quinta-feira, 1 de janeiro de 2009

A teoria moral de Kant iv


Parte IV
Um problema do critério de universalizabilidade
Há um problema geral nos quatro exemplos de Kant — na verdade, há um problema no próprio critério de universalizabilidade. Um objecto singular exemplifica vários tipos. Isto significa que uma dada acção pode ser descrita como incorporando diferentes propriedades. Kant parece pressupor que cada acção incorpora apenas uma máxima, de maneira que podemos testar a moralidade de um acto universalizando a sua máxima. O problema é que há várias máximas que podem conduzir a uma determinada acção; algumas podem ser universalizadas, enquanto outras não.
Vejamos este problema no exemplo da promessa. Alguém tem de decidir se pede dinheiro emprestado prometendo que paga o empréstimo, embora não tenha a intenção de cumprir a promessa. O que significaria isto caso todos se comportassem assim? Uma maneira de descrever esta acção decorre da máxima "Faz uma promessa mesmo que tenhas a intenção de a quebrar". Kant afirma que universalizar esta máxima é impossível porque a proposição seguinte é uma contradição:
Todos fazem promessas mesmo que ninguém tenha a intenção de cumprir as promessas que faz.
Todavia, também podemos descrever a acção do homem como decorrendo de uma máxima bastante diferente: "Não faças promessas a menos que tenhas a intenção de as cumprir, excepto se estiveres numa situação de vida ou de morte e se a tua intenção de quebrar a promessa não for evidente para os outros". Universalizar esta máxima não conduz a contradição, uma vez que é perfeitamente possível que o mundo seja da seguinte maneira:
Todos fazem promessas e em geral as pessoas esperam cumprir as promessas. A excepção surge quando há uma enorme vantagem pessoal em fazer a promessa sem a intenção de a cumprir e a intenção de quebrar a promessa não é evidente para os outros.
Longe de ser impossível, esta generalização parece descrever de maneira bastante exacta o mundo em que efectivamente vivemos.
Repara na semelhança entre o problema que Kant enfrenta e um dos problemas do utilitarismo das regras. "O que aconteceria se todos realizassem a acção?" é uma questão que o utilitarismo das regras pensa ser importante na avaliação das propriedades morais de uma acção. A questão de Kant é diferente; ele pergunta "Podem todos realizar a acção?" ou "Posso desejar que todos realizem a acção?" Embora as questões sejam diferentes, problemas semelhantes derivam do facto de haver múltiplas maneiras de descrever qualquer acção.
O critério de universalizabilidade parece plausível se considerarmos seriamente a analogia entre as leis morais e as leis científicas. Ambas têm de ser universais e impessoais. Mas outra comparação entre estas duas ideias diminui a plausibilidade de pensar que o critério de universalizabilidade tem condições para resultar.
As leis científicas têm de ser universais mas a explicação verdadeira de um fenómeno específico não pode ser derivada a priori. Por si só, a razão não pode dizer-me por que descreve a Terra uma órbita elíptica em torno do Sol, ainda que eu tenha o pressuposto de que a explicação deste facto tenha de ser verdadeira para todos os sistemas planetários semelhantes. Por outro lado, Kant defendeu que numa situação específica o que está certo fazer é ditado pela exigência racional de universalizabilidade.
Evidentemente que um facto importante acerca da moralidade é que, se uma acção particular está certa para mim, então está certa para qualquer pessoa numa situação semelhante. Esta é a ideia de que as leis morais — os princípios gerais que ditam o que está certo fazer — são universais e impessoais. O problema é que esta exigência não é suficiente para mostrar que generalizações morais são verdadeiras. Se assim é, a analogia entre leis científicas e leis morais tem implicações diferentes daquelas que Kant tentou desenvolver.
Kant: as pessoas são fins em si
Kant pensava que uma importante consequência do teste de universalizabilidade é que devemos tratar as pessoas como fins em si e não como meios. Kant queria dizer com isto que não devemos tratar as pessoas como meios para fins que elas racionalmente não poderiam consentir. Pensava que este princípio proíbe a escravatura. E diria o mesmo acerca da punição de alguém por um crime que não cometeu, ainda que isso aplacasse uma perigosa multidão. A teoria kantiana parece fornecer bases mais sólidas do que o utilitarismo para a ideia de que as pessoas têm direitos que não podem ser ultrapassados por considerações de utilidade. Não é a maximização da felicidade que está em jogo na teoria de Kant. É de esperar que a razão por si só dite princípios de equidade, imparcialidade e justiça.
Embora Kant preceda os utilitaristas, a sua teoria parece ter sido concebida para corrigir os defeitos do utilitarismo. A ideia de que as pessoas têm direitos é uma correcção plausível da ideia de que qualquer aspecto da vida de uma pessoa tem de passar o teste da maximização da felicidade global. Todavia, a teoria de Kant enfrenta sérias dificuldades lógicas. E o carácter absoluto das suas declarações parece ser bastante questionável para as convicções morais fortemente defendidas pelo senso comum. Será de todo plausível pensar que as promessas devem ser sempre cumpridas — que nunca devemos dizer uma mentira — sejam quais forem as consequências? Para além de sublinhar os defeitos nos argumentos que justificam estas ordens, devemos também sublinhar que estas exigências morais não devem receber em princípio uma justificação incondicional.
Se o critério da universalizabilidade falha a tentativa de estabelecer um procedimento para decidir que acções estão certas, e se os juízos morais de Kant acerca do cumprimento de promessas, suicídio e outras acções são implausíveis, que méritos tem a sua teoria ética? Muitos filósofos vêem na descrição do ponto de vista moral uma das contribuições notáveis e duradouras de Kant. Os desejos e as preferências podem impelir-nos a agir e estas acções podem produzir diferentes combinações de prazer e dor. Todavia, esta sequência de acontecimentos ocorre em criaturas — provavelmente vacas e cães — às quais nenhum golpe de imaginação atribui moralidade. O que distingue então a acção motivada pela moralidade da acção guiada pela inclinação, seja benevolente ou malevolente?
A esta pergunta Kant respondeu que a acção moral é guiada por princípios que têm um tipo especial de justificação racional. A linguagem comum talvez seja um pouco enganadora, uma vez que podemos falar do desejo de agir moralmente e do desejo de ter prazer ou vantagens como se ambos tivessem a mesma base. Mas Kant não pensava na determinação de agir por dever como uma inclinação entre outras. Ele via a moralidade e a inclinação como esferas inteiramente diferentes. Para identificar a coisa moralmente certa a fazer, a pessoa terá de pôr de lado as suas inclinações. Fixando a nossa atenção em leis universais e impessoais, podemos ter a esperança de diminuir o grau em que o interesse próprio distorce o nosso juízo a respeito do que devemos fazer.
Elliott Sober

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