Parte IV
A razão pela qual deus permite o mal
É o próprio Swinburne que identifica a questão central do problema do mal, logo no início do capítulo em que procura responder-lhe:
O mundo contém, pois, muito mal. Um deus omnipotente poderia ter evitado este mal — e sem dúvida que um deus sumamente bom e omnipotente o teria feito. Mas então, por que razão existe este mal? Não será a sua existência um forte indício contra a existência de Deus? Sê-lo-ia, sem dúvida — a menos que possamos construir o que é conhecido por teodiceia, uma explicação da razão pela qual Deus terá permitido que o mal ocorresse. (p. 109)
Swinburne reconhece o problema e a sua força, mas nem por isso deixa de defender que não há incompatibilidade entre a existência do mal no mundo e a existência de Deus, apresentando a sua explicação numa teodiceia, como ele mesmo refere. Ao propor-se fazê-lo, o filósofo adverte os leitores de que não é insensível ao sofrimento e que a sua intenção não é diminuir a importância do sofrimento a bem da sua explicação. Segundo diz, a sua preocupação principal é explicar de que modo a existência de Deus é compatível com a presença do mal no mundo, fazendo-o através de argumentos rigorosos, pelo que ninguém em sofrimento deverá procurar conforto na leitura da sua explicação.
"Que coisas boas daria um deus generoso e eterno a seres humanos no decurso de uma curta vida terrena?" (p. 110) — para Swinburne, esta é a pergunta fundamental que permite compreender este capítulo, pois Deus não pode dar aos humanos vários bens, como "a responsabilidade por nós mesmos, pelos outros e pelo mundo" (p. 111) sem ter de permitir, ao mesmo tempo, a existência do mal. Isto, porque, para Swinburne, para que os humanos possam usufruir da liberdade (ou livre arbítrio) como um bem que Deus lhes deu, têm que poder vivê-la plenamente, o que, segundo o filósofo, põe obstáculos à intervenção de Deus; por outras palavras, e como já foi anteriormente referido quanto aos limites da possibilidade lógica da omnisciência, quando Deus decidiu criar os humanos como seres livres, fê-lo sabendo que não determinaria as suas acções e que não poderia saber que decisões poderiam vir a tomar em cada momento.
Ao começar a tratar o problema do mal, Swinburne estabelece uma distinção entre 1) mal moral, como "todo o mal causado deliberadamente pelos seres humanos ao fazerem o que não deviam (ou que os seres humanos permitem que aconteça por negligenciarem o que deviam fazer) e também o mal constituído por essas acções deliberadas e faltas negligentes" (p. 111), e entre 2) mal natural, como "todo o mal que não for deliberadamente produzido por seres humanos e que estes não permitam que aconteça por negligência" (p. 111).
Sendo o mal natural todos aqueles males que acontecem por força das leis da natureza, não é propriamente o mal natural com que os ateístas mais se preocupam, embora também questionem a existência de um deus supostamente perfeito que crie males como o sofrimento ou a morte. Mas é o acto intencional e deliberado de causar o mal, ou seja, o mal moral, que merece a maior atenção, quer dos teístas, quer dos ateístas. Swinburne diz que os humanos, ao sofrerem os males naturais, apercebem-se de que modo podem eles mesmos manipular os acontecimentos de tal modo que possam causar mal a outrem. E é a partir daqui que se dá o mal moral.
O livre arbítrio é o argumento principal que Swinburne, e os teístas em geral, usam para defender a teodiceia. Classificando o livre arbítrio como "escolha livre e responsável" (p. 112), Swinburne afirma que a existência deste bem tem como implicação a possível existência do mal moral. Assim, Deus, ao dar aos humanos a possibilidade de escolherem livre e responsavelmente, torna possível a existência do mal moral e, segundo o filósofo, deixa de o poder controlar:
Não é logicamente possível — isto é, seria autocontraditório supor — que Deus possa dar-nos esse livre arbítrio e que, no entanto, garanta que o usamos sempre bem. (p. 112)
De facto, tem de se reconhecer a força deste argumento. Todavia, poder-se-á objectar que Deus, ao dar o livre arbítrio aos humanos, abdicando de determinar as suas acções e dando-lhes a possibilidade de escolha livre e responsável, criou condições para que o mal moral acontecesse, com todas as situações de sofrimento e de injustiça que isto compreende. Não será de questionar a perfeita bondade e a suma justiça de um Deus que abre as portas ao mal? Ainda que o livre arbítrio possa ser considerado um bem em si, a verdade é que, quando alguém escolhe livremente prejudicar outro (e quando este outro é inocente), só o livre arbítrio do agressor influencia a acção, uma vez que o ofendido sofre o mal sem ser consultado e sem se poder valer da sua própria escolha livre. Será isto justo?
