terça-feira, 15 de novembro de 2016

Livre-arbítrio, Determinismo e Responsabilidade Moral

Temos ou não temos livre-arbítrio? Se não tivermos livre-arbítrio isto significa que agimos como “robots, ou autómatos, sem escolhas próprias”[1], vivemos a agimos de acordo com aquilo que está programado e previsto. Havendo a possibilidade do ser humano viver num mundo assim, onde toda a ação humana fosse predeterminada, poderíamos ser programados para viver uma vida onde praticássemos apenas e só boas ações. Num mundo assim, não haveria responsabilidade moral, nem as nossas ações seriam genuinamente boas, porque já estariam determinadas.
Será que nos é possível fazer uma coisa diferente daquilo que realmente fiz? Será que em função de todas as escolhas possíveis a minha decisão já está determinada? Até ao momento em que escolho nada determina irrevogavelmente a minha escolha?[2]
Se, por um lado, existem coisas que estão determinadas à partida (o sol nascer amanhã), por outro, existem pessoas que acreditam que nunca é possível fazer uma escolha diferente daquilo que de facto fizemos, ou seja, não é possível ter escolhido de outra forma. O “total de experiências, desejos, e conhecimentos de uma pessoa, a sua constituição hereditária, as circunstâncias sociais e a natureza da escolha com que a pessoa se defronta, em conjunto com outros fatores dos quais não pode ter conhecimento, combinam-se todos para fazer com que uma ação particular seja inevitável nessas circunstâncias”[3], esta perspetiva é o determinismo. Não se trata aqui de uma questão de previsibilidade, mas da impossibilidade de ter acontecido de outra maneira, ou seja, “existem leis na Natureza”[4] que determinam a forma como a ação irá decorrer, não havendo possibilidade de acontecer de outra forma.
Para a perspetiva determinista, o conjunto de leis e de circunstâncias faz com que a escolha do agente seja um resultado pré-determinado, não poderia ser de outra forma. Ao aceitarmos esta perspetiva estaríamos a colocar de lado a responsabilidade moral das nossas ações, ou seja: será possível sermos responsáveis por uma ação que já estava determinada acontecer desse forma e não poderia acontecer de outra forma? Segundo Thomas Nagel “não faria de modo algum sentido condenar fosse quem fosse por fazer alguma coisa má ou elogiá-lo por fazer alguma coisa boa”[5]. Para a perspetiva determinista, quer o elogio quer a condenação não faria qualquer sentido tendo em conta o carácter da inevitabilidade das ações humanas, “tal como a chuva não pode ser elogiada ou condenada por cair”[6].
Ao aceitarmos o determinismo por verdadeiro estamos a ameaçar a responsabilidade e a possibilidade de, livremente, entre as escolhas possíveis, podermos decidir por uma delas.
Contudo, há quem considere que o determinismo é verdadeiro e que ninguém pode ser culpado ou elogiado. Há, igualmente quem considere que o determinismo é verdadeiro e que faz sentido elogiar as boas ações e condenar as más, ou seja, “o facto de alguém estar determinado à partida a portar-se mal não quer dizer que não se tenha comportado mal”[7]. Mas fará algum sentido condenar alguém por algo que não lhe era impossível não fazer? Por outro lado, como será possível “compreender de que modo podemos fazer aquilo que não fazemos”?[8] Será que tudo o que o ser humano faz é determinado pelas circunstâncias em que se encontra e pelas suas condições psicológicas?
Isto significaria que todos pensamos e atuamos da mesma maneira. Mas a verdade é que nem todas as pessoas atuam da mesma maneira perante a mesma dificuldade, nem cada um de nós atua da mesma maneira perante o mesmo problema. Agimos e reagimos de acordo com as circunstâncias, escolhemos e decidimos por determinado caminho e tornamo-nos responsáveis por aquilo que fazemos, de bom e de mau.
