o correlativo do outro, fazendo com que não fosse logicamente impossível que tudo fosse pequeno ou grande. Do mesmo modo, os termos "bem" e "mal" não têm que ser correlativos um do outro, pelo que o bem pode existir independentemente do mal, ao contrário do que esta falsa solução pretende afirmar. Uma vez que o mal não é apenas "a privação do bem" (p. 29), então o mal não é o correlativo lógico do bem. Logo, o bem pode existir sem o mal e vice-versa.
Mackie põe ainda a hipótese de ser apresentado o argumento de que "o mal existe, mas apenas o mal suficiente para servir de correlativo para o bem" (p. 29), mas afasta-a logo de seguida, por não acreditar que um teísta argumentasse desta forma, pois que, se o mal existisse apenas em quantidade suficiente para se constituir como correlativo do bem, então bastaria que houvesse uma pequena e breve quantidade de mal. Ora, nenhum teísta dirá que o mal existente se resume a "uma pequena e breve quantidade".
Em "Evil and Omnipotence" (trad.: "O Mal e a Omnipotência"), um artigo já considerado clássico, John L. Mackie demonstra a inconsistência que existe entre algumas das crenças dos teístas, nomeadamente a inconsistência que se verifica entre a proposição "Deus é perfeitamente bom" e a proposição "Deus é omnipotente", duas crenças que fazem parte da concepção geral de Deus.
De facto, Mackie tem o cuidado de advertir, no seu artigo, que o mesmo se dirige apenas a quem defende que Deus é, simultaneamente, omnipotente e sumamente bom, sendo que o problema do mal tratado por Mackie apenas deve ser considerado para quem defende esta concepção de Deus. Mackie ressalva também que o problema do mal, ao revelar uma inconsistência entre crenças próprias de uma mesma concepção, não é um problema científico (que possa ser solucionado ou compreendido pela ciência) nem prático (que dependa de qualquer decisão ou acção), sendo, isso sim, um problema lógico. E é nesta esfera que Mackie analisa o problema do mal e as suas implicações:
Na sua forma mais simples, o problema é o seguinte: Deus é omnipotente; Deus é sumamente bom; e, ainda assim, o mal existe. Parece haver alguma contradição entre estas três proposições, de tal modo que, se duas quaisquer delas fossem verdadeiras, a terceira seria falsa. (p. 25)
Como se vê, a argumentação de Mackie começa por ser sobre o problema lógico do problema do mal. E, a propósito desta contradição, Mackie continua:
Contudo, a contradição não surge imediatamente; para a mostrar, precisamos de premissas adicionais, ou talvez de algumas regras quase-lógicas que relacionem os termos "bem", "mal", e "omnipotente". Estes princípios adicionais são: que o bem se opõe ao mal, de modo que uma coisa boa elimina sempre o mal tanto quanto pode, e que não há limites para aquilo que uma coisa omnipotente pode fazer. Daqui segue-se que uma coisa boa e omnipotente elimina o mal completamente, e, então, as proposições de que uma coisa boa e omnipotente existe, e de que o mal existe, são incompatíveis. (p. 26)
Esta passagem assume a maior importância, uma vez que é aqui que Mackie afirma a importância de, ao tratar e pensar o problema do mal, considerar sempre os termos "bem", "mal" e "omnipotente" de uma forma inter-relacionada, para ser possível compreender os argumentos, quer dos teístas, quer dos ateístas.
Depois de expor o problema com toda a clareza, Mackie centra a sua atenção nas soluções falaciosas normalmente apresentadas para o problema com o objectivo de manter todas as proposições que o constituem. É assim que se propõe analisar algumas destas soluções, analisando pormenorizadamente as falácias nelas presentes, ou mesmo considerando ligeiras alterações nas proposições para permitir que estas soluções sejam válidas e possam, mesmo com estas alterações, corresponder ao teísmo normal. É esta análise de Mackie que estudo e que passo a expor e analisar.
"O bem não pode existir sem o mal" ou "O mal é necessário como correlativo do bem"
Mackie começa por identificar uma implicação que põe sérios problemas à omnipotência de Deus; quando se diz que "o bem não pode existir sem o mal", é o mesmo que afirmar que Deus não pode criar apenas o bem, tendo de criar o mal também, o que significa que Deus não pode fazer tudo, ou que está de algum modo determinado; logo, não é omnipotente. Embora afirme serem uma excepção, Mackie admite também que há teístas que, quando se referem à omnipotência de Deus, fazem-no deixando subentendida a ideia de uma omnipotência não como o poder de fazer tudo, mas como o poder de fazer tudo o que é logicamente possível fazer, como Swinburne defende.
Assim, os teístas que defendem que Deus é pura e simplesmente omnipotente não podem apresentar a proposição "o bem não pode existir sem o mal" para solucionar o problema do mal, uma vez que esta traduz uma impossibilidade para Deus, negando a sua omnipotência. Por outro lado, os teístas que defendem que Deus só pode fazer aquilo que é logicamente possível fazer não podem afirmar que a lógica é criada por Deus, pois, segundo este argumento, a lógica constitui um limite para a omnipotência de Deus.
A par deste problema quanto à omnipotência de Deus, Mackie afirma ainda sobre esta solução:
Mas, em segundo lugar, esta solução nega que o mal se opõe ao bem no nosso sentido original. Se o bem e o mal são correlativos, uma coisa boa não "elimina o mal tanto quanto possível". De facto, esta perspectiva sugere que o bem e o mal não são de todo estritamente qualidades das coisas. Talvez a sugestão seja de que o bem e o mal estão relacionados em grande medida da mesma maneira que grande e pequeno. Sem dúvida que quando o termo "grande" é usado relativamente como uma condensação de "maior do que isto-e-aquilo", e "pequeno" é usado correspondentemente, grandeza e pequenez são correlativos e não podem existir uma sem a outra. Mas, neste sentido, a grandeza não é uma qualidade, não é uma característica intrínseca de nada; e seria absurdo pensar num movimento a favor da grandeza e contra a pequenez neste sentido. (p. 29)
Supondo, com alguma segurança, que nenhum teísta quereria comparar este tipo de "grandeza" (como categoria de comparação quanto à dimensão) com a grandeza de Deus (como categoria de classificação), Mackie afirma que uma coisa, no sentido em que ele se lhe refere, pode ser "grande" ou "pequena" sem que um termo seja o correlativo do outro, fazendo com que não fosse logicamente impossível que tudo fosse pequeno ou grande. Do mesmo modo, os termos "bem" e "mal" não têm que ser correlativos um do outro, pelo que o bem pode existir independentemente do mal, ao contrário do que esta falsa solução pretende afirmar. Uma vez que o mal não é apenas "a privação do bem" (p. 29), então o mal não é o correlativo lógico do bem. Logo, o bem pode existir sem o mal e vice-versa.
Mackie põe ainda a hipótese de ser apresentado o argumento de que "o mal existe, mas apenas o mal suficiente para servir de correlativo para o bem" (p. 29), mas afasta-a logo de seguida, por não acreditar que um teísta argumentasse desta forma, pois que, se o mal existisse apenas em quantidade suficiente para se constituir como correlativo do bem, então bastaria que houvesse uma pequena e breve quantidade de mal. Ora, nenhum teísta dirá que o mal existente se resume a "uma pequena e breve quantidade".
Miguel Moutinho
Retirado de http://www.criticanarede.com/
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