sábado, 26 de novembro de 2016

Valores

Os valores orientam a nossa vida, influenciam o nosso pensar e proceder, acabam por determinar se as nossas ações são boas ou não, corretas ou incorretas. Usualmente ouvimos dizer que as pessoas não têm valores, a sociedade já não vive de acordo com os valores, ou que o mundo já não é o que era. Difunde-se a ideia de uma sociedade em crise, de uma crise de valores. Na antiguidade clássica havia uma preocupação muito grande pela virtude[1] (verdade, bem, ordem, finalidade), sendo esta uma característica fundamental do labor filosófico.
Agimos de determinada forma de acordo com as nossas crenças, de acordo com os nossos desejos, ou agimos de acordo com as nossas preferências, de acordo com aquilo que valorizamos ser mais ou menos importante em determinada circunstância ou para o futuro? Afinal, o que é agir de acordo com valores? Qual o seu fundamento do valor?
Na sua relação com o mundo, a experiência humana é valorativa, isto quer dizer que atribuímos valor a determinadas coisas e, ao mesmo tempo, reconhecemos pessoas, objetos, situações e acontecimentos como tendo valor, ou seja, como sendo valiosas.
Analisemos os seguintes casos. Primeiro caso: se determinada pessoa ou instituição faz alguma coisa de bem, facilmente identificamos essa ação como boa, de alguém que agiu de acordo com valores, como a justiça, a honestidade, a solidariedade. Por outro lado, se alguém agiu mal (sem considerar aqui o que é certo ou errado) já não dizemos que agiu de acordo com valores. Segundo caso: dizemos que a sociedade (entendida no seu sentido mais abrangente) já não tem valores, porquê? Porque não tem nem segue os mesmos que os nossos? Ou porque os nossos são mais importantes e por isso deveriam ser os preferíveis?
Desidério Murcho ao procurar responder à pergunta pelo fundamento do valor introduz-nos a noção de preferências[2], sendo que nestas está incluído o nosso raciocínio, o nosso “raciocínio prudencial, que diz respeito precisamente à capacidade de pensar cuidadosamente as nossas diversas preferências”[3]. Contudo, alerta-nos o autor ao afirmar que “as preferências não nos oferecem razões simples e automáticas para as [escolhas] satisfazeremos; exigem raciocínio cuidadoso”[4] para que não nos enganemos acerca das nossas preferências. Conclui o autor, “ter uma preferência é valorizar, e ambas são atividades humanas inevitáveis (…) Ao valorizar e preferir, podemos fazê-lo melhor ou pior, tendo mais ou menos consciência do que fazemos, e podemos certamente errar muitas vezes, valorizando e preferindo o que depois descobrimos serem ilusões. Mas não podemos evitar e valorizar e preferir, porque valorizar e preferir são constitutivas da ação e do pensamento”[5].
Esta noção de preferência, pela qual preferimos umas coisas em detrimento de outras, ajuda-nos a perceber o alcance do conceito de valor e do ato de valorizar. Ajuda-nos a compreender que o valor não é apenas tudo aquilo que pode ser desejado, apreciado e louvado. Contudo, o valor “impõe-se ao pensamento e à consideração de todos porque antes de ser uma preferência, ele é uma prevalência[6], ou seja, não é apenas algo que nos leva a preferir alguma coisa, é aquilo que no meio das possíveis escolhas preferenciais prevalece. Por esta linha de pensamento se começa a desenhar a difícil tarefa de definir o que são os valores, porque podemos sempre definir de acordo com uma ideia que eu tenho ou como sendo características presentes nas coisas[7]. A definição fica, assim, comprometida com a opção que tomamos.
Num sentido mais subjetivo diríamos que o valor é uma qualidade que torna os objetos ou atos valiosos dignos de serem apreciados e louvados, será aquilo que comunica importância e relevo axiológico, ou seja, o critério com que estimamos e apreciamos todas as coisas. Por outro lado, a prova da sua objetividade e o desejo da sua universalidade reside nos esforços que a sua realização exige, se os valores são preferidos de facto ou, pelo menos, de direito como um bem necessário e imprescindível à realização de cada um, de cada sociedade.
Significa que todos reconhecemos que o amor, a verdade, a justiça, a liberdade são valores superiores e mais respeitáveis em relação ao ódio, à violência, à opressão, à injustiça. Por aqui vemos que os valores apresentam uma bipolaridade, não os podemos apenas pensar do lado bom, do lado do positivo, mas com dois polos o positivo e o negativo: bem e mal; verdade e erro; belo e feio; correto e incorreto. Quer isto dizer que quando dizemos que uma pessoa agiu mal, que por fraqueza ou engano, propositada ou despropositadamente fez o mal, não queremos dizer que agiu sem valores, queremos dizer que não aprovamos esses valores. O mesmo acontece para a consideração de uma sociedade sem valores, de uma denominada crise de valores, o mesmo não significa que a sociedade não se rega por valores, mas que os mesmos possam não coincidir com os meus. Pois, “quem declara que não há valores, quer na verdade dizer que a maior parte das pessoas valorizam o que ele não valoriza e não valorizam o que ele valoriza”[8].
Esta bipolaridade permite-nos afirmar uma outra ideia, de que valorizar não é uma atitude neutra perante as coisas, valorizar é preferir, é apreciar determinadas ‘coisas’ em função de outras, é optar por um dos lados.
Se podemos, por um lado afirmar a bipolaridade dos valores, por outro, podemos aferir que existem valores muito diferentes dos nossos, sendo que a Filosofia dos Valores ou Axiologia os classifica fundamentalmente em três domínios: da ética (como devemos agir e relacionarmos com os outros); da estética (o domínio do belo e da arte) e da religião (a relação com o divino). No âmbito dos valores éticos destacam-se a generosidade, a liberdade e a justiça. No âmbito dos valores estéticos destacam-se a beleza, a harmonia, a elegância, a originalidade. No âmbito dos valores religiosos destacam-se a fé e o sagrado[9].
A par desta classificação podemos fazer uma outra distinção que nos ajude a perceber o alcance da problemática dos valores, é o que se refere à distinção entre valor intrínseco (algo que vale por si mesmo) e valor instrumental (algo que vale enquanto meio para alcançar um determinado fim que também tem valor). Desidério Murcho ao introduzir esta noção[10] através do exemplo do valor fundamental que é a vida, não a resolve, naturalmente porque a mesma tem outras implicações sobretudo no que se refere ao tema do multiculturalismo e da influência que a cultura exerce em determinados valores. Assunto que será posteriormente analisado.
Acerca desta problemática dos valores, impõe-se, ainda, uma outra distinção que nem sempre é óbvia ou sequer aceite indiscutivelmente pela comunidade filosófica: juízos de facto e juízos de valor[11]. Daniel Kolak e Raymond Martin dão-nos alguns exemplos simples pelos quais reconhecemos esta distinção: “em vez de dizer (ou pensar) que é bom ser-se sincero quando se fala com outras pessoas (um juízo de valor), poderia dizer que ser sincero promove normalmente a compreensão mútua e a confiança (juízo factual) ”[12]. Quando nos referimos a um juízo de facto não queremos dizer, por si só, que o juízo seja correto, apenas que é um juízo sobre factos, podendo por esta razão serem verdadeiros ou falsos. Por outro lado, o essencial para um juízo de valor é que este expresse uma atitude favorável ou desfavorável[13].
Ao contrário dos juízos de facto que nos fornecem informações acerca do mundo, os juízos de valor não se limitam a descrever as coisas, não se limitam apenas a dar informações, mas expressam avaliações que procuram determinar determinados comportamentos. Quer isto dizer, quando digo que alguém é honesto ou, pelo contrário, desonesto, estou a querer circunscrever determinado comportamento em detrimento de outro, sugere uma ‘espécie’ de atitude normativa-descritiva. Mas o que faz com que considere superior a honestidade em relação à desonestidade?
A resposta a esta distinção passará pela opção das perspetivas, do subjetivismo de que os valores não podem ser universalmente verdadeiros, ou do objetivismo, de que mesmo sendo universalmente verdadeiros, desconhecemos a verdade acerca deles. Assunto que será posteriormente abordado.
Centrando-nos ainda na distinção que há pouco fazíamos entre juízo de facto e juízo de valor, referindo que a mesma distinção não seria indiscutível pela comunidade filosófica, o Manual adotado[14] explora esta dificuldade pela questão da exclusividade, quer isto dizer que podem haver duas posições acerca da distinção entre juízos de facto e juízos de valor, a saber: nenhum juízo pode ser dos dois tipos; ou se todos os juízos são juízos de facto, sendo que os juízos de valor são uma parte constituinte destes. A opção do Manual passa pela aceitação da primeira posição alertando para existência de dois problemas: primeiro, a classificação de um juízo de facto é independente da consideração de saber ou vir a saber se esse juízo é verdadeiro ou falso ou se depende das intenções de quem o exprime; segundo, alguns juízos de facto exprimem preferências e valorações, quando estes juízos exprimem preferências emitidos pelo próprio autor do juízo. Neste segundo caso, quer dizer que alguns juízos de facto implicam certos juízos de valores que podem, igualmente, ser tomados como verdadeiros ou como falsos.

Júlio Maria

[1] Cf. Polis, Enciclopédia Verbo da Sociedade e do Estado, tomo 5, Ed, Verbo, 1987, p. 1464. [2] Cf. MURCHO, Desidério, Filosofia em Directo, Fundação Francismo Manuel dos Santos, Coleção Ensaios da Fundação, Ed. Relógio D’Água, Lisboa, 2011, p. 43. [3] Idem, Ibidem, p. 43. [4] Idem, Ibidem, p. 44. [5] Idem, Ibidem, p. 45. [6] Polis, Enciclopédia Verbo da Sociedade e do Estado, tomo 5, Ed, Verbo, 1987, p. 1469. [7] KOLAK, Daniel e MARTIN, Raymond, Sabedoria sem respostas, Uma breve introdução à Filosofia, Ed. Temas e Debates, Lisboa, 2004, pp. 150-151. [8] MURCHO, Desidério, Filosofia em Directo, p. 46. [9] Cf. António Padrão, Valor, juízos de valor e teorias, http://criticanarede.com/valor.html (consultado a 22 de novembro de 2016); Cf. Pedro Galvão, Valores e valoração: a questão dos critérios valorativos, http://criticanarede.com/valores.html (consultado a 22 de novembro de 2016) [10] MURCHO, Desidério, Filosofia em Directo, p. 48. [11] KOLAK, Daniel e MARTIN, Raymond, Sabedoria sem respostas, Uma breve introdução à Filosofia, pp. 146-158. [12] Idem, Ibidem, p. 146. [13] Cf. Idem, Ibidem, p. 146. [14] LOPES, António; GALVÃO, Pedro; MATEUS, Paula, Razões de Ser, Filosofia 10º ano, Ed. Porto Editora, Porto, 2016. Manual, pp. 80-83.

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