Se aceitamos a perspetiva determinista de que tudo está determinado por leis da natureza poderíamos fazer a pergunta pelo mal: de onde vem o mal que fazemos? Seremos realmente responsáveis por aquilo que fazemos? Será possível falar de condenação ou imputabilidade sabendo que o sujeito estava determinado a agir daquela forma e não poderia escolher outra? A inevitabilidade das ações humanas opõe-se assim à possibilidade, não era possível agir de outra forma. Será difícil aceitar esta perspetiva, porque ora nos sentimos encurralados oura nos sentimos marionetas.
Contudo, situada entre estas duas perspetivas, o determinismo e o livre-arbítrio, encontra-se a dimensão ética do agir humano, sobretudo no que à responsabilidade diz respeito. Neste sentido, se as pessoas não têm livre-arbítrio então não são responsáveis pelo que fazem, porque tudo estaria determinado a acontecer dessa forma. Se, por outro lado, aceitamos que temos livre-arbítrio então demos ser responsáveis pelas nossas ações, razão pela qual elas podem ser censuráveis ou louváveis[9]
O facto de dizermos e optarmos pela perspetiva determinista não significa que na mesma não se possa falar de responsabilidade, porque, mesmo que tudo esteja determinado, mesmo que as minhas ações sejam inevitáveis, cada ser humano não deixa de pensar, de ter emoções e intenções e porque “frequentemente temos razões para o que fazemos e isto não deixará de ser assim se não tivermos livre-arbítrio”[10]. Desta forma, a negação do livre-arbítrio e a opção pelo determinismo não significa o fim da ética, porque somos capazes de deliberar, porque “pensamos sobretudo naquilo que queremos e no modo como diversas ações conduziriam a resultados diferentes”[11].
James Rachels apresenta-nos três condições para que uma ação responsável seja: censurável quando – “1) temos de ter realizado o ato em questão, 2) o ato tem de ser errado em algum sentido e 3) temos de não ter uma desculpa para o ter realizado”[12]; será louvável quando – “1) realizou de facto esse ato, 2) foi bom o que tenha realizado e 3) condições eliminadoras de crédito”[13].
A noção comum e importante nas duas considerações de responsabilidade é a noção de desculpa, sendo que quando realizamos ações que mereçam ser louvadas, é difícil encontra uma desculpa para tal, talvez porque as pessoas não evitem ser louvadas. O autor enumera um conjunto de seis desculpas legítimas: engano; acidente; coerção; ignorância; insanidade. A desculpa “tira o peso de cima quando fizemos algo de mal”[14].
Apesar de considerarmos importante salientar esta noção de responsabilidade ao abordarmos o problema do livre-arbítrio, esta mesma noção será, posteriormente, retomada na unidade que versará sobre a dimensão ética (a dimensão ético-política: análise e compreensão da experiência convivencial).
Por fim, ao abordarmos o tema do livre-arbítrio parece-nos importante considerar as condicionantes das ações humanas, queremos com isto dizer que apesar de condicionadas não significa necessariamente que as nossas ações estejam determinadas. Estas condicionantes da ação, como os fatores físico-biológicos, histórico-culturais e psicológicos fazem parte do nosso dia a dia e levantam a questão de se saber se, em função destas condicionantes, se agimos ou não livremente. Será que a existência destas condicionantes determina a ação humana e impede o ser humano do seu livre-arbítrio? A estas perguntas surgem, então, as três possíveis respostas: determinismo radical, determinismo moderado e libertismo. Embora enunciadas nesta aula estas respostas são para ser analisadas e aprofundadas nas aulas seguintes. Será, precisamente, a desconstrução do argumento determinista, pela negação da primeira (Libertismo) e da segunda premissa (Determinismo moderado) que poderá ser formulado da seguinte forma: “(1) Tudo o que fazemos é causado por forças que não controlamos. (2) Se as nossas ações são causadas por forças que não controlamos, então não agimos livremente. (3) Logo, nunca agimos livremente.[15]
Júlio Maria



