Parte II
Além disso, os deontologistas moderados que explicam as opções em termos de custo para o agente estão sujeitos a uma objecção delicada. Se, por um lado, o custo para o agente pode prevalecer sobre o bem, e, por outro lado, o bem pode prevalecer sobre as restrições, por que não há-de o custo para o agente poder prevalecer sobre as restrições em algumas circunstâncias? Deste modo, o deontologista moderado vê-se ameaçado pela conclusão pouco aliciante de que uma restrição pode ceder em virtude de a sua observância representar um custo muito elevado para o agente. A esta luz, poder-se-ia alegar que é permissível um agente assassinar uma pessoa inocente quando a existência dessa pessoa constitui um enorme obstáculo para o seu projecto de vida.
Além de se decidir quanto à força das restrições, o deontologista tem de delimitar o seu alcance, pois a ausência de uma delimitação apropriada produz a ameaça de uma ética paralisante — interpretada sem quaisquer limites, a restrição contra maltratar, por exemplo, proibiria toda a conduta que pudesse dar origem de alguma maneira à morte de uma pessoa inocente. As tentativas de clarificação do alcance das restrições mais debatidas assentam em grande medida nas distinções fazer/permitir e intenção/previsão.
Quem se baseia na primeira distinção delimita a restrição contra maltratar de uma maneira que resulta na proibição de matar pessoas inocentes, mas não na proibição de deixar morrer pessoas inocentes. No entanto, a diferença entre matar e deixar morrer — ou, de um modo mais geral, entre infligir um mal a alguém e permitir que alguém sofra um mal — está longe de ser clara e tem-se revelado resistente à análise. Por exemplo, o médico que desliga a máquina do paciente em coma irreversível está a matá-lo ou a deixá-lo morrer? Além disso, as análises mais promissoras têm alimentado um forte cepticismo quanto à relevância moral da distinção fazer/permitir. A análise de Jonathan Bennett (1995), por exemplo, diz-nos aproximadamente o seguinte: afirmar que um agente provoca um dado resultado é dizer que entre todos os seus movimentos possíveis relativamente poucos dariam origem ao resultado; afirmar, pelo contrário, que o agente permite que o resultado se verifique é dizer que entre os seus movimentos possíveis quase todos dariam origem a esse resultado. Se a distinção fazer/permitir consiste essencialmente nesta diferença, como poderá alguma vez ser moralmente significativa?
Para alguns deontologistas, como Thomas Nagel (1986), a chave para uma delimitação apropriada das restrições reside antes na distinção intenção/previsão. Esta distinção separa dois tipos de efeitos da conduta: por um lado, temos aqueles efeitos que o agente tem a intenção de produzir, isto é, os efeitos pretendidos como um fim ou como um meio para outro fim; por outro lado, temos os efeitos que o agente acredita que resultarão da sua conduta ainda que não tenha a intenção de os produzir, isto é, os efeitos meramente previstos. Os deontologistas que subscrevem a relevância moral desta distinção pensam pelo menos o seguinte: em igualdade de circunstâncias, é mais objectável pretender um mal enquanto meio para um bem do que dar origem a um mal prevendo-o como simples efeito colateral do meio utilizado para alcançar o bem. Esta tese, aliás, constitui o elemento mais controverso da Doutrina do Duplo Efeito. Quem, como Nagel, delimita o alcance das restrições em conformidade com esta doutrina pensa que para violar a restrição contra maltratar é preciso infligir intencionalmente um mal a alguém inocente. No contexto da guerra, para indicar um exemplo muito discutido, o agente que bombardeia civis de modo a apressar a rendição do inimigo viola esta restrição, mas o agente que pretende apenas bombardear alvos militares para o mesmo fim não a violará mesmo que saiba que o bombardeamento resultará na morte de civis. Tal como a distinção fazer/permitir, também a distinção intenção/previsão tem resistido às tentativas de clarificação, sobretudo devido à dificuldade de encontrar uma maneira satisfatória de demarcar aquilo que é pretendido enquanto meio daquilo que resulta do meio escolhido como simples efeito colateral. E a relevância moral da distinção também tem sido fortemente questionada, sendo de destacar a este respeito as discussões de Kagan (1989) e Bennett (1995). (O primeiro, aliás, desenvolve a crítica mais aprofundada e sistemática a todo o programa deontológico de justificar restrições e opções.)
