terça-feira, 27 de setembro de 2016

LÓGICA E ARGUMENTAÇÃO

A argumentação é um instrumento sem o qual não podemos compreender melhor o mundo nem intervir nele de modo a alcançar os nossos objectivos; não podemos sequer determinar com rigor quais serão os melhores objectivos a ter em mente. Os seres humanos estão sós perante o universo; têm de resolver os seus problemas, enfrentar dificuldades, traçar planos de acção, fazer escolhas. Para fazer todas estas coisas precisamos de argumentos. Será que a Terra está imóvel no centro do universo? Que argumentos há a favor desta ideia? E que argumentos há contra ela? Será que Bin-Laden é responsável pelo atentado de 11 de Setembro? Que argumentos há a favor desta ideia? E que argumentos há contra? Será que foi o réu que incendiou propositadamente a mata? Será que o aborto é permissível? Será que Cristo era um deus? Será que criamos mais bem-estar se o Estado for o dono da maior parte da economia? Será possível curar o cancro? E a Sida? O que é a consciência? Será que alguma vez houve vida em Marte? Queremos respostas a todas estas perguntas, e a muitas mais. Mas as respostas não nascem nas árvores nem dos livros estrangeiros; temos de ser nós a procurar descobri-las. Para descobri-las temos de usar argumentos. E quando argumentamos podemos enganar-nos; podemos argumentar bem ou mal. É por isso que a lógica é importante. A lógica permite-nos fazer o seguinte:
1)    Distinguir os argumentos correctos dos incorrectos;
2)    Compreender por que razão uns são correctos e outros não; e
3)    Aprender a argumentar correctamente.
Os seres humanos eram. E não erram apenas no que respeita à informação de que dispõem. Eram também ao pensar sobre a informação de que dispõem, ao retirar consequências dessa informação, ao usar essa informação na argumentação. Muitos argumentos incorrectos não são enganadores: são obviamente incorrectos. Mas alguns argumentos incorrectos parecem correctos. Por exemplo, muitas pessoas sem formação lógica aceitariam o seguinte argumento:
Tem de haver uma causa para todas as coisas porque todas as coisas têm uma causa.
Contudo, este argumento é incorrecto. A lógica ajuda-nos a compreender por que razão este argumento é incorrecto, apesar de parecer correcto. Chama-se “válido” a um argumento correcto e “inválido” a um argumento incorrecto. Do ponto de vista estritamente lógico não há qualquer distinção entre argumentos inválidos que são enganadores porque parecem válidos, e argumentos inválidos que não são enganadores porque não parecem válidos. Mas esta distinção é importante, e por isso alguns autores reservam o termo “falácia” para os argumentos inválidos que parecem válidos.[i] Como é evidente, são as falácias que são particularmente perigosas. Os argumentos cuja invalidade é evidente não são enganadores e se todos os argumentos inválidos fossem assim, não seria necessário estudar lógica para saber evitar erros de argumentação.
Há muitos aspectos da argumentação que não são estudados pela lógica; por exemplo, alguns aspectos psicológicos. Algumas pessoas aceitam argumentos inválidos pensando que são válidos; outras, recusam argumentos válidos pensando que são inválidos. Há vários tipos de factores que explicam estas atitudes: factores psicológicos, sociológicos, históricos, patológicos, etc. A lógica não estuda estes aspectos da argumentação, que são estudados pela psicologia, sociologia, história e psiquiatria.
A lógica também não estuda o que as pessoas aceitam como argumentação válida, ta como a história não estuda o que as pessoas pensam sobre o passado. A história estuda o próprio passado e não o que as pessoas pensam dele, se bem que tenha em conta o que as pessoas pensam do passado – nomeadamente para determinar se o que as pessoas pensam do passado é ou não é verdade. Do mesmo modo, a lógica não estuda o que as pessoas aceitam como argumentação válida, mas a própria argumentação válida, se bem que tenha em conta o que as pessoas aceitam como argumentação válida – nomeadamente para determinar se o que as pessoas aceitam como argumentação válida é ou não efectivamente argumentação válida.
“Argumento”, “inferência”, e “raciocínio” são termos praticamente equivalentes. Fazer uma inferência é apresentar um argumento, e raciocinar é retirar conclusões a partir de premissas. Pensar é em grande parte raciocinar. Um argumento é um conjunto de afirmações de tal forma organizadas que se pretende que uma delas, a que se chama “conclusão”, seja apoiada pelas outras, a que se chamam “premissas”.[ii] O que se pretende num argumento válido é que As suas premissas estejam de tal forma organizadas que “arrastem” consigo a conclusão. Uma boa analogia é pensar nas premissas e na conclusão como elos de uma corrente; se o argumento for válido, “puxamos” as premissas e a conclusão vem “agarrada” a elas; se for inválido, “puxamos” as premissas mas a conclusão não vem “agarrada” a elas.