[1] WARBURTON, Nigel, Elementos Básicos de Filosofia, Coleção Filosofia Aberta, Ed. Gravida, Lisboa, 1998, p. 48.[2] Cf. NAGEL, Thomas, Que quer dizer tudo isto? Uma Iniciação à Filosofia, Coleção Filosofia Aberta, Ed. Gravida, Lisboa, 1997, p. 48.[3] Idem, Ibidem, p, 49.[4] Idem, Ibidem, p. 50.[5] Idem, Ibidem, p. 51.[6] Idem, Ibidem, p. 52.[7] Idem, Ibidem, p. 52.[8] Idem, Ibidem, p. 54.[9] RACHELS, James, Problemas da Filosofia, Coleção Filosofia Aberta, Ed. Gravida, Lisboa, 2009, p. 200-203.[10] Idem, Ibidem, p. 197.[11] Idem, Ibidem, p. 198.[12] Idem, Ibidem, p. 201.[13] Idem, Ibidem, p. 202.[14] Idem, Ibidem, p. 201.[15] Idem, Ibidem, p. 182.

quarta-feira, 9 de novembro de 2016

LIBERDADE

Porque razão está a ler isto?
Porque quer ler. Mesmo que alguém lhe tenha dito para o fazer, não faz diferença: se não quisesse fazer o que lhe disseram, não estaria a ler isto. Mas está a ler. Portanto, em qualquer dos casos, quer queira simplesmente ler quer lhe tenham dito para ler e agora está a ler porque quer fazer o que lhe disseram, está a fazer o que quer. Mas ao ler estará a agir em liberdade? Isto é, será que depende de si o facto de estar a ler?
A resposta pode parecer óbvia. Está a fazer aquilo que quer. Logo, está a fazê-lo em liberdade. Mas será que aquilo que quer depende de si? Quando está a fazer aquilo que quer, está o leitor em controlo – controla os seus quereres – ou será que são os seus quereres que o controlam?
Suponha que tinha ordens para ler isto. Neste caso, iria rapidamente perceber que não tem liberdade, que estaria sob o controlo das ordens. Uma ordem é uma instrução, normalmente verbal. Mas suponha que as ordens não eram dadas sob a forma de instruções mas antes sob a forma de anseios directos que o faziam agir de determinada forma.
Estar sob o controlo de anseios seria mais subtil do que ser controlado por instruções verbais, pois poderia facilmente pensar que os anseios estavam sob o seu próprio controlo. Poderia fingir que esses anseios dependiam de si. Poderia até chamar-lhes quereres. Quando sentia o impulso para fazer X, poderia dizer para si próprio “Eu quero fazer X”. Poderia assim inteligentemente esconder de si próprio o facto de que seja lá o que for o que impulsiona a agir (seja um programa interno ao qual não tem acesso directo ou um programador externo) se encontra escondido porque o leitor tem quereres em vez de ordens. Para o levar a ler isto, por outras palavras, o programa enviar-lhe-ia o querer – uma instrução não verbal – como uma forma de o levar a agir se,m que se apercebesse disso. Neste caso, será que o que o leitor quer depende de si? Seria livre? Parece que não. Teria no máximo apenas a ilusão da liberdade. Fazer o que quer iria mascarar o facto de os seus quereres estarem a controlá-lo, e não o contrário.
Não estará o leitor exactamente nesta situação? O leitor não faz os seus quereres, apenas os tem. Chegam-lhe à sua consciência despoletando vários comportamentos. Mas, se não escolhemos os nossos quereres e se os nossos quereres determinam as nossas escolhas e as nossas escolhas determinam as nossas acções, então, em última análise, as nossas acções não dependem de nós, e, logo, parece que não as executamos em liberdade. Portanto, mesmo que ao ler isto neste momento esteja a fazer aquilo que quer, dado que os seus quereres não dependem de si, ler isto também não depende de si e, assim, parece que não está a ler isto em liberdade.
Suponha-se que, contudo, quer e não quer fazer algo – por exemplo, que quer comer chocolate e ao mesmo tempo também não quer comer chocolate, isto é, que quer resistir ao seu desejo de comer chocolate. O que irá fazer? Bom, qual é o querer mais forte? Irá agir – tem de agir – de acordo com o seu querer mais forte. Assim, o seu comportamento – seja lá o que for que acabe por fazer – será apenas um mero produto de um querer suplantar outro.
Mas se continua a achar que tem liberdade, então pergunte-se a si próprio: se é livre, quando começou a sê-lo? Pois, se é livre agora, deve ter havido uma primeira acção livre. Certamente que não nasceu livre. Quando acabou de nascer reagiu ao ambiente à sua volta de forma basicamente pré-programada. Tal como não escolheu ter dois olhos, um nariz, um cérebro, cada um dos seus membros e assim por diante – nenhuma desta coisas dependeu de si – também não escolheu como reagir à luz, ao calor, à fome, à dor, ou mesmo à cara sorridente da sua mãe. Todos nós iniciámos a vida sem qualquer liberdade. Assim, as nossas acções não podem de modo algum ser livres a menos que tenha havido uma primeira acção livre executada algum tempo depois de termos nascido. Quando ocorreu a sua primeira acção livre? Se não pode ter executado uma primeira acção livre, então também não pode ter executado uma segunda acção livre, ou uma terceira e assim por diante até à sua acção presente de ler estas palavras.
KOLAK, Daniel e MARTIN, Raymond, Sabedoria sem respostas – uma breve introdução à filosofia, 2004. Lisboa: Temas e Debates, pp. 43-47

