É importante compreender
claramente o que é um argumento de autoridade por dois motivos. Por um lado,
porque se pensa por vezes que todos os argumentos de autoridade são falaciosos,
o que é falso. Os argumentos de autoridade são elementos centrais do pensamento
sem os quais o progresso do conhecimento seria impossível. Por outro lado, e
contrariando a primeira ideia, porque é infelizmente comum, no ensino da
filosofia, recorrer a argumentos de autoridade. Ora, dada a natureza desta
disciplina, os argumentos de autoridade em filosofia são quase sempre
falaciosos.
Um argumento de autoridade tem
a seguinte forma lógica:
n disse que P.
Logo P.
Sendo n Aristóteles e P a
frase “A Terra é plana” ficamos com o seguinte argumento: “Aristóteles disse
que a Terra é plena. Logo, a Terra é plana”.
Desde os tempos de Galileu que
os argumentos de autoridade são encarados como terrivelmente falaciosos,
argumentos inacreditavelmente maus que só pessoas de obscuras inclinações
religiosas ou filosóficas, que ainda não receberam a Iluminação da Ciência,
podem aceitar. Mas isto é falso.
Na verdade, os argumentos de
autoridade são imprescindíveis. Quantos de nós verificámos se os teoremas da
matemática que nos ensinaram são realmente verdadeiros? Quantos de nós
verificámos se as teorias da física que nos ensinaram são realmente verdadeiras?
Quantos de nós verificámos se a segunda guerra mundial aconteceu realmente? A
resposta a qualquer destas perguntas é “Muito poucos. E isto acontece porque o
conhecimento por testemunho é uma parte importantíssima do conhecimento. Um
professor de Biologia diz-nos que a teoria da evolução por selecção natural
está hoje estabelecida; e nós acreditamos. Se tivermos de verificar tudo o que
os nossos professores nos dizem para saber se é verdade, não conseguiremos
aprender quase nada.
Os argumentos de autoridade
são formas argumentativas que respondem precisamente a esta necessidade de nos
apoiarmos no que os especialistas reconhecidos nos dizem sobre os temas da sua
especialidade. Por isso, a primeira regra a que um argumento de autoridade tem
de obedecer para poder ser bom é esta:
Regra 1: O especialista invocado
(a autoridade) tem de ser um bom especialista da matéria em causa.
Esta é a regra violada no
seguinte argumento de autoridade:
Einstein disse que a maneira de acabar com a
guerra é ter um único governo mundial. Logo, a maneira de acabar com a guerra é
ter um único governo mundial.
Dado que Einstein era um
especialista em física, mas não em filosofia política, este argumento é
falacioso – porque viola a Regra 1. Todavia, imaginemos que alguém substituía
“Einstein” por “Marx” no argumento dado:
Marx disse que a maneira de acabar com a guerra
era ter um único governo mundial. Logo, a maneira de acabar com a guerra é ter
um único governo mundial.
É evidente que este argumento
é falacioso, apesar de Marx ser realmente um especialista reconhecido em filosofia
política. Neste caso, é falacioso porque viola outra regra:
Regra 2: Os especialistas da
matéria em causa (as autoridades) não podem discordar significativamente entre
si quanto à afirmação em causa.
Dado que os especialistas em filosofia
política discordam entre si quanto à afirmação em causa, o argumento anterior é
falacioso. Esta regra é de particular importância em filosofia. É devido a ela
que quase todos os argumentos de autoridade em filosofia são falaciosos. Hegel
discordou de Kant, que discordou de Descartes, que discordou de Aristóteles,
que discordou de Platão. Poucas são as afirmações filosóficas substanciais que
todos os filósofos aceitam e é por isso que não podemos usar a doutrina de Platão
sobre os universais para sustentar a nossa doutrina sobre os universais, quando
ambas são coincidentes. Fazer isto, ainda que com abundantes citações e muitos
dispositivos que imitem a seriedade académica, não passa de uma falácia
primária.
A tristemente célebre disputa
de Galileu com a Igreja compreende-se agora melhor. Nunca se tratou de uma luta
contra todos e quaisquer argumentos de autoridade, mas da validade de dois
argumentos de autoridade usados pela Igreja:
Aristóteles disse que a Terra está imóvel.
Logo, a Terra está imóvel.
A Bíblia disse que a Terra está imóvel. Logo, a
Terra está imóvel.
Ambos os argumentos são
falaciosos. O primeiro, porque nem todos os grandes especialistas da altura em
astronomia, entre os quais o próprio Galileu, concordavam com Aristóteles – o
argumento viola, portanto, a Regra 2. O segundo, porque a Bíblia é um conjunto
de relatos de carácter não-científico, pelo que as afirmações nela contidas não
têm qualquer relevância para a matéria em causa – o argumento viola, portanto,
a Regra 1.
Imaginemos agora que alguém
dizia a Einstein: “A sua teoria está errada, porque todos os especialistas
concordam com Newton e a sua teoria é contrária à teoria de Newton”. Apesar de
não parecer, trata-se de um argumento de autoridade.
