Parte V
Será que a coerção nos priva de livre-arbítrio?
É importante de ter em mente este contraste quando pensamos sobre outra questão importante para o problema do livre-arbítrio - a coerção. Considere um ladrão que o coage a dar-lhe o dinheiro dizendo (convincentemente) "O dinheiro ou a vida!" O ladrão roubou-lhe o dinheiro. Será que também lhe roubou o livre-arbítrio?
O ladrão coloca-o perante uma opção - poder ficar com o dinheiro e morrer ou entregar-lhe a carteira e viver. Uma opção de que o ladrão o privou é guardar o dinheiro e também a vida. Você não é livre de fazer isso. Mas será que o ladrão lhe roubou o seu livre-arbítrio?
Este é um problema difícil, mas deixe-me arriscar uma tentativa de resposta: em muitos casos (se não em todos), as acções resultantes de coacção não privam as suas vítimas de livre-arbítrio. Claro que podem roubar às suas vítimas muitas coisas de grande valor. E, é claro, é errado colocar as pessoas em situações nas quais têm as opções que o ladrão lhes oferece (e apenas essas). O importante, contudo, é que o cálculo da vítima de roubo - que é melhor entregar a carteira - é muito diferente da "decisão" do cleptomaníaco de roubar. A mente da vítima de roubo está a funcionar muitíssimo bem; as circunstâncias em que a vítima se encontra é que são objectáveis. Pelo contrário, algo de profundamente errado se passa com a mente do cleptomaníaco - e é esta incapacidade que o torna não livre.
Uma segunda proposta compatibilista: a relevância dos desejos de segunda ordem
Pretendo agora considerar uma segunda teoria compatibilista, destinada a enfrentar o problema colocado pelo comportamento compulsivo. Esta teoria foi defendida por Gerald Dworkin (em "Acting Freely", Nous, Vol. 4, 1970, pp. 367-383) e por Harry Frankfurt (em "Freedom of the Will and de Concept of Person", Journal of Philosophy, Vol. 68, 1971, pp. 5-20). A ideia é que as pessoas apanhadas na rede de uma compulsão não são livres porque agem com base em desejos que prefeririam não ter. Suponha que perguntava ao cleptomaníaco se ele preferia não ter o desejo invencível de roubar. O cleptomaníaco poderia responder-lhe tristemente que ficaria satisfeito por não ter esse peso sobre as suas costas.
A proposta que estamos a considerar requer que distingamos desejos de primeira ordem de desejos de segunda ordem. Um desejo de segunda ordem é um desejo sobre como deveriam ser os nossos desejos. "Gostaria de ser menos egoísta" é uma observação de segunda ordem. Diz-nos que eu gostaria de me preocupar mais com o bem-estar dos outros. "Gostava de comer um gelado" ou "Gostava que Jones fosse aumentado" são desejos de primeira ordem. Expressam desejos acerca do que deveria ser verdadeiro no mundo situado para lá da mente. A proposta é que as pessoas agem livremente quando os seus desejos de segunda ordem se relacionam de maneiras específicas com os seus desejos de primeira ordem. Praticar de livre vontade uma acção A consiste em fazer A porque desejamos D, sem nos importarmos de desejar D. Esta última cláusula significa que não temos o desejos de segunda ordem de retirar D da nossa lista de desejos de primeira ordem.
Embora esta proposta implique que muitas pessoas vítimas de compulsões não sejam livres, ainda é deficiente. Imagine um cleptomaníaco tão deformado pela sua compulsão que é incapaz de reconhecer que ela está a prejudicá-lo. Imagine que alguém que lava as mãos compulsivamente sofreu uma lavagem ao cérebro que o faz pensar que lavar as mãos é a melhor coisa do mundo. Estas pessoas podem não se importar por terem os desejos que têm. No entanto, isso não mostra que têm livre-arbítrio; apenas mostram que elas não se importam de não serem livres.
Esta teoria do livre-arbítrio, como a de Hume, falha em explicar por que razão algumas formas de comportamento compulsivo não são livres. Isto não significa que nenhuma teoria compatibilista funcione, mas apenas que as duas que examinei não são satisfatórias.
Elliott Sober
Retirado de http://www.criticanarede.com/
Será que a coerção nos priva de livre-arbítrio?