A distinção entre manipulação e persuasão. Os dois usos da retórica.



O primeiro capítulo da obra de Nigel Warburton – Uma pequena história de filosofia–ao se referir a Sócrates fá-lo como ‘homem que perguntava’[1]. Sócrates era assim conhecido, como aquele que fazia perguntas, que perturbava, daí o facto de se considerar, como o regere Nigel, como um ‘moscardo’, aquele inseto que constantemente incomoda. Esta característica, de alguém que constantemente pergunta, acompanhou Sócrates. Contudo, a razão das suas perguntas tinha como objetivo desconstruir o os pensamentos que as pessoas tinham acerca das “suposições que serviam de base para a sua vida”[2]. Para Sócrates, a verdadeira sabedoria não se reduzia ao conhecimento de muitos factos ou saberes práticos, mas em entender a verdadeira natureza do nosso ser e os limites do nosso próprio saber[3]. É, precisamente nisto que consiste o princípio da douta ignorância, cuja retórica, ao contrário dos Sofistas, possui três características fundamentais: a ironia (‘fingimento necessário’; seria a atitude de acolher como certas as ideias dos outros, combatendo a ideia de certezas infalíveis), a maiêutica (poderíamos dizer que a maiêutica seria o anexo da ironia que além da desconstrução das certezas infalíveis visa a ajuda na descoberta da verdade) e o diálogo (que engloba a ironia e a maiêutica, é o lugar da atividade filosófica).
Tal foi a importância dada por Sócrates ao diálogo que não deixou nada escrito, sendo que aquilo que sabemos acerca das suas ideias chegou-nos através do seu discípulo, Platão. Razão pela qual nem sempre é fácil fazer a distinção, porque “não sabemos se estava a escrever o que realmente Sócrates disse ou se estava a colocar as suas próprias ideias na boda de um personagem que ele chamou de ‘Sócrates’”[4].
E se Sócrates não deixou nada escrito, do mesmo modo muito pouco há a dizer acerca dos Sofistas, ou melhor, muito pouco há a dizer acerca das suas teorias porque apenas se conhecem textos fragmentários dos mesmos. Há é muitos textos de filósofos que os refutaram e são esses textos que servem de base para a sua compreensão. Será justa esta distinção entre sofistas e filósofos, uma vez que apenas possuímos parte dos seus textos, cujas ideias poderiam jogar em sua defesa?
            Como nos refere GilberRomeyer-Dherbey o termo ‘sofista’ designa ‘sábio’, mas num sentido alterado ou deturpado do termo, significa possuidor de uma falsa sabedoria, de “um falso saber, não procurando senão enganar, e fazendo, para isso um considerável uso do paralogismo”[5], daí que o «sofisma» será sinónimo de um falso raciocínio.
            Gilber apresenta três características dos sofistas: primeiro, porque se tornaram os educadores da Grécia depois dos poetas e que dominavam muito bem a lógica e a argumentação e, por isso, não se trataria apenas de ordenar, mas de persuadir e explicar; segundo, porque se tornaram ‘prisioneiros do saber’, cuja preocupação não seria a transmissão do saber mas a formação política específica de determinados cidadãos; terceiro, tornaram-se ‘pensadores itinerantes’, daqui advém não só o facto da livre circulação do pensamento, mas, igualmente, a caraterística mercantilizante do mesmo[6].
            O que une e distingue, precisamente, Sócrates e os Sofistas é a retórica, ou melhor, o uso que que se faz da retórica. Pelas razões atrás referidas poderíamos classificar os Sofistas como um exemplo de um mau uso da retórica e, por outro lado, poderíamos classificar Sócrates como um exemplo de um bom uso da retórica.
            Esta distinção é reforçada por aquilo que Michel Meyer ao afirmar que “o sofista era uma espécie de advogado que podia fazer trocadilhos sobre os diversos sentidos das palavras e dos conceitos se isso servisse à sua tese, quer fosse justa ou não. Longe de assentar no carácter moral do orador, a sofística podia vender-se a todas as causas (…)”[7]. A contrastar com a sofística desenvolve-se a filosofia, enquanto procura da verdade pela discussão dos saberes, pelo debate e pelo diálogo.
            Mas, então, o que é que caracteriza com propriedade a retórica, do que é que ela se ocupa?
            Meyer afirma que, primeiramente, a retórica surgiu como uma “técnica de persuasão”[8], que quando alheia à ‘arte oratória e à eloquência pública’ desemboca “forçosamente na manipulação, na ideologia, na propaganda e na publicidade”. Plasmam-se aqui os dois usos da retórica: o que visa a persuasão e o que visa a manipulação. Estes dois usos da retórica são distinguidos por Meyer através daquilo que ele denomina de ‘retórica branca e retórica negra’[9], respetivamente a que visa manipular e a que torna público os procedimentos e mecanismos. Os dois usos da retórica podem assim ser distinguidos: por um lado, “aquele que é crítico e lúcido sobre os procedimentos de discurso, e [por outro] aquele que visa ofuscar o interlocutor, ou em todo o caso adormecê-lo”.
            Situada no discurso e no uso que se faz do mesmo, a retórica será mais do que uma ‘arte de bem falar, de mostrar eloquência diante de um público’, de mostrar ou de ocultar o questionamento, será antes um jogo de palavras ou uma troca de argumentos. Meyer afirma que a retórica é a “negociação da distância entre os homens a propósito de uma questão, de um problema”[10].
            A retórica, enquanto negociação da distância, revela-secomo poder, como arte, como eloquência suscetível de ser bem (persuasão) ou mal usada (manipulação). Em razão da sua definição e porque todo o ser humano tem necessidade de expor e exprimir as suas ideias, de ouvir e, por vezes, de se saber defender, o estudo da retórica revela-se fundamental na disciplina de Filosofia. Porque se algumas vezes consentimos a manipulação é “verdade que por vezes a ingenuidade é grande e que certas épocas, por assim dizer cultivadas e escolarizadas, engendram e reforçam mesmo a ausência do sentido crítico e do questionamento em geral”[11].


[1]WARBURTON, Nigel, Uma pequena história de filosofia, Ed. L&PM, 2012, p. 3. [2] Idem, Ibidem, p. 4. [3] Cf. Idem, Ibidem, p. 4. [4] Idem, Ibidem, p. 5. Razão pela qual nos conteúdos desta aula aparece figurada a perspetiva dos Sofistas, de Sócrates e de Platão, pela razão de ser difícil distinguir o pensamento de um e de outro. [5]ROMEYER-DHERBEY, Gilbert, Os Sofistas, Biblioteca Básica de Filosofia, Ed. 70, Lisboa, 1986, p. 9.[6] Cf. Idem, Ibidem, pp. 10-11.[7]MEYER, Michel, Questões de retórica: linguagem, razão e sedução, p. 18.[8] Idem, Ibidem, p. 20.[9] Cf. Idem, Ibidem, pp. 46-51.[10] Idem, Ibidem, p. 27.[11] Idem, Ibidem, p. 50

terça-feira, 8 de novembro de 2016

ARGUMENTOS DE AUTORIDADE

É importante compreender claramente o que é um argumento de autoridade por dois motivos. Por um lado, porque se pensa por vezes que todos os argumentos de autoridade são falaciosos, o que é falso. Os argumentos de autoridade são elementos centrais do pensamento sem os quais o progresso do conhecimento seria impossível. Por outro lado, e contrariando a primeira ideia, porque é infelizmente comum, no ensino da filosofia, recorrer a argumentos de autoridade. Ora, dada a natureza desta disciplina, os argumentos de autoridade em filosofia são quase sempre falaciosos.
Um argumento de autoridade tem a seguinte forma lógica:

n disse que P.
Logo P.