Eis alguns exemplos de argumentos:
1.    Não podemos permitir o aborto porque é o assassínio de um inocente.
2.    Dado que os artistas podem fazer o que muito bem entenderem, é impossível definir arte.
3.    Considerando que sem Deus tudo é permitido, é necessária a existência de Deus para fundamentar a moral e dar sentido à vida.
4.    Se Sócrates fosse um deus, seria imortal. Mas dado que Sócrates não era imortal, não era um deus.
Nem sempre é fácil determinar qual é a conclusão e quais são as premissas de um dado argumento; mas esse é o primeiro passo para que o argumento possa ser discutido. No caso do argumento 1 a conclusão é “Não podemos permitir o aborto” e a premissa é “O aborto é o assassínio de um inocente”: No caso do argumento 2 a conclusão é “É impossível definir a arte” e a premissa é “Os artistas podem fazer o que muito bem entenderem”. O argumento 3 é mais prolixo: a conclusão é “É necessária a existência de Deus para fundamentar a moral e dar sentido à vida” e a premissa é “Sem Deus tudo é permitido”.
Para tornar a discussão de argumentos mais fácil podemos reformulá-los, separando claramente cada uma das premissas da conclusão. Chama-se “representação canónica” a esta maneira de representar os argumentos. O argumento 4 pode ser canonicamente representado como se segue:
Se Sócrates fosse um deus, seria imortal.
Sócrates não era imortal.
Logo, Sócrates não era um deus.
É evidente que esta forma de representar argumentos é artificiosa. Mas é o primeiro passo para que se possa discutir argumentos, pois só assim se torna claro quais são as premissas e qual é a conclusão. Esta forma de representar argumentos é já fruto do trabalho de análise de argumentos.
Reformular argumentos, apresentando-os na sua forma canónica é um exercício imprescindível no estudo da lógica. Claro que os argumentos dados para reformular não poderão ser demasiado complexos, pois só um especialista ou alguém já familiarizado com a lógica poderá reformular argumentos cuja estrutura seja demasiado complexa. Mas não poderão ser tão simples que surjam como artificialismos sem qualquer relação com a argumentação real que se encontra nos ensaios dos filósofos. O objectivo do estudo da lógica é desenvolver as seguintes capacidades, face a um ensaio filosófico ou outro:
1.    Identificar conclusão ou conclusão principal;
2.    Identificar as premissas, incluindo eventuais premissas implícitas;
3.    Distinguir diferentes argumentos, explícitos ou aludidos, que o ensaio apresenta.
Estas capacidades permitem discutir as ideias dos filósofos e adoptar uma posição crítica. Sem ela, resta a paráfrase e o monólogo sem rumo, a que habitualmente se chama “comentário de texto” e “problematização”.
Nos parágrafos precedentes definiu-se e caracterizou-se a lógica, definindo a noção de argumento, apresentando vários exemplos, e dando uma ideia intuitiva de argumento válido e inválido. É desta forma que tem de se proceder. Definir a lógica através da raiz etimológica da palavra “lógica” nada esclarece.  E dar exemplos d quebra-cabeças, que muitas vezes não envolvem quaisquer argumentos, mas apenas truques e trocadilhos, ´+e enganador. A lógica deve ser apresentada como o que realmente é: o estudo de alguns aspectos importantes da argumentação, que nos permite distinguir os argumentos válidos dos inválidos. A lógica não é uma espécie de “jogo simbólico” nem de “quebra-cabeças”.
Finalmente, a lógica não é o estudo das “condições de coerência” do pensamento. A lógica estuda a validade e não a coerência da argumentação. Um argumento pode ser perfeitamente coerente e ser inválido, como no exemplo seguinte:
Se a vida não é sagrada, o aborto é permissível.
Mas a vida é sagrada.
Logo, o aborto não é permissível.
Exercícios
1.    Reformule o seguinte argumento na forma canónica: “Dado que os animais não têm deveres, não têm direitos. Como os touros são animais, podemos concluir que não têm direitos.”
2.    Será que todos os textos são argumentativos? Porquê?
3.    O que é um argumento Dê alguns exemplos.



[i] Distingue-se por vezes falácias de sofismas, havendo no segundo caso intenção de enganar. Mas esta distinção é irrelevante para a compreensão da argumentação.
[ii] Um argumento só pode ter uma conclusão, mas pode ter várias premissas.


MURCHO, Desidério, O Lugar da Lógica na Filosofia, 2003. Lisboa: Plátano Editora, pp. 9-13

Sem comentários: