Parte VII
O mal deve-se ao livre-arbítrio humano
Esta é a última solução falaciosa que Mackie analisa, e que responde a um dos mais habituais argumentos utilizados pelos teístas, como se pode ver em Swinburne.
Mackie começa por fazer uma descrição deste argumento. Nesta solução, a liberdade ou livre-arbítrio é visto como um bem de terceira ordem e como um bem mais valioso do que os bens de segunda ordem, como a coragem ou a compaixão. Deste modo, torna-se logicamente necessário que os males de segunda ordem, como a crueldade, acompanhem a liberdade, pois podem resultar dela. O filósofo deixa, desde logo, uma oposição a esta explicação, que tem a ver com a noção de "livre arbítrio", mas não é essa que vai discutir nesta análise, embora lhe faça referência.
Veja-se de que modo Mackie começa a tratar este argumento:
Primeiro, devo questionar o pressuposto de que os males de segunda ordem são acompanhantes logicamente necessários da liberdade. Devo perguntar isto: se Deus fez os homens de tal modo que, nas suas escolhas livres, eles por vezes preferem o que é bom e por vezes preferem o que é mau, por que não poderia ele ter feito os homens de tal modo que eles escolhessem sempre livremente o bem? Se não há nenhuma impossibilidade lógica de um homem escolher livremente o bem numa ou em várias ocasiões, não pode haver uma impossibilidade lógica em ele escolher livremente o bem em todas as ocasiões. Deus não esteve, então, perante a escolha entre fazer autómatos inocentes e fazer seres que, ao agir livremente, escolheriam o mal por vezes: esteve aberta para ele a possibilidade obviamente melhor de fazer seres que agiriam sempre livremente mas seguiriam sempre o bem. Claramente, a falha dele em beneficiar-se a si mesmo com esta possibilidade é inconsistente com ele ser omnipotente e sumamente bom. (p. 33)
Mackie argumenta, pois, que, se Deus fosse omnipotente (pudesse fazer tudo) e fosse sumamente bom, teria podido criar os humanos como seres livres, garantindo, ao mesmo tempo, que todas as suas escolhas livres seriam boas. Esta seria a decisão de um ser que pode tudo, ilimitadamente, e que é, ao mesmo tempo, sumamente bom. Se Deus não o fez, então não pode ser omnipotente e sumamente bom.
O filósofo antecipa a objecção que defende que o mal é uma necessidade lógica da liberdade, respondendo de imediato que a liberdade não é apenas a indeterminação e a casualidade, fazendo o bem e o mal completamente aleatórios ou quase indiferentes nas suas características. Mackie afirma que só assim não se poderia imputar a responsabilidade pelo mal a Deus. Mas rejeita esta possibilidade, objectando que "se a liberdade é o acaso, como pode ela ser a característica da vontade? E, mais ainda, como pode ela ser o mais importante bem? Que valor ou mérito haveria em escolhas livres se estas fossem acções de acaso que não fossem determinadas pelo agente? (p. 34)
Ao pôr estas questões, Mackie refere-se ao problema do livre-arbítrio, como tinha dito no princípio desta análise, enquadrando-o na esfera da metafísica e da ética, áreas de estudo em que o filósofo é especializado. Mas verdade é que estas questões não podem deixar de ser colocadas no âmbito da filosofia da religião, sobretudo quando se analisa o problema do mal e a tentativa de o justificar com o livre arbítrio. Com efeito, ao apelar ao livre arbítrio, os teístas, provavelmente sem quererem, estão a sugerir que o livre arbítrio não é mais do que a ausência de qualquer orientação do agente, seja ela a determinação natural, seja ela a determinação moral. Ora, se o agente livre é absolutamente indeterminado e se, assim, tanto pode fazer o bem como o mal, ao acaso, como é possível afirmar a importância da liberdade? Sê-lo-á, de facto? E como é que se pode afirmar esta liberdade como uma qualidade moral do agente?
Por outro lado, e como se vê em Swinburne, quando o teísta afirma que os seres humanos são livres e não estão sujeitos à determinação, nem mesmo de Deus — procurando, assim, desresponsabilizar Deus pelo mal —, ao afirmar que Deus não controla e não pode controlar os seres humanos, o teísta estará, uma vez mais, a negar implicitamente a omnipotência de Deus. A única hipótese que resta para esta explicação fazer algum sentido é afirmar que Deus fez os homens tão livres que deixou de os poder controlar. Isto implica que Deus não é, afinal, omnipotente. Mas Mackie também pergunta: "Mas por que razão, podemos perguntar, deveria Deus de se abster de controlar más vontades? Por que não deveria ele deixar os homens agir correctamente, mas intervir quando os vê a começar a agir erradamente?" (p. 34) A única explicação que Mackie vê para estas perguntas é que Deus é omnipotente e sumamente bom, mas considera a liberdade um bem muito maior do que qualquer outro e pelo qual vale a pena sacrificar tudo, incluindo permitir os piores males concebíveis; a verdade, porém, é que os teístas, se quiserem dar esta resposta, estarão a ser inconsistentes com uma série de crenças que eles mesmos defendem.
