quinta-feira, 15 de outubro de 2009

Aparência e Realidade ii


Para tornar evidentes as nossas dificuldades, concentremos a atenção na mesa. Para a visão é oblonga, castanha e brilhante, para o tacto, é lisa e fria e dura, quando lhe bato, emite um som de madeira. Qualquer outra pessoa que veja, sinta e ouça concordará com esta descrição, de modo que poderá parecer que nenhuma dificuldade se irá levantar; mas assim que tentamos ser mais precisos começam os problemas. Apesar de eu acreditar que a mesa é «realmente» toda da mesma cor, as partes que reflectem a luz parecem brancas por causa da luz reflectida. Sei que, se me deslocar, as partes que reflectem a luz serão diferentes, de modo que a distribuição manifesta de cores na mesa irá mudar. Segue-se que se várias pessoas estão a olhar para a mesa no mesmo momento, nenhuma verá exactamente a mesma distribuição de cores, pois nenhuma pode vê-la exactamente do mesmo ponto de vista, e qualquer mudança de ponto de vista provoca alguma mudança no modo como a luz é reflectida.
Para a maior parte dos efeitos práticos, estas diferenças não são importantes, mas para o pintor são da máxima importância: o pintor tem de desaprender o hábito de pensar que as coisas parecem ter a cor que o senso comum diz que «realmente» têm, e tem de adquirir o hábito de ver as coisas como parecem. Temos já aqui o princípio de uma das distinções que provocam mais problemas em filosofia – a distinção entre «aparência» e «realidade», entre o que parece que as coisas são e o que são. O pintor quer saber o que as coisas parecem, o homem prático e o filósofo querem saber o que são; mas o desejo do filósofo de saber isto é mais forte do que o do homem prático, e é mais importunado pelo conhecimento das dificuldades em responder à questão.
Regressemos à mesa. É evidente pelo que descobrimos que não há qualquer cor que pareça proeminentemente a cor da mesa, ou mesmo de uma qualquer parte particular da mesa – parece ter cores diferentes de diferentes pontos de vista, e não há qualquer razão para considerar que algumas são mais realmente a sua cor do que outras. E sabemos que mesmo de um dado ponto de vista a cor parecerá diferente à luz artificial, ou a um daltónico, ou a um homem com óculos azuis, sendo que às escuras não haverá qualquer cor, apesar de ao tacto e ao ouvido a mesa se manter inalterada. Esta cor não é algo que seja inerente à mesa, sendo antes algo que depende da mesa e do espectador e do modo como a luz incide sobre a mesa. Quando, na vida comum, falamos de a cor da mesa, queremos apenas falar do género de cor que parecerá ter a um espectador normal de um ponto de vista comum em condições de luz habituais. Mas as outras cores que a mesa parece ter noutras condições têm igual direito de serem consideradas reais; e portanto, para evitar favoritismos, somos obrigados a negar que, em si, a mesa tenha uma cor particular qualquer.
O mesmo se aplica à textura. A olho nu consegue-se ver a textura mas, à parte isso, a mesa parece lisa e uniforme. Se víssemos a mesa por um microscópio, veríamos rugosidade e montes e vales, e todo o tipo de diferenças, imperceptíveis a olho nu. Qual destas é a mesa «real»? Temos a tentação natural de dizer que o que vemos pelo microscópio é mais real, mas isso por sua vez mudaria com um microscópio ainda mais poderoso. Mas se não podemos confiar no que vemos a olho nu, por que razão devemos confiar no que vemos pelo microscópio? Uma vez mais, pois, nos abandona a confiança que tínhamos nos nossos sentidos.
A forma da mesa não é melhor. Todos temos o hábito de fazer juízos sobre a forma «real» das coisas, e fazemos isto tão irreflectidamente que acabamos por pensar que vemos efectivamente as formas reais. Mas, de facto, como temos de aprender de tentarmos desenhar, uma dada coisa parece ter uma forma diferente de diferentes pontos de vista. Se a nossa mesa é «realmente» rectangular, parecerá, de quase todos os pontos de vista, como se tivesse dois ângulos agudos e dois ângulos obtusos. Se os lados opostos forem paralelos, parecerá que convergem num ponto afastado do espectador; se forem de comprimento igual, o lado mais próximo parecerá mais comprido. Não se repara normalmente em todas estas coisas ao olhar para uma mesa, pois a experiência ensinou-nos a construir a forma «real» a partir da forma aparente, e a forma «real» é o que nos interessa como homens práticos. Mas a forma «real» não é o que vemos; é algo que se infere do que vemos. E o que vemos muda constantemente de forma à medida que nos deslocamos na sala; de modo que também neste caso os sentidos não parecem dar-nos a verdade sobre a mesa em si, mas apenas sobre a aparência da mesa.
Levantam-se dificuldades análogas quando consideramos o sentido do tacto. É verdade que a mesa nos dá sempre uma sensação de dureza, e sentimos que resiste à pressão. Mas a sensação que obtemos depende da força com que pressionamos a mesa e também da parte do corpo com que a pressionamos; assim, não se pode supor que as várias sensações que resultam de diferentes pressões ou de diferentes partes do corpo revelem directamente qualquer propriedade definida da mesa, sendo no máximo sinais de uma propriedade que talvez cause todas as sensações, mas que não é efectivamente manifesta em qualquer delas. E o mesmo acontece ainda mais obviamente aos sons que se podem extrair batendo na mesa.
Assim, torna-se evidente que a mesa real, se existe, não é o mesmo de que temos experiência imediata pela visão ou pelo tacto ou pela audição. A mesa real, se existe, não é de modo algum imediatamente conhecida por nós, tendo antes de ser uma inferência do que é imediatamente conhecido. Assim, levantam-se desde já duas questões muito difíceis, nomeadamente:

1) Haverá de todo em todo uma mesa real?
2) Se sim, que tipo de objecto poderá ser?

Bertrand Russell, Os Problemas da Filosofia- Edições 70, 2008. pp 70-73

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