O primeiro capítulo da obra de
Nigel Warburton – Uma pequena história de
filosofia–ao se referir a Sócrates fá-lo como ‘homem que perguntava’[1].
Sócrates era assim conhecido, como aquele que fazia perguntas, que perturbava,
daí o facto de se considerar, como o regere Nigel, como um ‘moscardo’, aquele
inseto que constantemente incomoda. Esta característica, de alguém que
constantemente pergunta, acompanhou Sócrates. Contudo, a razão das suas
perguntas tinha como objetivo desconstruir o os pensamentos que as pessoas
tinham acerca das “suposições que serviam de base para a sua vida”[2]. Para
Sócrates, a verdadeira sabedoria não se reduzia ao conhecimento de muitos
factos ou saberes práticos, mas em entender a verdadeira natureza do nosso ser
e os limites do nosso próprio saber[3]. É,
precisamente nisto que consiste o princípio da douta ignorância, cuja retórica,
ao contrário dos Sofistas, possui três características fundamentais: a ironia (‘fingimento
necessário’; seria a atitude de acolher como certas as ideias dos outros,
combatendo a ideia de certezas infalíveis), a maiêutica (poderíamos dizer que a
maiêutica seria o anexo da ironia que além da desconstrução das certezas infalíveis
visa a ajuda na descoberta da verdade) e o diálogo (que engloba a ironia e a
maiêutica, é o lugar da atividade filosófica).
Tal foi a importância dada por
Sócrates ao diálogo que não deixou nada escrito, sendo que aquilo que sabemos
acerca das suas ideias chegou-nos através do seu discípulo, Platão. Razão pela
qual nem sempre é fácil fazer a distinção, porque “não sabemos se estava a
escrever o que realmente Sócrates disse ou se estava a colocar as suas próprias
ideias na boda de um personagem que ele chamou de ‘Sócrates’”[4].
E se Sócrates não deixou nada
escrito, do mesmo modo muito pouco há a dizer acerca dos Sofistas, ou melhor,
muito pouco há a dizer acerca das suas teorias porque apenas se conhecem textos
fragmentários dos mesmos. Há é muitos textos de filósofos que os refutaram e
são esses textos que servem de base para a sua compreensão. Será justa esta
distinção entre sofistas e filósofos, uma vez que apenas possuímos parte dos
seus textos, cujas ideias poderiam jogar em sua defesa?
Como
nos refere GilberRomeyer-Dherbey o termo ‘sofista’ designa ‘sábio’, mas num
sentido alterado ou deturpado do termo, significa possuidor de uma falsa
sabedoria, de “um falso saber, não procurando senão enganar, e fazendo, para
isso um considerável uso do paralogismo”[5], daí que
o «sofisma» será sinónimo de um falso raciocínio.
Gilber
apresenta três características dos sofistas: primeiro, porque se tornaram os
educadores da Grécia depois dos poetas e que dominavam muito bem a lógica e a
argumentação e, por isso, não se trataria apenas de ordenar, mas de persuadir e
explicar; segundo, porque se tornaram ‘prisioneiros do saber’, cuja preocupação
não seria a transmissão do saber mas a formação política específica de
determinados cidadãos; terceiro, tornaram-se ‘pensadores itinerantes’, daqui
advém não só o facto da livre circulação do pensamento, mas, igualmente, a
caraterística mercantilizante do mesmo[6].
O que
une e distingue, precisamente, Sócrates e os Sofistas é a retórica, ou melhor,
o uso que que se faz da retórica. Pelas razões atrás referidas poderíamos
classificar os Sofistas como um exemplo de um mau uso da retórica e, por outro
lado, poderíamos classificar Sócrates como um exemplo de um bom uso da retórica.
Esta
distinção é reforçada por aquilo que Michel Meyer ao afirmar que “o sofista era
uma espécie de advogado que podia fazer trocadilhos sobre os diversos sentidos
das palavras e dos conceitos se isso servisse à sua tese, quer fosse justa ou
não. Longe de assentar no carácter moral do orador, a sofística podia vender-se
a todas as causas (…)”[7]. A
contrastar com a sofística desenvolve-se a filosofia, enquanto procura da
verdade pela discussão dos saberes, pelo debate e pelo diálogo.
Mas,
então, o que é que caracteriza com propriedade a retórica, do que é que ela se
ocupa?
Meyer
afirma que, primeiramente, a retórica surgiu como uma “técnica de persuasão”[8], que
quando alheia à ‘arte oratória e à eloquência pública’ desemboca “forçosamente
na manipulação, na ideologia, na propaganda e na publicidade”. Plasmam-se aqui
os dois usos da retórica: o que visa a persuasão e o que visa a manipulação.
Estes dois usos da retórica são distinguidos por Meyer através daquilo que ele denomina
de ‘retórica branca e retórica negra’[9],
respetivamente a que visa manipular e a que torna público os procedimentos e
mecanismos. Os dois usos da retórica podem assim ser distinguidos: por um lado, “aquele que é crítico e
lúcido sobre os procedimentos de discurso, e [por outro] aquele que visa
ofuscar o interlocutor, ou em todo o caso adormecê-lo”.
Situada no discurso e no uso que se
faz do mesmo, a retórica será mais do que uma ‘arte de bem falar, de mostrar
eloquência diante de um público’, de mostrar ou de ocultar o questionamento,
será antes um jogo de palavras ou uma troca de argumentos. Meyer afirma que a
retórica é a “negociação da distância entre os homens a propósito de uma
questão, de um problema”[10].
A retórica, enquanto negociação da distância, revela-secomo
poder, como arte, como eloquência suscetível de ser bem (persuasão) ou mal
usada (manipulação). Em razão da sua definição e porque todo o ser humano tem
necessidade de expor e exprimir as suas ideias, de ouvir e, por vezes, de se
saber defender, o estudo da retórica revela-se fundamental na disciplina de
Filosofia. Porque se algumas vezes consentimos a manipulação é “verdade que por
vezes a ingenuidade é grande e que certas épocas, por assim dizer cultivadas e
escolarizadas, engendram e reforçam mesmo a ausência do sentido crítico e do
questionamento em geral”[11].
[1]WARBURTON,
Nigel, Uma pequena história de filosofia,
Ed. L&PM, 2012, p. 3. [2] Idem, Ibidem, p. 4. [3] Cf.
Idem, Ibidem, p. 4. [4]
Idem, Ibidem, p. 5. Razão pela qual
nos conteúdos desta aula aparece figurada a perspetiva dos Sofistas, de
Sócrates e de Platão, pela razão de ser difícil distinguir o pensamento de um e
de outro. [5]ROMEYER-DHERBEY, Gilbert, Os Sofistas, Biblioteca Básica de Filosofia, Ed. 70, Lisboa, 1986,
p. 9.[6]
Cf. Idem, Ibidem, pp. 10-11.[7]MEYER,
Michel, Questões de retórica: linguagem,
razão e sedução, p. 18.[8] Idem, Ibidem, p. 20.[9] Cf.
Idem, Ibidem, pp. 46-51.[10] Idem, Ibidem, p. 27.[11] Idem, Ibidem, p. 50
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