A moralidade requer que sejamos altruístas. Até que ponto devemos ser
altruístas? Talvez não tenhamos de ser heróicos, mas espera-se ainda assim, que
estejamos atentos às necessidades dos outros pelo menos até certo ponto.
E as pessoas ajudam-se, de facto, entre si, de formas mais ou menos
significativas. Fazem favores umas às outras. Constroem abrigos para os
deserdados. Fazem voluntariado em hospitais. Doam órgãos e oferecem sangue.
Mães sacrificam-se pelos filhos. Bombeiros arriscam a vida para salvar pessoas.
Freiras passam a sua vida a trabalhar entre os pobres. A lista poderia
continuar sem parar. Muitas pessoas oferecem dinheiro para apoiar causas nobres
quando podiam guardá-lo para si. Mas há filósofos que defendem que ninguém é
jamais verdadeiramente altruísta.
Para o egoísmo psicológico todas as acções humanas são motivadas pelo
egoísmo. Podemos acreditar que somos nobres e abnegados, mas isso é apenas uma
ilusão. Na verdade importamo-nos apenas connosco mesmos.
O comportamento “altruísta” está na realidade ligado a coisas como o
desejo de ter uma vida mais significativa, o desejo de reconhecimento público,
sentimentos de satisfação pessoal e a esperança de uma recompensa divina. Por
cada acto de aparente altruísmo podemos encontrar uma maneira de justificá-lo e
substituí-lo por uma explicação em termos de motivos mais egocêntricos.
Thomas Hobbes (1588-1679) pensava que o egoísmo psicológico estava
provavelmente correcto. O se método consistiu em catalogar os tipos gerais de
motivos, concentrando-se especialmente nos “altruístas”, e mostrando como todos
podiam ser compreendidos em ternos egoístas. Uma vez completado este projecto,
teria eliminado sistematicamente o altruísmo do nosso entendimento da natureza
humana.
1-
Caridade. É
definida como amor ao próximo. Mas, se esse amor ao próximo não existe, o
comportamento caritativo tem de ser entendido de uma forma radicalmente
diferente. A caridade é, assim, o prazer de cada um na demonstração dos seus
próprios poderes. Um homem caridoso está a provar a si mesmo, e ao mundo, que
possui mais recursos que os outros: não é só capaz de cuidar de si mesmo, tem
ainda o suficiente para ajudar quantos não têm a mesma capacidade que ele. Por
outras palavras, está apenas a exibir a sua superioridade.
Hobbes sabia, naturalmente, que um homem caridoso pode não pensar estar a
fazer isso. Mas nós não somos os melhores juízes das nossas próprias
motivações. É perfeitamente natural que interpretemos as nossas acções de um
modo lisonjeiro para nós, e é lisonjeiro pensar que somos “altruístas”.
2-
Piedade. O
que é ter piedade dos outros? Poderíamos pensar que é compadecermo-nos deles,
sentirmo-nos infelizes com os seus infortúnios. E, agindo em função deste
pesar, poderíamos tentar ajudá-los. Hobbes pensa que tudo isto está muito bem,
até onde pode estar, mas não vai suficientemente fundo. A razão pela qual nos
sentimos incomodados com os infortúnios dos outros é pensarmos que a mesma
coisa nos poderia acontecer a nós. A “piedade”, afirma “consiste em imaginar ou
fantasiar as nossas próprias calamidades futuras, partindo da consciência das
calamidades de outrem”.
Isto pode explicar, por exemplo, por que sentimos mais piedade quando uma
pessoa boa sofre do que quando sofre uma pessoa má. Na descrição de Hobbes, a
piedade requer um sentido de identificação com a pessoa que sofre – sinto
piedade de alguém quando me imagino no seu lugar. Mas uma vez que cada um de
nós pensa ser uma boa pessoa, não nos identificamos com os que pensamos serem
maus. Por conseguinte, não nos apiedamos dos malévolos da mesma forma que nos
apiedamos dos bons.