Todos os grandes especialistas
afirmam que a teoria de Einstein está errada. Logo, a teoria de Einstein está
errada.
Qualquer pessoa poderia ter
usado este argumento quando Einstein publicou pela primeira vez a teoria da relatividade
restrita. A falácia deste argumento é mais subtil do que a violação das regas 1
e 2. Trata-se de um tipo diferente de falácia. Neste caso, acontece apenas que
é o próprio argumento no seu todo que é derrotado pela força dos argumentos
independentes que sustentam a teoria de Einstein. Podemos formular a regra
violada do seguinte modo:
Regra 3: Só podemos aceitar a
conclusão de um argumento de autoridade se não existirem outros argumentos mais
fortes ou de força igual a favor da conclusão contrária.
Esta regra existe porque os seres humanos erram
– incluindo os especialistas, e incluindo a totalidade dos especialistas, como
a história da ciência e do pensamento mostra. Esta regra impede que os
argumentos de autoridade “fechem” o pensamento, pois leva-nos a considerar
outras razões para pensar que uma dada ideia é verdadeira ou falsa,
independentemente da opinião unânime dos especialistas. Em suma, sem esta regra
não se compreende a evolução da ciência e do pensamento, pois acontece
frequentemente, como no caso de Einstein, que uma dada ideia é contrária ao que
pensam os especialistas.
No caso do argumento de
Einstein, a falácia consiste no simples facto do argumento de autoridade
baseado em todos os especialistas em física ser mais fraco que os próprios argumentos
físicos e matemáticos que sustentam a teoria de Einstein.
Considere-se agora o seguinte argumento:
O psiquiatra João Rico defende que toda a gente
deve consultar um psiquiatra pelo menos três vezes por ano. Logo, toda a gente
deve consultar um psiquiatra pelo menos três vezes por ano.
Imagine-se que todos os
grandes especialistas concordam com João Rico, e que João Rico é
reconhecidamente um grande especialista em psiquiatria. À luz da Regra 3 este
argumento é relativamente fraco, pois há outros argumentos que colocam em causa
a conclusão: dados estatísticos, por exemplo, que mostram que a percentagem de
curas efectuadas pelos psiquiatras não é superior à cura aleatória, o que
sugere que esta prática médica é mito diferente de outras práticas médicas,
cujo sucesso é muitíssimo superior.
Todavia, é conveniente dispor
de uma regra que, de forma mais directa, nos permita compreender a falácia
deste argumento:
Regra 4: Os especialistas da
matéria em causa (as autoridades), no seu todo, não podem ter fortes interesses
pessoais na afirmação em causa.
Quando Einstein afirma que a
teoria da relatividade é verdadeira, tem certamente algum interesse pessoal na
sua teoria. Mas os outros físicos não têm qualquer interesse em que a teoria da
relatividade seja verdadeira; pelo contrário, têm interesse em demonstrar que é
falsa, pois nesse caso seriam eles a ficar famosos e não Einstein. O interesse
de Einstein não é eliminável da investigação científica: é o interesse de ser o
pai de uma teoria revolucionária. Por isso, os físicos de todo o mundo correram
a testar a sua teoria, a tentar refutá-la, a verificar se as suas previsões
ocorriam, etc. Mas se o mesmo cuidado não acontecer relativamente á afirmação
do psiquiatra João Rico, algo de errado se passa – e o que se passa é que ao
contrário do que acontece no caso de Einstein, nenhum psiquiatra tem interesse
em refutar o que diz João Rico. E, por isso, o argumento de João Rico não tem
qualquer valor – porque é a comunidade dos especialistas, no seu todo, que tem
tudo a ganhar e nada a perder em concordar com João Rico.
Um aparente contra-exemplo à
regra 4 é o seguinte:
O médico António Filho afirma que todas as
pessoas devem fazer análises ao sangue uma vez por ano. Logo, todas as pessoas
devem fazer análises ao sangue uma vez por ano.
Segundo a Regra 4 este
argumento é falacioso, dado que os médicos têm interesses óbvios em que todas
as pessoas façam análises uma vez por ano. Mas pode-se defender que este
argumento não é falacioso, o que mostraria que a Regra 4 estaria errada.
A resposta a este
contra-exemplo é a seguinte: Este argumento é realmente falacioso; só não
parece falacioso se tivermos dispostos a aceitar a conclusão – mas do facto de
um argumento ter uma conclusão verdadeira não se segue que o argumento é
válido. Ora, não é a força da autoridade dos médicos que sustenta a verdade da
conclusão do argumento, mas antes a força da investigação médica que mostra que
muitas doenças podem ser evitadas a tempo se as pessoas fizerem análises ao
sangue uma vez por ano. E a força dessa investigação médica depende
inteiramente da seriedade académica da própria investigação – se os
investigadores que procurarem mostrar o contrário forem afastados da
investigação e tiverem dificuldades na publicação dos seus resultados em
revistas especializadas então os resultados da investigação médica, no seu todo,
não têm qualquer valor.
MURCHO, Desidério, O
Lugar da Lógica na Filosofia, 2003. Lisboa: Plátano Editora, pp. 115-120
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