Mackie trata ainda do "paradoxo da omnipotência", que se evidencia com a ideia de que um deus omnipotente cria seres que não pode controlar, ou que um deus omnipotente cria regras (como na lógica) às quais fica limitado. Poderá ser assim? Não será isto a negação da omnipotência? É que o paradoxo é de tal modo forte, que, se se disser que Deus não pode criar seres que não pode controlar (ou que Deus não pode criar regras às quais não pode fugir), estará a dizer-se que Deus não pode algo, logo, que Deus não é omnipotente. Por outro lado, se se disser que Deus pode criar seres que não pode controlar (ou que Deus pode criar regras às quais não pode fugir), estará também a dizer-se que Deus não pode algo, ou seja, que Deus não é omnipotente.
Como a seguir procura explicar, procurando responder a este paradoxo, Mackie volta a salientar que, para Deus conservar a sua omnipotência, não poderia criar seres que pudessem escolher livremente o que fazer, dado que, depois, não poderia controlá-los. Inversamente, para Deus criar seres livres e afirmar a sua omnipotência como ser que tudo pode, não poderia, depois, controlá-los, deixando de ser omnipotente. O problema da omnipotência é acabar por mostrar que é uma ideia auto-refutante.
E é deste modo que Mackie conclui o seu artigo.
Conclusão
Procurei apresentar duas das posições mais credíveis que hoje conhecemos sobre o problema do mal: a de Swinburne, como um teísta prudente, que procura dar a maior consistência possível à sua argumentação, e a de Mackie, como um filósofo que, sem tomar uma posição propriamente dita, acaba por mostrar que os teístas se defrontam com grandes inconsistências, e que, para manterem as suas posições, terão que rever seriamente o modo como concebem Deus.
Espero que este trabalho seja elucidativo e que seja um instrumento de reflexão para que cada um possa chegar às suas próprias conclusões.
Miguel Moutinho
Esta é a última solução falaciosa que Mackie analisa, e que responde a um dos mais habituais argumentos utilizados pelos teístas, como se pode ver em Swinburne.
Mackie começa por fazer uma descrição deste argumento. Nesta solução, a liberdade ou livre-arbítrio é visto como um bem de terceira ordem e como um bem mais valioso do que os bens de segunda ordem, como a coragem ou a compaixão. Deste modo, torna-se logicamente necessário que os males de segunda ordem, como a crueldade, acompanhem a liberdade, pois podem resultar dela. O filósofo deixa, desde logo, uma oposição a esta explicação, que tem a ver com a noção de "livre arbítrio", mas não é essa que vai discutir nesta análise, embora lhe faça referência.
Veja-se de que modo Mackie começa a tratar este argumento:
Primeiro, devo questionar o pressuposto de que os males de segunda ordem são acompanhantes logicamente necessários da liberdade. Devo perguntar isto: se Deus fez os homens de tal modo que, nas suas escolhas livres, eles por vezes preferem o que é bom e por vezes preferem o que é mau, por que não poderia ele ter feito os homens de tal modo que eles escolhessem sempre livremente o bem? Se não há nenhuma impossibilidade lógica de um homem escolher livremente o bem numa ou em várias ocasiões, não pode haver uma impossibilidade lógica em ele escolher livremente o bem em todas as ocasiões. Deus não esteve, então, perante a escolha entre fazer autómatos inocentes e fazer seres que, ao agir livremente, escolheriam o mal por vezes: esteve aberta para ele a possibilidade obviamente melhor de fazer seres que agiriam sempre livremente mas seguiriam sempre o bem. Claramente, a falha dele em beneficiar-se a si mesmo com esta possibilidade é inconsistente com ele ser omnipotente e sumamente bom. (p. 33)
Mackie argumenta, pois, que, se Deus fosse omnipotente (pudesse fazer tudo) e fosse sumamente bom, teria podido criar os humanos como seres livres, garantindo, ao mesmo tempo, que todas as suas escolhas livres seriam boas. Esta seria a decisão de um ser que pode tudo, ilimitadamente, e que é, ao mesmo tempo, sumamente bom. Se Deus não o fez, então não pode ser omnipotente e sumamente bom.