DOIS ARGUMENTOS A FAVOR DO EGOÍSMO
PSICOLÓGICO
Há dois argumentos gerais que foram adiantados com frequência em defesa
do egoísmo psicológico. São argumentos “gerais” na medida em que cada um tenta
estabelecer de um só golpe que todas as acções, e não apenas uma classe
limitada de acções, são motivadas pelo egoísmo.
O argumento de que fazemos sempre o que
mais desejamos fazer.
Se descrevemos as acções de uma pessoa como egoístas e as de outra como
não egoístas estamos a descurar o facto crucial de que em ambos os casos,
partindo do princípio de que a acção é realizada de forma voluntária, a pessoa
está apenas a fazer o que mais deseja fazer.
Este argumento tem algumas falhas. Primeiro, baseia-se na ideia de que as
pessoas nunca fazem voluntariamente senão o que desejam fazer. Mas isto é
redondamente falso. Por vezes fazemos coisas que não queremos fazer, portanto
são um meio necessário para um fim que queremos atingir, por exemplo, não
queremos ir ao dentista, mas vamos na mesma para evitar dores de dentes.
Mas há igualmente coisas que fazemos, não porque o desejamos, e nem mesmo
porque são meios para um fim que queremos atingir, mas porque sentimos que
devemos fazê-las. Por exemplo, alguém pode fazer uma coisa porque prometeu
fazê-la, e sente-se, por isso, obrigado, mesmo não desejando fazê-la.
O argumento de que fazemos o que nos faz
sentir bem.
O segundo argumento geral em defesa do egoísmo psicológico apela para o
facto de quase todas as acções ditas altruístas produzirem um sentido de
auto-satisfação nas pessoas que as realiza. Agir “altruisticamente” faz as
pessoas sentirem-se bem consigo mesmas, e isso é o seu verdadeiro objectivo.
Porque razão devemos pensar, apenas porque alguém obtém satisfação aos
outros, que isso faz dele um egoísta? Não é a pessoa altruísta precisamente a
que de facto tem satisfação no auxílio aos outros, enquanto o egoísta não tem?
Por que razão uma pessoa obtém satisfação ao auxiliar os outros? Porque
será que nos sentimos bem ao doar dinheiro para apoiar um abrigo para pessoas
sem lar, quando podíamos gastar esse dinheiro connosco mesmos? A resposta tem
de ser, pelo menos em parte, que somos o tipo de pessoa que se importa com o
que acontece aos outros. Se não nos importamos com isso, doar dinheiro parecerá
um desperdício e não uma fonte de satisfação. Vai fazer-nos sentir parvos e não
santos.
Esclarecer algumas confusões
As pessoas tendem a confundir egoísmo com interesse próprio. Quando
pensamos nisso, vemos que não são de modo algum a mesma coisa. Se vou ao médico
quando me sinto mal, estou a agir em função do meu interesse próprio, mas
ninguém pensaria em chamar-me “egoísta” por causa disso. De modo semelhante,
lavar os dentes, trabalhar afincadamente no meu emprego e obedecer à lei, são
tudo acções realizadas no meu interesse próprio, mas nenhum destes exemplos
ilustra uma conduta egoísta. O comportamento egoísta é o comportamento que
ignora os interesses dos outros em circunstâncias nas quais não deviam ser
ignorados. Assim, comer uma refeição normal em circunstâncias normais não é
egoísta; mas seríamos egoístas se acumulássemos comida quando outros passavam
fome.
Uma segunda confusão mistura o comportamento em função do interesse
próprio com a procura do prazer. Fazemos muitas coisas porque gostamos de as
fazer, mas isso não significa que estejamos a agir em função do interesse
próprio. Um homem que continua a fumar cigarros mesmo depois de ter
conhecimento da relação entre o fumo e o cancro não está certamente a agir
segundo o seu interesse próprio e não está também a agir de forma altruísta.
Uma terceira confusão consiste na suposição comum, mas falsa, de que a
preocupação pelo nosso próprio bem-estar é incompatível com uma genuína
preocupação pelos outros. Mas não há qualquer inconsistência em desejar que
todos, incluindo nós mesmos e os outros, sejam felizes.
RACHELS, James, Elementos de Filosofia Moral, 2004. Lisboa: Gradiva, pp.
98-109
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