domingo, 5 de outubro de 2008

Livre-arbítrio, determinismo e responsabilidade moral v

Parte V
Dificuldades do determinismo moderado
O determinismo moderado enfrenta dois problemas fundamentais. Primeiro, como os próprios deterministas moderados costumam afirmar, o critério para determinar se as escolhas são livres ou compelidas precisa de ser refinado. Dissemos que, em termos gerais, as acções são livres quando os agentes fazem o que querem fazer e são compelidas quando é ao contrário; e que uma pessoa é responsável apenas pelas suas acções livres. Considera então os casos seguintes:
1. Uma dama imensamente rica da Avenida de Roma rouba um alfinete de gravata de diamantes na Ourivesaria Sarmento, da Rua do Ouro. O alfinete não tem qualquer utilidade para ela e mais tarde irá lamentar tê-lo roubado. Mas, na altura, qualquer que tenha sido a razão, não resistiu à tentação de roubá-lo ― o seu desejo de roubar foi mais forte do que o seu desejo de não o fazer ― pelo que escolheu fazê-lo. Ainda assim, é frequente dizer-se que uma tal pessoa é doente mental, uma cleptomaníaca que age compulsivamente, e, portanto, não é responsável pelas suas acções. Contudo, de acordo com o critério de compulsão aqui apresentado, a sua acção tem de ser considerada livre.
2. Um prisioneiro de guerra, depois de ter sido barbaramente torturado, entrega segredos ao inimigo. Ele quer revelar os segredos e escolhe fazê-lo (para evitar ser mais torturado). Geralmente julga-se que ele não deve ser castigado por tê-lo feito, porque quase toda a gente, mais cedo ou mais tarde, cede à tortura. Contudo, de acordo com o critério de liberdade que fornecemos, ele escolheu livremente revelar os segredos.
3. Uma pessoa internada num hospital para doentes mentais mata outra numa luta por causa de um parceiro sexual. Essa pessoa quer matar e escolhe matar e, no entanto, a maior parte de nós diria que, devido a ser louco, não é responsável.
4. Um marido que investiu bastante na sua mulher e no seu casamento apanha-a na cama com outro homem e mata-a num acesso de paixão. Na altura, ele quer matá-la e escolhe fazê-lo ― ninguém o força. No entanto, algumas pessoas diriam que ele não deveria ser castigado por este acto, uma vez que, nestas circunstâncias, não era livre para dominar a sua raiva.
5. Sob o efeito de sugestão pós-hipnótica, Silva mata a avó. Ele gosta dela e normalmente nem lhe passaria pela cabeça fazer-lhe mal. Apesar disso, na altura da decisão, ele quer matá-la. Deste modo, de acordo com o critério de liberdade dos deterministas moderados, o acto parece ser livre, embora a maior parte de nós dissesse que o Silva não era um verdadeiro agente livre.
6. Quando lhe deram grandes doses para o ajudar a suportar as dores causadas por ferimentos de guerra, Nunes adquiriu, sem quaisquer más intenções, o vício da morfina. Agora arruína a sua vida ao tentar satisfazer o hábito. Embora seja verdade que quer romper com o hábito, também é verdade que, quando cede e toma a droga, quer tomá-la (o seu desejo pela droga é mais forte do que o seu desejo de romper com o hábito) e escolhe tomá-la. A maior parte de nós diria que tomar a droga é uma acção compelida. Contudo, com base no critério aqui apresentado, parece ser livre.
A compulsão não é a única defesa
Como é óbvio, não podemos ter a certeza de que o determinismo moderado resolve o problema até sabermos como lidar com casos como os que acabámos de apresentar. Diferentes deterministas moderados tratam estes casos de forma diferente. Uma forma é chamar a atenção para que a liberdade de compulsão não é o único critério de responsabilidade moral. As crianças, por exemplo, são frequentemente desculpadas por escolherem livremente acções pelas quais os adultos são castigados. O mesmo se passa com doentes mentais. A questão é que tais pessoas de algum modo carecem de estatuto moral, talvez porque não se pode esperar que saibam a natureza moral dos seus actos (como a criança de três anos que puxa a irmã bebé para fora do berço) ou que saibam as consequências das suas acções (o louco que acidentalmente deita fogo a uma casa) ou tenham a vontade para agir com base nesse conhecimento (o doente esquizofrénico que não sai da cama).
Precisamos um critério de desejo verdadeiro
Outra forma de lidar com o problema é defender que às vezes o que queremos e escolhemos num dado momento ― digamos, no calor da paixão, como no Caso 4, acima ― não é o que realmente queremos fazer; pensa no arrependimento que se segue a termo-lo feito. Deste ponto de vista, a intensidade relativa dos nossos vários desejos ao longo de um grande período de tempo determina os nossos verdadeiros desejos num dado momento. Desta forma, as acções compelidas têm origem quando os nossos desejos mais fortes num dado momento conflituam com os nossos desejos mais fortes a longo prazo. Um exemplo disto é o desejo de tomar a droga que, num dado momento, um toxicómano tem mesmo que, em geral, o seu desejo mais forte seja o de perder o hábito.
Muitas pessoas ainda consideram o determinismo e a responsabilidade moral incompatíveis
O objectivo da investigação filosófica é ver como as coisas nos parecem depois de termos ouvido os argumentos, especialmente os da outra parte.
Depois de ouvir os argumentos a favor do determinismo moderado, os libertarianos, em particular, ainda acham errado considerar as pessoas responsáveis pelas suas acções se essas acções são causadas por leis naturais sobre as quais os seres humanos não têm qualquer domínio. Também não lhes serve de nenhum consolo ouvir que as pessoas escolhem fazer a maior parte do que fazem, ou que as suas acções resultam dos seus desejos ou motivos, se esses desejos, motivos e, deste modo, todas as escolhas, são determinadas por leis naturais. Considerar pessoas responsáveis em tais circunstâncias parece-lhes ser como considerar robots responsáveis pelas suas acções.
E talvez este seja o ponto principal. Há alguma razão para tratar os seres humanos de forma diferente das mesas, cadeiras, televisores ou computadores? Há alguma coisa nas relações humanas ou na nossa natureza social que constitua uma razão para olhar os seres humanos como responsáveis pelo que fazem, e os televisores e computadores não? Parece adequado censurar os amigos quando nos decepcionam, mas não um computador (limitamo-nos a mandar arranjá-lo). A forma como nos sentimos a propósito de pessoas é substancialmente diferente da forma como nos sentimos a propósito de máquinas inanimadas, e esse sentimento diferente é a justificação ― se há alguma ― para considerar as pessoas e não as máquinas responsáveis pelas suas acções (não-compelidas).Por que, então, continuam a existir discordâncias sobre este tema? Em parte, talvez, devido a uma falta de atenção aos argumentos dos outros lados da questão. Mas, em parte, devem-se também a diferenças a propósito de outras questões filosóficas que estão com ele relacionadas, talvez mesmo a diferenças acerca da natureza do próprio empreendimento filosófico. Por exemplo, alguém cujas convicções religiosas exigem que as pessoas sejam consideradas responsáveis por algumas das suas acções não pode consistentemente apoiar a posição do determinismo radical acerca da questão do livre-arbítrio. Embora não seja prático lidar com todas as questões relacionadas ao mesmo tempo, o que eventualmente dissermos a seu propósito ajuda a determinar que respostas à questão do livre-arbítrio versus determinismo podemos aceitar.

Howard Kahane
Retirado de http://www.filedu.com/

Sem comentários: