quarta-feira, 9 de novembro de 2016

A distinção entre manipulação e persuasão. Os dois usos da retórica.



O primeiro capítulo da obra de Nigel Warburton – Uma pequena história de filosofia–ao se referir a Sócrates fá-lo como ‘homem que perguntava’[1]. Sócrates era assim conhecido, como aquele que fazia perguntas, que perturbava, daí o facto de se considerar, como o regere Nigel, como um ‘moscardo’, aquele inseto que constantemente incomoda. Esta característica, de alguém que constantemente pergunta, acompanhou Sócrates. Contudo, a razão das suas perguntas tinha como objetivo desconstruir o os pensamentos que as pessoas tinham acerca das “suposições que serviam de base para a sua vida”[2]. Para Sócrates, a verdadeira sabedoria não se reduzia ao conhecimento de muitos factos ou saberes práticos, mas em entender a verdadeira natureza do nosso ser e os limites do nosso próprio saber[3]. É, precisamente nisto que consiste o princípio da douta ignorância, cuja retórica, ao contrário dos Sofistas, possui três características fundamentais: a ironia (‘fingimento necessário’; seria a atitude de acolher como certas as ideias dos outros, combatendo a ideia de certezas infalíveis), a maiêutica (poderíamos dizer que a maiêutica seria o anexo da ironia que além da desconstrução das certezas infalíveis visa a ajuda na descoberta da verdade) e o diálogo (que engloba a ironia e a maiêutica, é o lugar da atividade filosófica).
Tal foi a importância dada por Sócrates ao diálogo que não deixou nada escrito, sendo que aquilo que sabemos acerca das suas ideias chegou-nos através do seu discípulo, Platão. Razão pela qual nem sempre é fácil fazer a distinção, porque “não sabemos se estava a escrever o que realmente Sócrates disse ou se estava a colocar as suas próprias ideias na boda de um personagem que ele chamou de ‘Sócrates’”[4].
E se Sócrates não deixou nada escrito, do mesmo modo muito pouco há a dizer acerca dos Sofistas, ou melhor, muito pouco há a dizer acerca das suas teorias porque apenas se conhecem textos fragmentários dos mesmos. Há é muitos textos de filósofos que os refutaram e são esses textos que servem de base para a sua compreensão. Será justa esta distinção entre sofistas e filósofos, uma vez que apenas possuímos parte dos seus textos, cujas ideias poderiam jogar em sua defesa?
            Como nos refere GilberRomeyer-Dherbey o termo ‘sofista’ designa ‘sábio’, mas num sentido alterado ou deturpado do termo, significa possuidor de uma falsa sabedoria, de “um falso saber, não procurando senão enganar, e fazendo, para isso um considerável uso do paralogismo”[5], daí que o «sofisma» será sinónimo de um falso raciocínio.
            Gilber apresenta três características dos sofistas: primeiro, porque se tornaram os educadores da Grécia depois dos poetas e que dominavam muito bem a lógica e a argumentação e, por isso, não se trataria apenas de ordenar, mas de persuadir e explicar; segundo, porque se tornaram ‘prisioneiros do saber’, cuja preocupação não seria a transmissão do saber mas a formação política específica de determinados cidadãos; terceiro, tornaram-se ‘pensadores itinerantes’, daqui advém não só o facto da livre circulação do pensamento, mas, igualmente, a caraterística mercantilizante do mesmo[6].
            O que une e distingue, precisamente, Sócrates e os Sofistas é a retórica, ou melhor, o uso que que se faz da retórica. Pelas razões atrás referidas poderíamos classificar os Sofistas como um exemplo de um mau uso da retórica e, por outro lado, poderíamos classificar Sócrates como um exemplo de um bom uso da retórica.
            Esta distinção é reforçada por aquilo que Michel Meyer ao afirmar que “o sofista era uma espécie de advogado que podia fazer trocadilhos sobre os diversos sentidos das palavras e dos conceitos se isso servisse à sua tese, quer fosse justa ou não. Longe de assentar no carácter moral do orador, a sofística podia vender-se a todas as causas (…)”[7]. A contrastar com a sofística desenvolve-se a filosofia, enquanto procura da verdade pela discussão dos saberes, pelo debate e pelo diálogo.
            Mas, então, o que é que caracteriza com propriedade a retórica, do que é que ela se ocupa?
            Meyer afirma que, primeiramente, a retórica surgiu como uma “técnica de persuasão”[8], que quando alheia à ‘arte oratória e à eloquência pública’ desemboca “forçosamente na manipulação, na ideologia, na propaganda e na publicidade”. Plasmam-se aqui os dois usos da retórica: o que visa a persuasão e o que visa a manipulação. Estes dois usos da retórica são distinguidos por Meyer através daquilo que ele denomina de ‘retórica branca e retórica negra’[9], respetivamente a que visa manipular e a que torna público os procedimentos e mecanismos. Os dois usos da retórica podem assim ser distinguidos: por um lado, “aquele que é crítico e lúcido sobre os procedimentos de discurso, e [por outro] aquele que visa ofuscar o interlocutor, ou em todo o caso adormecê-lo”.
            Situada no discurso e no uso que se faz do mesmo, a retórica será mais do que uma ‘arte de bem falar, de mostrar eloquência diante de um público’, de mostrar ou de ocultar o questionamento, será antes um jogo de palavras ou uma troca de argumentos. Meyer afirma que a retórica é a “negociação da distância entre os homens a propósito de uma questão, de um problema”[10].
            A retórica, enquanto negociação da distância, revela-secomo poder, como arte, como eloquência suscetível de ser bem (persuasão) ou mal usada (manipulação). Em razão da sua definição e porque todo o ser humano tem necessidade de expor e exprimir as suas ideias, de ouvir e, por vezes, de se saber defender, o estudo da retórica revela-se fundamental na disciplina de Filosofia. Porque se algumas vezes consentimos a manipulação é “verdade que por vezes a ingenuidade é grande e que certas épocas, por assim dizer cultivadas e escolarizadas, engendram e reforçam mesmo a ausência do sentido crítico e do questionamento em geral”[11].


[1]WARBURTON, Nigel, Uma pequena história de filosofia, Ed. L&PM, 2012, p. 3. [2] Idem, Ibidem, p. 4. [3] Cf. Idem, Ibidem, p. 4. [4] Idem, Ibidem, p. 5. Razão pela qual nos conteúdos desta aula aparece figurada a perspetiva dos Sofistas, de Sócrates e de Platão, pela razão de ser difícil distinguir o pensamento de um e de outro. [5]ROMEYER-DHERBEY, Gilbert, Os Sofistas, Biblioteca Básica de Filosofia, Ed. 70, Lisboa, 1986, p. 9.[6] Cf. Idem, Ibidem, pp. 10-11.[7]MEYER, Michel, Questões de retórica: linguagem, razão e sedução, p. 18.[8] Idem, Ibidem, p. 20.[9] Cf. Idem, Ibidem, pp. 46-51.[10] Idem, Ibidem, p. 27.[11] Idem, Ibidem, p. 50

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