É importante de ter em mente este contraste quando pensamos sobre outra questão importante para o problema do livre-arbítrio - a coerção. Considere um ladrão que o coage a dar-lhe o dinheiro dizendo (convincentemente) "O dinheiro ou a vida!" O ladrão roubou-lhe o dinheiro. Será que também lhe roubou o livre-arbítrio?
O ladrão coloca-o perante uma opção - poder ficar com o dinheiro e morrer ou entregar-lhe a carteira e viver. Uma opção de que o ladrão o privou é guardar o dinheiro e também a vida. Você não é livre de fazer isso. Mas será que o ladrão lhe roubou o seu livre-arbítrio?
Este é um problema difícil, mas deixe-me arriscar uma tentativa de resposta: em muitos casos (se não em todos), as acções resultantes de coacção não privam as suas vítimas de livre-arbítrio. Claro que podem roubar às suas vítimas muitas coisas de grande valor. E, é claro, é errado colocar as pessoas em situações nas quais têm as opções que o ladrão lhes oferece (e apenas essas). O importante, contudo, é que o cálculo da vítima de roubo - que é melhor entregar a carteira - é muito diferente da "decisão" do cleptomaníaco de roubar. A mente da vítima de roubo está a funcionar muitíssimo bem; as circunstâncias em que a vítima se encontra é que são objectáveis. Pelo contrário, algo de profundamente errado se passa com a mente do cleptomaníaco - e é esta incapacidade que o torna não livre.
Uma segunda proposta compatibilista: a relevância dos desejos de segunda ordem
Pretendo agora considerar uma segunda teoria compatibilista, destinada a enfrentar o problema colocado pelo comportamento compulsivo. Esta teoria foi defendida por Gerald Dworkin (em "Acting Freely", Nous, Vol. 4, 1970, pp. 367-383) e por Harry Frankfurt (em "Freedom of the Will and de Concept of Person", Journal of Philosophy, Vol. 68, 1971, pp. 5-20). A ideia é que as pessoas apanhadas na rede de uma compulsão não são livres porque agem com base em desejos que prefeririam não ter. Suponha que perguntava ao cleptomaníaco se ele preferia não ter o desejo invencível de roubar. O cleptomaníaco poderia responder-lhe tristemente que ficaria satisfeito por não ter esse peso sobre as suas costas.
A proposta que estamos a considerar requer que distingamos desejos de primeira ordem de desejos de segunda ordem. Um desejo de segunda ordem é um desejo sobre como deveriam ser os nossos desejos. "Gostaria de ser menos egoísta" é uma observação de segunda ordem. Diz-nos que eu gostaria de me preocupar mais com o bem-estar dos outros. "Gostava de comer um gelado" ou "Gostava que Jones fosse aumentado" são desejos de primeira ordem. Expressam desejos acerca do que deveria ser verdadeiro no mundo situado para lá da mente. A proposta é que as pessoas agem livremente quando os seus desejos de segunda ordem se relacionam de maneiras específicas com os seus desejos de primeira ordem. Praticar de livre vontade uma acção A consiste em fazer A porque desejamos D, sem nos importarmos de desejar D. Esta última cláusula significa que não temos o desejos de segunda ordem de retirar D da nossa lista de desejos de primeira ordem.
Embora esta proposta implique que muitas pessoas vítimas de compulsões não sejam livres, ainda é deficiente. Imagine um cleptomaníaco tão deformado pela sua compulsão que é incapaz de reconhecer que ela está a prejudicá-lo. Imagine que alguém que lava as mãos compulsivamente sofreu uma lavagem ao cérebro que o faz pensar que lavar as mãos é a melhor coisa do mundo. Estas pessoas podem não se importar por terem os desejos que têm. No entanto, isso não mostra que têm livre-arbítrio; apenas mostram que elas não se importam de não serem livres.
Esta teoria do livre-arbítrio, como a de Hume, falha em explicar por que razão algumas formas de comportamento compulsivo não são livres. Isto não significa que nenhuma teoria compatibilista funcione, mas apenas que as duas que examinei não são satisfatórias.
Elliott Sober
Retirado de http://www.criticanarede.com/
Sem comentários:
Enviar um comentário