Outra objecção que se pode levantar é a seguinte: se Deus é perfeitamente bom e sumamente justo, então por que razão não criou os humanos como seres igualmente perfeitos e justos? Ou então, porque não os deixou iguais a todos os outros animais, longe do bem e do mal? Se é verdade que Deus é o responsável pelo livre arbítrio dos seres humanos, poder-se-á dizer que a decisão que Deus tomou quanto à atribuição desta faculdade aos humanos foi uma decisão perfeitamente boa e justa? Como diz Swinburne, Deus conhece as verdades morais e portanto sabe o que é absolutamente bom; então como pôde tomar uma decisão que compreendia o sério risco de permitir a existência do mal no mundo? Para os ateístas, esta é uma objecção importantíssima, sendo a sua crítica dirigida não ao livre arbítrio (que também consideram um bem), mas à atribuição da qualidade da perfeita bondade a Deus, cuja existência negam (pelo menos, com este e outros predicados).
Mas Swinburne continua a sua explicação. Para este filósofo, a possibilidade que os humanos têm de fazer escolhas livres e responsáveis coloca-se, justamente, na opção entre o bem e o mal. O bem do livre arbítrio evidencia-se quando se vê que os humanos, ainda que possam provocar males terríveis, são também capazes de actos admiráveis e verdadeiramente louváveis. Esta possibilidade de escolha livre e responsável tem a responsabilidade como peça fundamental, na medida em que depende de um sujeito beneficiar ou prejudicar outro ou outros, assim como Deus tem essa liberdade e possibilidade, como Swinburne afirma.
É preciso dizer que Swinburne diz que o livre arbítrio terá sido atribuído por Deus aos humanos para que também eles "partilhem a sua obra criativa" (p. 113). Para Swinburne, se o mundo fosse povoado apenas por seres que só poderiam praticar o bem entre si, sem poderem praticar qualquer mal, seria um mundo com responsabilidades muito limitadas. Com isto, o filósofo quer dizer que o bem que Deus deu aos humanos quando os criou livres foi tanto maior quanto maior e mais ilimitada for a sua liberdade e, por consequência, a sua responsabilidade. A possibilidade da ocorrência do mal moral faz com que todas as escolhas livres sejam extremamente importantes e que a responsabilidade dos humanos pese muito. Se os humanos apenas pudessem praticar acções boas, essas acções seriam menos importantes, pois a escolha não teria sido difícil nem propriamente livre.
O ateísta não discutirá, em boa verdade, que a liberdade é um bem, contestará apenas que dela podem resultar muitos males, e que não é próprio de um ser omnisciente, sumamente sapiente, conhecedor das verdades morais e perfeitamente bom permitir que haja qualquer possibilidade do mal se instalar, ou, pelo menos, não impedir a propagação do mal, a partir do momento em que começa a manifestar-se. Com efeito, espera-se de um deus perfeitamente bom e omnipotente, que, mesmo depois de, num acto de boa vontade, ter dado a liberdade de escolha aos humanos, constate que essa liberdade não é bem usada, que acarreta muitos males, tirando como conclusão dessa constatação a urgência de impedir o mal, mesmo se for preciso restringir ou eliminar a liberdade dos humanos, uma vez que é desta que o mal decorre. Ora, se o mal continua a existir, um tal deus não existe, ou, pelo menos, um tal deus com os referidos atributos não existe.
É verdade que, como Swinburne diz, "a possibilidade de os seres humanos originarem muito mal é uma consequência lógica do facto de terem esta escolha livre e responsável" (p. 114). Os ateístas não discutem isto nem defendem qualquer espécie de determinismo; antes negam a existência de Deus ou a existência de Deus com os predicados da perfeita bondade e da infinita justiça como consequência lógica da existência do mal. Quando Swinburne afirma que "nem mesmo Deus poderia dar-nos esta escolha sem a possibilidade do mal resultante" (pp. 114-115) também não está enganado — pura e simplesmente, como teísta que é, terá de estar preparado para oferecer uma resposta séria que seja absolutamente satisfatória e convincente à seguinte pergunta: terá sido essa decisão perfeitamente boa? Ou: seria essa a decisão de um ser perfeitamente bom? A experiência prova que não, e é daqui que se segue a negação pura e simples da existência de Deus, ou a negação da existência de Deus como ser perfeitamente bom, infinitamente justo, omnipotente e omnisciente, em simultâneo.
