A argumentação é um instrumento sem o qual
não podemos compreender melhor o mundo nem intervir nele de modo a alcançar os
nossos objectivos; não podemos sequer determinar com rigor quais serão os
melhores objectivos a ter em mente. Os seres humanos estão sós perante o
universo; têm de resolver os seus problemas, enfrentar dificuldades, traçar
planos de acção, fazer escolhas. Para fazer todas estas coisas precisamos de
argumentos. Será que a Terra está imóvel no centro do universo? Que argumentos
há a favor desta ideia? E que argumentos há contra ela? Será que Bin-Laden é
responsável pelo atentado de 11 de Setembro? Que argumentos há a favor desta ideia?
E que argumentos há contra? Será que foi o réu que incendiou propositadamente a
mata? Será que o aborto é permissível? Será que Cristo era um deus? Será que criamos
mais bem-estar se o Estado for o dono da maior parte da economia? Será possível
curar o cancro? E a Sida? O que é a consciência? Será que alguma vez houve vida
em Marte? Queremos respostas a todas estas perguntas, e a muitas mais. Mas as
respostas não nascem nas árvores nem dos livros estrangeiros; temos de ser nós
a procurar descobri-las. Para descobri-las temos de usar argumentos. E quando
argumentamos podemos enganar-nos; podemos argumentar bem ou mal. É por isso que
a lógica é importante. A lógica permite-nos fazer o seguinte:
1)
Distinguir os argumentos correctos dos
incorrectos;
2)
Compreender por que razão uns são correctos e
outros não; e
3)
Aprender a argumentar correctamente.
Os seres humanos eram. E não erram apenas no
que respeita à informação de que dispõem. Eram também ao pensar sobre a
informação de que dispõem, ao retirar consequências dessa informação, ao usar
essa informação na argumentação. Muitos argumentos incorrectos não são
enganadores: são obviamente incorrectos. Mas alguns argumentos incorrectos
parecem correctos. Por exemplo, muitas pessoas sem formação lógica aceitariam o
seguinte argumento:
Tem de haver uma causa para todas as coisas
porque todas as coisas têm uma causa.
Contudo, este argumento é incorrecto. A
lógica ajuda-nos a compreender por que razão este argumento é incorrecto,
apesar de parecer correcto. Chama-se “válido” a um argumento correcto e
“inválido” a um argumento incorrecto. Do ponto de vista estritamente lógico não
há qualquer distinção entre argumentos inválidos que são enganadores porque
parecem válidos, e argumentos inválidos que não são enganadores porque não
parecem válidos. Mas esta distinção é importante, e por isso alguns autores
reservam o termo “falácia” para os argumentos inválidos que parecem válidos.[i] Como é evidente, são as
falácias que são particularmente perigosas. Os argumentos cuja invalidade é
evidente não são enganadores e se todos os argumentos inválidos fossem assim,
não seria necessário estudar lógica para saber evitar erros de argumentação.
Há muitos aspectos da argumentação que não
são estudados pela lógica; por exemplo, alguns aspectos psicológicos. Algumas
pessoas aceitam argumentos inválidos pensando que são válidos; outras, recusam
argumentos válidos pensando que são inválidos. Há vários tipos de factores que
explicam estas atitudes: factores psicológicos, sociológicos, históricos,
patológicos, etc. A lógica não estuda estes aspectos da argumentação, que são
estudados pela psicologia, sociologia, história e psiquiatria.
A lógica também não estuda o que as pessoas
aceitam como argumentação válida, ta como a história não estuda o que as
pessoas pensam sobre o passado. A história estuda o próprio passado e não o que
as pessoas pensam dele, se bem que tenha em conta o que as pessoas pensam do
passado – nomeadamente para determinar se o que as pessoas pensam do passado é
ou não é verdade. Do mesmo modo, a lógica não estuda o que as pessoas aceitam
como argumentação válida, mas a própria argumentação válida, se bem que tenha
em conta o que as pessoas aceitam como argumentação válida – nomeadamente para
determinar se o que as pessoas aceitam como argumentação válida é ou não efectivamente
argumentação válida.
“Argumento”, “inferência”, e “raciocínio” são
termos praticamente equivalentes. Fazer uma inferência é apresentar um
argumento, e raciocinar é retirar conclusões a partir de premissas. Pensar é em
grande parte raciocinar. Um argumento é um conjunto de afirmações de tal forma organizadas
que se pretende que uma delas, a que se chama “conclusão”, seja apoiada pelas
outras, a que se chamam “premissas”.[ii] O que se pretende num
argumento válido é que As suas premissas estejam de tal forma organizadas que
“arrastem” consigo a conclusão. Uma boa analogia é pensar nas premissas e na
conclusão como elos de uma corrente; se o argumento for válido, “puxamos” as
premissas e a conclusão vem “agarrada” a elas; se for inválido, “puxamos” as
premissas mas a conclusão não vem “agarrada” a elas.
Eis alguns exemplos de argumentos:
1.
Não podemos permitir o aborto porque é o assassínio
de um inocente.
2.
Dado que os artistas podem fazer o que muito
bem entenderem, é impossível definir arte.
3.
Considerando que sem Deus tudo é permitido, é
necessária a existência de Deus para fundamentar a moral e dar sentido à vida.
4.
Se Sócrates fosse um deus, seria imortal. Mas
dado que Sócrates não era imortal, não era um deus.
Nem sempre é fácil determinar qual é a
conclusão e quais são as premissas de um dado argumento; mas esse é o primeiro
passo para que o argumento possa ser discutido. No caso do argumento 1 a
conclusão é “Não podemos permitir o aborto” e a premissa é “O aborto é o
assassínio de um inocente”: No caso do argumento 2 a conclusão é “É impossível
definir a arte” e a premissa é “Os artistas podem fazer o que muito bem
entenderem”. O argumento 3 é mais prolixo: a conclusão é “É necessária a
existência de Deus para fundamentar a moral e dar sentido à vida” e a premissa
é “Sem Deus tudo é permitido”.
Para tornar a discussão de argumentos mais
fácil podemos reformulá-los, separando claramente cada uma das premissas da
conclusão. Chama-se “representação canónica” a esta maneira de representar os
argumentos. O argumento 4 pode ser canonicamente representado como se segue:
Se Sócrates fosse um deus, seria imortal.
Sócrates não era imortal.
Logo, Sócrates não era um deus.
É evidente que esta forma de representar
argumentos é artificiosa. Mas é o primeiro passo para que se possa discutir
argumentos, pois só assim se torna claro quais são as premissas e qual é a
conclusão. Esta forma de representar argumentos é já fruto do trabalho de
análise de argumentos.
Reformular argumentos, apresentando-os na sua
forma canónica é um exercício imprescindível no estudo da lógica. Claro que os argumentos
dados para reformular não poderão ser demasiado complexos, pois só um especialista
ou alguém já familiarizado com a lógica poderá reformular argumentos cuja
estrutura seja demasiado complexa. Mas não poderão ser tão simples que surjam
como artificialismos sem qualquer relação com a argumentação real que se encontra
nos ensaios dos filósofos. O objectivo do estudo da lógica é desenvolver as
seguintes capacidades, face a um ensaio filosófico ou outro:
1.
Identificar conclusão ou conclusão principal;
2.
Identificar as premissas, incluindo eventuais
premissas implícitas;
3.
Distinguir diferentes argumentos, explícitos
ou aludidos, que o ensaio apresenta.
Estas capacidades permitem discutir as ideias
dos filósofos e adoptar uma posição crítica. Sem ela, resta a paráfrase e o
monólogo sem rumo, a que habitualmente se chama “comentário de texto” e
“problematização”.
Nos parágrafos precedentes definiu-se e
caracterizou-se a lógica, definindo a noção de argumento, apresentando vários
exemplos, e dando uma ideia intuitiva de argumento válido e inválido. É desta
forma que tem de se proceder. Definir a lógica através da raiz etimológica da
palavra “lógica” nada esclarece. E dar
exemplos d quebra-cabeças, que muitas vezes não envolvem quaisquer argumentos,
mas apenas truques e trocadilhos, ´+e enganador. A lógica deve ser apresentada
como o que realmente é: o estudo de alguns aspectos importantes da
argumentação, que nos permite distinguir os argumentos válidos dos inválidos. A
lógica não é uma espécie de “jogo simbólico” nem de “quebra-cabeças”.
Finalmente, a lógica não é o estudo das
“condições de coerência” do pensamento. A lógica estuda a validade e não a coerência
da argumentação. Um argumento pode ser perfeitamente coerente e ser inválido, como
no exemplo seguinte:
Se a vida não é sagrada, o aborto é
permissível.
Mas a vida é sagrada.
Logo, o aborto não é permissível.
Exercícios
1.
Reformule o seguinte argumento na forma
canónica: “Dado que os animais não têm deveres, não têm direitos. Como os touros
são animais, podemos concluir que não têm direitos.”
2.
Será que todos os textos são argumentativos?
Porquê?
3.
O que é um argumento Dê alguns exemplos.
[i] Distingue-se por vezes falácias de sofismas,
havendo no segundo caso intenção de enganar. Mas esta distinção é irrelevante
para a compreensão da argumentação.
[ii] Um argumento só pode ter uma conclusão, mas
pode ter várias premissas.
MURCHO, Desidério, O
Lugar da Lógica na Filosofia, 2003. Lisboa: Plátano Editora, pp. 9-13
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