O segundo capítulo da obra O Discurso da Ação[1]
de Paul Ricoeur é intitulado, precisamente, de ‘A rede conceptual da ação’.
Muito embora se entrecruzem duas problemáticas, a análise da linguagem com a
análise da ação, que se deixam antever pelo título do livro, este capítulo
analisa conceitos fundamentais ligados à ação como: ação, intenção, motivo,
causa, agente. Embora todos estes conceitos se distingam uns dos outros ao
enunciar um estamos a anunciar os outros, uma vez que aparecem interligados no
campo da ação[2].
Ao abordar o conceito de intenção, Ricoeur afirma
que só no jogo da linguagem, da pergunta e da resposta, é que o conceito de
intenção “adquire sentido, isto é, quando se responde a perguntas como: o que
estás a fazer? Por que é que estás a fazer?”[3]. A
resposta a estas perguntas permitem antever a intencionalidade de determinada
ação. Dentro do conceito de intencionalidade surge o conceito de desejo, em que
desejar alguma coisa é estimar como bom, mas “o tipo de bondade correlativa do
carácter de desejabilidade não implica nenhuma aprovação ou desaprovação moral;
implica apenas que um agente racional é capaz de invocar um caráter de
desejabilidade e de o introduzir num cálculo de meios”[4]. Desta
forma, o ‘desejar alguma coisa’ é um meio para um determinado fim que se estima
como bom para o agente.
Mas será que aquilo que eu desejo é sempre bom?
Poderíamos até colocar a pergunta que com frequência fazemos: será que os meios
justificam os fins? Será que aquilo que motiva as minhas ações serão apenas os
meus desejos, as minhas motivações pessoais? Ou, talvez, a minha ação seja
apenas aquele jogo de cálculos em que considero os ganhos e as perdas e assim o
calculismo racional explicaria todas as nossas ações.
Paul Ricoeur, ao abordar o conceito de intenção
afirma que “a própria ação deve mencionar-se como um facto público”[5], implica
o olhar do outro, uma vez que a ação não está desligada do agente. Trata-se de
responder à pergunta: quem? Desta forma, adquirem sentido os conceitos de
responsabilidade, ou seja, “a orientação consciente por um agente capaz de se
reconhecer como sujeito dos seus atos”[6] e de
imputabilidade, ou seja, “atribuir uma ação a alguém é, em primeiro lugar,
identificar o sujeito da ação. A ação está aí, de quem é, a quem pertence?”[7]
A pergunta pela finalidade, pelo objetivo ou pelo
propósito de uma determinada ação pode-nos ajudar a responder à problemática da
intencionalidade, problemática esta que se cruza com o conceito de motivo que,
em Paul Ricoeur, adquire “uma certa ideia de força como uma certa ideia de sentido”[8], razão
pela qual dificilmente se distingue do conceito de causa.
Referindo ainda Paul Ricoeur, poderíamos resumir
assim a rede conceptual da ação, tal como ele apresenta: “todos os termos da
rede convergem aqui: ação, intenção, motivação e, por último, agente, a) A ação
é «de mim», depende de mim; está no poder do agente; b) Por outro lado, a
intenção compreende-se como a intenção de alguém; decidir é decidir-se a…; c)
Por fim, o motivo remete também para a noção de agente; que é que levou A a
fazer X; Qual é a razão para que eu…? Por que é que eu…?”[9]
Chegados aqui e no
contexto da explicação das ações poderíamos fazer a pergunta pelos motivos que
nos levam a agir, saber que força nos
leva a agir de determinada forma e que dá sentido
à nossa ação? De acordo com as noções atrás apresentas por Paul Ricoeur.
Uma possível resposta a esta pergunta poderia ser
apresentada balizada por dois opostos: altruísmo e egoísmo. Será que as nossas
ações são motivadas por um autêntico altruísmo? Ou será que o altruísmo aparece
sempre disfarçado de egoísmo e este último é o que melhor explica as ações
humanas?
James Rachels ajuda-nos a perceber o alcance destas
questões[10].
São muitos os exemplos que poderíamos nomear de pessoas que têm gestos
altruístas, realizados com um profundo desapego aos seus interesses e que se
colocam na inteira disponibilidade do outro. Não porque a sociedade o imponha,
mas porque a própria moralidade assim o requer, que sejamos altruístas. Mas, até que ponto podemos e devemos ser
altruístas?[11]
Ao colocarmos a pergunta até que ponto
não estaremos a estabelecer limites ao próprio altruísmo e, chegado a
acontecer, podemos dizer que não somos nem livre nem autenticamente altruístas.
Então parece que as pessoas são
altruístas?
Existe uma teoria, egoísmo psicológico, segundo a
qual o ser humano é incapaz de ser altruísta, “todas as ações são motivadas
pelo egoísmo”[12].
Para esta teoria, “o comportamento ‘altruísta’ está
na realidade ligado a coisas como o desejo de ter uma vida mais significativa,
o desejo de reconhecimento público, sentimentos de satisfação pessoal e a
esperança de uma recompensa divina”. Desta forma, todo o ato que parece ser
altruísta pode ter uma explicação egoísta.
James Rachels apresenta dois argumentos a favor do
egoísmo psicológico: primeiro, fazemos sempre o que mais desejamos fazer;
segundo, fazemos o que nos faz sentir bem[13]. Estes
dois argumentos parecem-nos levar a concluir que o egoísmo psicológico tem de
ser verdadeiro.
Contudo, estes argumentos apresentam algumas falhas.
No primeiro argumento não se considera a possibilidade de as pessoas realizarem
voluntariamente uma ação senão pelo desejo. Mas é verdade que as pessoas fazem
coisas não por causa daquilo que se desejam mas por causa daquilo que devem fazer. Existe uma não coincidência
entre o desejo e a obrigação. É o exemplo da promessa: faço as coisas não
porque desejo, mas porque me comprometi a fazer. Por vezes também fazemos
coisas que não queremos fazer, mas que são um meio para um determinado fim. A
segunda falha apontada por James Rachels, consiste em afirmar que agir segundo
os seus desejos não significa que essa pessoa esteja a ser egoísta, tudo
depende do que essa pessoa deseja, se
age de acordo com o seu próprio bem-estar ou com a felicidade dos outros.
O segundo argumento apresenta, igualmente falhas. Ao
afirmar que fazemos o que nos faz sentir bem, no sentido daquilo que
ordinariamente denominamos de auto-satisfação, de consciência tranquila. Por que
razão uma pessoa tem satisfação ao ajudar os outros? Porque primeiro está a
satisfação dos outros e só depois é que a pessoa que ajudou se sente bem
consigo mesma. A resposta a este argumento, que defende o egoísmo psicológico,
poderia ser a formulada por James Rachels “somos o tipo de pessoa que se
importa com o que acontece aos outros. Se não nos importamos com isso, doar o
dinheiro parecerá um desperdício e não uma fonte de satisfação. Vai fazer
sentir-nos parvos e não santos”[14].
Muito embora a teoria do egoísmo psicológico nos
pareça uma teoria plausível ela não o é, por diversos motivos, conforme nos
refere James Rachels.
Primeiro, porque confundimos egoísmo com interesse
próprio, uma vez que o “comportamento egoísta é o comportamento que ignora o
interesse dos outros em circunstâncias nas quais não deviam ser ignoradas”[15](exemplo:
ir ao dentista). Segundo, porque confundimos interesse próprio com a procura do
prazer, aquilo que gostamos de fazer nem sempre coincide com o interesse
próprio (exemplo: um fumador). Terceiro motivo, pensarmos que o nosso próprio
bem-estar não se concilia com a preocupação pelos outros, porque podemos ajudar
os outros sem interferir nos nossos interesses (exemplo: a família).
Contudo, o erro mais grave da teoria do egoísmo
psicológico é a atração simplista pelo mesmo, cujos defensores a apresentam
como irrefutável, de aceitar uma única hipótese através do qual todo o
comportamento humano possa ser explicado pelo pressuposto que visa o interesse
próprio. Mas as “motivações das pessoas são das mais diversas. As pessoas agem
por avidez, fúria, luxúria, amor e ódio. Fazem certas coisas porque estão
assustadas, ciumentas, curiosas, felizes, preocupadas e inspiradas. Por vezes
são egoístas e por vezes generosas”[16].
Júlio Maria
[1]
RICOUER, Paul – O Discurso da Ação,
Biblioteca da Filosofia Contemporânea nº8, Ed. 70, Lisboa, 2013, pp. 59-100.Esta
obra é referenciada no Programa da disciplina de Filosofia.
[2] Cf.
Idem, Ibidem, p. 60.
[3] Idem, Ibidem, p. 69.
[4] Idem, Ibidem, p. 75.
[5] Idem, Ibidem, p. 69.
[6] Idem, Ibidem, p. 85.
[7] Idem, Ibidem, p. 86.
[8] Idem, Ibidem, p. 79.
[9] Idem, Ibidem, pp. 85-86.
[10]
Cf. RACHELS, James – Elementos de
Filosofia Moral, Ed. Gravida, Coleção Filosofia Aberta, 1ª edição, pp.
97-113.
[11] Cf.
Idem, Ibidem, p. 98.
[12] Idem, Ibidem, p. 99.
[13] Idem, Ibidem, pp. 103-105.
[14] Idem, Ibidem, pp. 106-107.
[15] Idem, Ibidem, p. 108.
[16] Idem, Ibidem, pp. 113.
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