Note-se que, ao limitar o alcance das restrições através das distinções indicadas, o
deontologista não está a afirmar que é permissível dar origem a quaisquer males desde que estes sejam meramente permitidos ou meramente previstos. Se um curso de acção viola uma restrição, então é pelo menos prima facie errado e a simples ponderação das consequências não é suficiente para o tornar permissível, mas um curso de acção que não viola qualquer restrição pode ainda assim ser profundamente errado por outras razões — por exemplo, por dar origem a um mal significativo facilmente evitável.
Além da restrição geral contra maltratar, os deontologistas costumam reconhecer restrições contra mentir e contra quebrar promessas, bem como restrições decorrentes de compromissos e papéis relativos ao próprio agente. A força destas restrições é explicada independentemente da utilidade da sua observância geral. Um problema central é o de saber se algumas destas restrições podem traduzir-se em deveres do agente para consigo próprio; outro problema importante, decisivo para clarificar uma questão como a da moralidade da eutanásia, é o de saber se em algumas circunstâncias o consentimento pode fazer cessar força de uma restrição.
Pode-se distinguir duas estratégias gerais para justificar uma visão deontológica da ética. A primeira consiste em procurar um fundamento adequado para as restrições e opções, isto é, em mostrar que estas decorrem de princípios mais gerais racionalmente irrecusáveis. Apelando à noção de respeito pelos outros enquanto criaturas racionais, muitos deontologistas contemporâneos, como Nozick, Fried e Donagan, têm encontrado em Kant uma fonte permanente de inspiração. O contratualismo, embora por tradição esteja mais associado à filosofia política, também tem inspirado alguns esforços de encontrar fundamentos para a deontologia. A segunda estratégia de justificação — que, note-se, não é incompatível com a primeira — consiste em tentar mostrar que temos de adoptar uma perspectiva deontológica para gerar um acordo com as nossas intuições morais relativas a situações actuais ou hipotéticas. O influente ensaio de Judith Thomson (1985) exemplifica esta estratégia e mostra-nos como os próprios deontologistas divergem significativamente entre si quanto à maneira adequada de obter tal acordo.
Pedro Galvão
Além de se decidir quanto à força das restrições, o deontologista tem de delimitar o seu alcance, pois a ausência de uma delimitação apropriada produz a ameaça de uma ética paralisante — interpretada sem quaisquer limites, a restrição contra maltratar, por exemplo, proibiria toda a conduta que pudesse dar origem de alguma maneira à morte de uma pessoa inocente. As tentativas de clarificação do alcance das restrições mais debatidas assentam em grande medida nas distinções fazer/permitir e intenção/previsão.
Quem se baseia na primeira distinção delimita a restrição contra maltratar de uma maneira que resulta na proibição de matar pessoas inocentes, mas não na proibição de deixar morrer pessoas inocentes. No entanto, a diferença entre matar e deixar morrer — ou, de um modo mais geral, entre infligir um mal a alguém e permitir que alguém sofra um mal — está longe de ser clara e tem-se revelado resistente à análise. Por exemplo, o médico que desliga a máquina do paciente em coma irreversível está a matá-lo ou a deixá-lo morrer? Além disso, as análises mais promissoras têm alimentado um forte cepticismo quanto à relevância moral da distinção fazer/permitir. A análise de Jonathan Bennett (1995), por exemplo, diz-nos aproximadamente o seguinte: afirmar que um agente provoca um dado resultado é dizer que entre todos os seus movimentos possíveis relativamente poucos dariam origem ao resultado; afirmar, pelo contrário, que o agente permite que o resultado se verifique é dizer que entre os seus movimentos possíveis quase todos dariam origem a esse resultado. Se a distinção fazer/permitir consiste essencialmente nesta diferença, como poderá alguma vez ser moralmente significativa?