O filósofo antecipa a objecção que defende que o mal é uma necessidade lógica da liberdade, respondendo de imediato que a liberdade não é apenas a indeterminação e a casualidade, fazendo o bem e o mal completamente aleatórios ou quase indiferentes nas suas características. Mackie afirma que só assim não se poderia imputar a responsabilidade pelo mal a Deus. Mas rejeita esta possibilidade, objectando que "se a liberdade é o acaso, como pode ela ser a característica da vontade? E, mais ainda, como pode ela ser o mais importante bem? Que valor ou mérito haveria em escolhas livres se estas fossem acções de acaso que não fossem determinadas pelo agente? (p. 34)
Ao pôr estas questões, Mackie refere-se ao problema do livre-arbítrio, como tinha dito no princípio desta análise, enquadrando-o na esfera da metafísica e da ética, áreas de estudo em que o filósofo é especializado. Mas verdade é que estas questões não podem deixar de ser colocadas no âmbito da filosofia da religião, sobretudo quando se analisa o problema do mal e a tentativa de o justificar com o livre arbítrio. Com efeito, ao apelar ao livre arbítrio, os teístas, provavelmente sem quererem, estão a sugerir que o livre arbítrio não é mais do que a ausência de qualquer orientação do agente, seja ela a determinação natural, seja ela a determinação moral. Ora, se o agente livre é absolutamente indeterminado e se, assim, tanto pode fazer o bem como o mal, ao acaso, como é possível afirmar a importância da liberdade? Sê-lo-á, de facto? E como é que se pode afirmar esta liberdade como uma qualidade moral do agente?
Por outro lado, e como se vê em Swinburne, quando o teísta afirma que os seres humanos são livres e não estão sujeitos à determinação, nem mesmo de Deus — procurando, assim, desresponsabilizar Deus pelo mal —, ao afirmar que Deus não controla e não pode controlar os seres humanos, o teísta estará, uma vez mais, a negar implicitamente a omnipotência de Deus. A única hipótese que resta para esta explicação fazer algum sentido é afirmar que Deus fez os homens tão livres que deixou de os poder controlar. Isto implica que Deus não é, afinal, omnipotente. Mas Mackie também pergunta: "Mas por que razão, podemos perguntar, deveria Deus de se abster de controlar más vontades? Por que não deveria ele deixar os homens agir correctamente, mas intervir quando os vê a começar a agir erradamente?" (p. 34) A única explicação que Mackie vê para estas perguntas é que Deus é omnipotente e sumamente bom, mas considera a liberdade um bem muito maior do que qualquer outro e pelo qual vale a pena sacrificar tudo, incluindo permitir os piores males concebíveis; a verdade, porém, é que os teístas, se quiserem dar esta resposta, estarão a ser inconsistentes com uma série de crenças que eles mesmos defendem.
Mackie trata ainda do "paradoxo da omnipotência", que se evidencia com a ideia de que um deus omnipotente cria seres que não pode controlar, ou que um deus omnipotente cria regras (como na lógica) às quais fica limitado. Poderá ser assim? Não será isto a negação da omnipotência? É que o paradoxo é de tal modo forte, que, se se disser que Deus não pode criar seres que não pode controlar (ou que Deus não pode criar regras às quais não pode fugir), estará a dizer-se que Deus não pode algo, logo, que Deus não é omnipotente. Por outro lado, se se disser que Deus pode criar seres que não pode controlar (ou que Deus pode criar regras às quais não pode fugir), estará também a dizer-se que Deus não pode algo, ou seja, que Deus não é omnipotente.
Como a seguir procura explicar, procurando responder a este paradoxo, Mackie volta a salientar que, para Deus conservar a sua omnipotência, não poderia criar seres que pudessem escolher livremente o que fazer, dado que, depois, não poderia controlá-los. Inversamente, para Deus criar seres livres e afirmar a sua omnipotência como ser que tudo pode, não poderia, depois, controlá-los, deixando de ser omnipotente. O problema da omnipotência é acabar por mostrar que é uma ideia auto-refutante.
E é deste modo que Mackie conclui o seu artigo.
Conclusão
Procurei apresentar duas das posições mais credíveis que hoje conhecemos sobre o problema do mal: a de Swinburne, como um teísta prudente, que procura dar a maior consistência possível à sua argumentação, e a de Mackie, como um filósofo que, sem tomar uma posição propriamente dita, acaba por mostrar que os teístas se defrontam com grandes inconsistências, e que, para manterem as suas posições, terão que rever seriamente o modo como concebem Deus.
Espero que este trabalho seja elucidativo e que seja um instrumento de reflexão para que cada um possa chegar às suas próprias conclusões.
Miguel Moutinho
Retirado de http://www.criticanarede.com/
Sem comentários:
Enviar um comentário