segunda-feira, 26 de outubro de 2009

O LEGADO DE SÓCRATES iii


O argumento da destruição do Estado

Sócrates julgava que três argumentos o compeliam a beber a cicuta. O primeiro deles era o de que estaria a destruir o estado se desobedecesse à lei. Sócrates explica-nos que o Estado não pode existir se as pessoas não obedecerem às suas leis:

Supõe que, enquanto nos preparamos para fugir daqui ( se é assim que se deve descrever esse acto), as Leis e a Constituição de Atenas aparecem-nos e confrontam-nos, colocando esta questão: « Sócrates, o que planeias fazer? Poderás negar que, com esse acto que estás a considerar, pretendes, na medida das tuas possibilidades, destruir-nos a nós, as Leis, bem como todo o Estado? Imaginarás que uma cidade pode continuar a existir, e não ser derrubada, se as sentenças promulgadas pelos tribunais não tiverem qualquer força e forem anuladas e destruídas por pessoas privadas?»

Deste modo, diz-nos o argumento, ao desobedecer à lei destruímos o Estado. Sócrates acrescenta que, depois de ter beneficiado tanto «das leis e da Constituição», retribuir com um mal revelaria uma grande ingratidão.

É surpreendente que Sócrates estivesse disposto a fazer a sua vida depender destes pensamentos. Será que este é um argumento sólido? Um problema óbvio é o de que não é realista pensar que o acto de desobediência de Sócrates tivesse efectivamente as consequências prejudiciais que descreve. Caso fosse para o exílio, Atenas não seria «derrubada». Atenas continuaria a subsistir quase como antes. Como é óbvio, se as pessoas ignorarem habitualmente a lei, resultaria daí o caos; mas se elas desobedecerem apenas ocasionalmente, em circunstâncias extremas, o Estado não será prejudicado.

No entanto, podemos sentir que o argumento propõe uma ideia legítima. As considerações aduzidas provam algo, ainda que não provem tanto como Sócrates pensava. Mostram-nos que temos uma obrigação ampla, mas não ilimitada, de obedecer à lei. Podemos então apresentar o argumento nesta forma modificada, mas mais defensável:

1. Se, regra geral, não obedecermos à lei (admitindo apenas raras excepções), o Estado não pode existir.

2. Seria desastroso se o Estado não existisse, já que neste caso ficaríamos todos numa situação muito pior.

3. Logo, regra geral, devemos obedecer à lei (admitindo apenas raras excepções).

O raciocínio original de Sócrates, embora seja fraco, sugere este argumento modificado, que é muito melhor. Contudo, deste argumento modificado não se segue que Sócrates tivesse de ficar e beber a cicuta. Afinal, esta poderia ser a «rara excepção» que justificasse a desobediência.


Problemas da Filosofia, James Rachels - Gradiva, Colecção Filosofia Aberta, pp 18-20

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