Para alguns deontologistas, como Thomas Nagel (1986), a chave para uma delimitação apropriada das restrições reside antes na distinção intenção/previsão. Esta distinção separa dois tipos de efeitos da conduta: por um lado, temos aqueles efeitos que o agente tem a intenção de produzir, isto é, os efeitos pretendidos como um fim ou como um meio para outro fim; por outro lado, temos os efeitos que o agente acredita que resultarão da sua conduta ainda que não tenha a intenção de os produzir, isto é, os efeitos meramente previstos. Os deontologistas que subscrevem a relevância moral desta distinção pensam pelo menos o seguinte: em igualdade de circunstâncias, é mais objectável pretender um mal enquanto meio para um bem do que dar origem a um mal prevendo-o como simples efeito colateral do meio utilizado para alcançar o bem. Esta tese, aliás, constitui o elemento mais controverso da Doutrina do Duplo Efeito. Quem, como Nagel, delimita o alcance das restrições em conformidade com esta doutrina pensa que para violar a restrição contra maltratar é preciso infligir intencionalmente um mal a alguém inocente. No contexto da guerra, para indicar um exemplo muito discutido, o agente que bombardeia civis de modo a apressar a rendição do inimigo viola esta restrição, mas o agente que pretende apenas bombardear alvos militares para o mesmo fim não a violará mesmo que saiba que o bombardeamento resultará na morte de civis. Tal como a distinção fazer/permitir, também a distinção intenção/previsão tem resistido às tentativas de clarificação, sobretudo devido à dificuldade de encontrar uma maneira satisfatória de demarcar aquilo que é pretendido enquanto meio daquilo que resulta do meio escolhido como simples efeito colateral. E a relevância moral da distinção também tem sido fortemente questionada, sendo de destacar a este respeito as discussões de Kagan (1989) e Bennett (1995). (O primeiro, aliás, desenvolve a crítica mais aprofundada e sistemática a todo o programa deontológico de justificar restrições e opções.)
Note-se que, ao limitar o alcance das restrições através das distinções indicadas, o
deontologista não está a afirmar que é permissível dar origem a quaisquer males desde que estes sejam meramente permitidos ou meramente previstos. Se um curso de acção viola uma restrição, então é pelo menos prima facie errado e a simples ponderação das consequências não é suficiente para o tornar permissível, mas um curso de acção que não viola qualquer restrição pode ainda assim ser profundamente errado por outras razões — por exemplo, por dar origem a um mal significativo facilmente evitável.
Além da restrição geral contra maltratar, os deontologistas costumam reconhecer restrições contra mentir e contra quebrar promessas, bem como restrições decorrentes de compromissos e papéis relativos ao próprio agente. A força destas restrições é explicada independentemente da utilidade da sua observância geral. Um problema central é o de saber se algumas destas restrições podem traduzir-se em deveres do agente para consigo próprio; outro problema importante, decisivo para clarificar uma questão como a da moralidade da eutanásia, é o de saber se em algumas circunstâncias o consentimento pode fazer cessar força de uma restrição.
Pode-se distinguir duas estratégias gerais para justificar uma visão deontológica da ética. A primeira consiste em procurar um fundamento adequado para as restrições e opções, isto é, em mostrar que estas decorrem de princípios mais gerais racionalmente irrecusáveis. Apelando à noção de respeito pelos outros enquanto criaturas racionais, muitos deontologistas contemporâneos, como Nozick, Fried e Donagan, têm encontrado em Kant uma fonte permanente de inspiração. O contratualismo, embora por tradição esteja mais associado à filosofia política, também tem inspirado alguns esforços de encontrar fundamentos para a deontologia. A segunda estratégia de justificação — que, note-se, não é incompatível com a primeira — consiste em tentar mostrar que temos de adoptar uma perspectiva deontológica para gerar um acordo com as nossas intuições morais relativas a situações actuais ou hipotéticas. O influente ensaio de Judith Thomson (1985) exemplifica esta estratégia e mostra-nos como os próprios deontologistas divergem significativamente entre si quanto à maneira adequada de obter tal acordo.
Pedro Galvão
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