É o próprio Swinburne que identifica a questão central do problema do mal, logo no início do capítulo em que procura responder-lhe:
O mundo contém, pois, muito mal. Um deus omnipotente poderia ter evitado este mal — e sem dúvida que um deus sumamente bom e omnipotente o teria feito. Mas então, por que razão existe este mal? Não será a sua existência um forte indício contra a existência de Deus? Sê-lo-ia, sem dúvida — a menos que possamos construir o que é conhecido por teodiceia, uma explicação da razão pela qual Deus terá permitido que o mal ocorresse. (p. 109)
Swinburne reconhece o problema e a sua força, mas nem por isso deixa de defender que não há incompatibilidade entre a existência do mal no mundo e a existência de Deus, apresentando a sua explicação numa teodiceia, como ele mesmo refere. Ao propor-se fazê-lo, o filósofo adverte os leitores de que não é insensível ao sofrimento e que a sua intenção não é diminuir a importância do sofrimento a bem da sua explicação. Segundo diz, a sua preocupação principal é explicar de que modo a existência de Deus é compatível com a presença do mal no mundo, fazendo-o através de argumentos rigorosos, pelo que ninguém em sofrimento deverá procurar conforto na leitura da sua explicação.
"Que coisas boas daria um deus generoso e eterno a seres humanos no decurso de uma curta vida terrena?" (p. 110) — para Swinburne, esta é a pergunta fundamental que permite compreender este capítulo, pois Deus não pode dar aos humanos vários bens, como "a responsabilidade por nós mesmos, pelos outros e pelo mundo" (p. 111) sem ter de permitir, ao mesmo tempo, a existência do mal. Isto, porque, para Swinburne, para que os humanos possam usufruir da liberdade (ou livre arbítrio) como um bem que Deus lhes deu, têm que poder vivê-la plenamente, o que, segundo o filósofo, põe obstáculos à intervenção de Deus; por outras palavras, e como já foi anteriormente referido quanto aos limites da possibilidade lógica da omnisciência, quando Deus decidiu criar os humanos como seres livres, fê-lo sabendo que não determinaria as suas acções e que não poderia saber que decisões poderiam vir a tomar em cada momento.
Ao começar a tratar o problema do mal, Swinburne estabelece uma distinção entre 1) mal moral, como "todo o mal causado deliberadamente pelos seres humanos ao fazerem o que não deviam (ou que os seres humanos permitem que aconteça por negligenciarem o que deviam fazer) e também o mal constituído por essas acções deliberadas e faltas negligentes" (p. 111), e entre 2) mal natural, como "todo o mal que não for deliberadamente produzido por seres humanos e que estes não permitam que aconteça por negligência" (p. 111).
Sendo o mal natural todos aqueles males que acontecem por força das leis da natureza, não é propriamente o mal natural com que os ateístas mais se preocupam, embora também questionem a existência de um deus supostamente perfeito que crie males como o sofrimento ou a morte. Mas é o acto intencional e deliberado de causar o mal, ou seja, o mal moral, que merece a maior atenção, quer dos teístas, quer dos ateístas. Swinburne diz que os humanos, ao sofrerem os males naturais, apercebem-se de que modo podem eles mesmos manipular os acontecimentos de tal modo que possam causar mal a outrem. E é a partir daqui que se dá o mal moral.
O livre arbítrio é o argumento principal que Swinburne, e os teístas em geral, usam para defender a teodiceia. Classificando o livre arbítrio como "escolha livre e responsável" (p. 112), Swinburne afirma que a existência deste bem tem como implicação a possível existência do mal moral. Assim, Deus, ao dar aos humanos a possibilidade de escolherem livre e responsavelmente, torna possível a existência do mal moral e, segundo o filósofo, deixa de o poder controlar:
Não é logicamente possível — isto é, seria autocontraditório supor — que Deus possa dar-nos esse livre arbítrio e que, no entanto, garanta que o usamos sempre bem. (p. 112)
De facto, tem de se reconhecer a força deste argumento. Todavia, poder-se-á objectar que Deus, ao dar o livre arbítrio aos humanos, abdicando de determinar as suas acções e dando-lhes a possibilidade de escolha livre e responsável, criou condições para que o mal moral acontecesse, com todas as situações de sofrimento e de injustiça que isto compreende. Não será de questionar a perfeita bondade e a suma justiça de um Deus que abre as portas ao mal? Ainda que o livre arbítrio possa ser considerado um bem em si, a verdade é que, quando alguém escolhe livremente prejudicar outro (e quando este outro é inocente), só o livre arbítrio do agressor influencia a acção, uma vez que o ofendido sofre o mal sem ser consultado e sem se poder valer da sua própria escolha livre. Será isto justo?
Outra objecção que se pode levantar é a seguinte: se Deus é perfeitamente bom e sumamente justo, então por que razão não criou os humanos como seres igualmente perfeitos e justos? Ou então, porque não os deixou iguais a todos os outros animais, longe do bem e do mal? Se é verdade que Deus é o responsável pelo livre arbítrio dos seres humanos, poder-se-á dizer que a decisão que Deus tomou quanto à atribuição desta faculdade aos humanos foi uma decisão perfeitamente boa e justa? Como diz Swinburne, Deus conhece as verdades morais e portanto sabe o que é absolutamente bom; então como pôde tomar uma decisão que compreendia o sério risco de permitir a existência do mal no mundo? Para os ateístas, esta é uma objecção importantíssima, sendo a sua crítica dirigida não ao livre arbítrio (que também consideram um bem), mas à atribuição da qualidade da perfeita bondade a Deus, cuja existência negam (pelo menos, com este e outros predicados).
Mas Swinburne continua a sua explicação. Para este filósofo, a possibilidade que os humanos têm de fazer escolhas livres e responsáveis coloca-se, justamente, na opção entre o bem e o mal. O bem do livre arbítrio evidencia-se quando se vê que os humanos, ainda que possam provocar males terríveis, são também capazes de actos admiráveis e verdadeiramente louváveis. Esta possibilidade de escolha livre e responsável tem a responsabilidade como peça fundamental, na medida em que depende de um sujeito beneficiar ou prejudicar outro ou outros, assim como Deus tem essa liberdade e possibilidade, como Swinburne afirma.
É preciso dizer que Swinburne diz que o livre arbítrio terá sido atribuído por Deus aos humanos para que também eles "partilhem a sua obra criativa" (p. 113). Para Swinburne, se o mundo fosse povoado apenas por seres que só poderiam praticar o bem entre si, sem poderem praticar qualquer mal, seria um mundo com responsabilidades muito limitadas. Com isto, o filósofo quer dizer que o bem que Deus deu aos humanos quando os criou livres foi tanto maior quanto maior e mais ilimitada for a sua liberdade e, por consequência, a sua responsabilidade. A possibilidade da ocorrência do mal moral faz com que todas as escolhas livres sejam extremamente importantes e que a responsabilidade dos humanos pese muito. Se os humanos apenas pudessem praticar acções boas, essas acções seriam menos importantes, pois a escolha não teria sido difícil nem propriamente livre.
O ateísta não discutirá, em boa verdade, que a liberdade é um bem, contestará apenas que dela podem resultar muitos males, e que não é próprio de um ser omnisciente, sumamente sapiente, conhecedor das verdades morais e perfeitamente bom permitir que haja qualquer possibilidade do mal se instalar, ou, pelo menos, não impedir a propagação do mal, a partir do momento em que começa a manifestar-se. Com efeito, espera-se de um deus perfeitamente bom e omnipotente, que, mesmo depois de, num acto de boa vontade, ter dado a liberdade de escolha aos humanos, constate que essa liberdade não é bem usada, que acarreta muitos males, tirando como conclusão dessa constatação a urgência de impedir o mal, mesmo se for preciso restringir ou eliminar a liberdade dos humanos, uma vez que é desta que o mal decorre. Ora, se o mal continua a existir, um tal deus não existe, ou, pelo menos, um tal deus com os referidos atributos não existe.
É verdade que, como Swinburne diz, "a possibilidade de os seres humanos originarem muito mal é uma consequência lógica do facto de terem esta escolha livre e responsável" (p. 114). Os ateístas não discutem isto nem defendem qualquer espécie de determinismo; antes negam a existência de Deus ou a existência de Deus com os predicados da perfeita bondade e da infinita justiça como consequência lógica da existência do mal. Quando Swinburne afirma que "nem mesmo Deus poderia dar-nos esta escolha sem a possibilidade do mal resultante" (pp. 114-115) também não está enganado — pura e simplesmente, como teísta que é, terá de estar preparado para oferecer uma resposta séria que seja absolutamente satisfatória e convincente à seguinte pergunta: terá sido essa decisão perfeitamente boa? Ou: seria essa a decisão de um ser perfeitamente bom? A experiência prova que não, e é daqui que se segue a negação pura e simples da existência de Deus, ou a negação da existência de Deus como ser perfeitamente bom, infinitamente justo, omnipotente e omnisciente, em simultâneo.
Miguel Moutinho
Retirado de http://www.criticanarede.com/
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