Sendo n Aristóteles e P a frase “A Terra é plana” ficamos com o seguinte argumento: “Aristóteles disse que a Terra é plena. Logo, a Terra é plana”.
Desde os tempos de Galileu que os argumentos de autoridade são encarados como terrivelmente falaciosos, argumentos inacreditavelmente maus que só pessoas de obscuras inclinações religiosas ou filosóficas, que ainda não receberam a Iluminação da Ciência, podem aceitar. Mas isto é falso.
Na verdade, os argumentos de autoridade são imprescindíveis. Quantos de nós verificámos se os teoremas da matemática que nos ensinaram são realmente verdadeiros? Quantos de nós verificámos se as teorias da física que nos ensinaram são realmente verdadeiras? Quantos de nós verificámos se a segunda guerra mundial aconteceu realmente? A resposta a qualquer destas perguntas é “Muito poucos. E isto acontece porque o conhecimento por testemunho é uma parte importantíssima do conhecimento. Um professor de Biologia diz-nos que a teoria da evolução por selecção natural está hoje estabelecida; e nós acreditamos. Se tivermos de verificar tudo o que os nossos professores nos dizem para saber se é verdade, não conseguiremos aprender quase nada.
Os argumentos de autoridade são formas argumentativas que respondem precisamente a esta necessidade de nos apoiarmos no que os especialistas reconhecidos nos dizem sobre os temas da sua especialidade. Por isso, a primeira regra a que um argumento de autoridade tem de obedecer para poder ser bom é esta:
Regra 1: O especialista invocado (a autoridade) tem de ser um bom especialista da matéria em causa.
Esta é a regra violada no seguinte argumento de autoridade:

Einstein disse que a maneira de acabar com a guerra é ter um único governo mundial. Logo, a maneira de acabar com a guerra é ter um único governo mundial.

Dado que Einstein era um especialista em física, mas não em filosofia política, este argumento é falacioso – porque viola a Regra 1. Todavia, imaginemos que alguém substituía “Einstein” por “Marx” no argumento dado:
Marx disse que a maneira de acabar com a guerra era ter um único governo mundial. Logo, a maneira de acabar com a guerra é ter um único governo mundial.
É evidente que este argumento é falacioso, apesar de Marx ser realmente um especialista reconhecido em filosofia política. Neste caso, é falacioso porque viola outra regra:
Regra 2: Os especialistas da matéria em causa (as autoridades) não podem discordar significativamente entre si quanto à afirmação em causa.
Dado que os especialistas em filosofia política discordam entre si quanto à afirmação em causa, o argumento anterior é falacioso. Esta regra é de particular importância em filosofia. É devido a ela que quase todos os argumentos de autoridade em filosofia são falaciosos. Hegel discordou de Kant, que discordou de Descartes, que discordou de Aristóteles, que discordou de Platão. Poucas são as afirmações filosóficas substanciais que todos os filósofos aceitam e é por isso que não podemos usar a doutrina de Platão sobre os universais para sustentar a nossa doutrina sobre os universais, quando ambas são coincidentes. Fazer isto, ainda que com abundantes citações e muitos dispositivos que imitem a seriedade académica, não passa de uma falácia primária.
A tristemente célebre disputa de Galileu com a Igreja compreende-se agora melhor. Nunca se tratou de uma luta contra todos e quaisquer argumentos de autoridade, mas da validade de dois argumentos de autoridade usados pela Igreja:

Aristóteles disse que a Terra está imóvel. Logo, a Terra está imóvel.
A Bíblia disse que a Terra está imóvel. Logo, a Terra está imóvel.

Ambos os argumentos são falaciosos. O primeiro, porque nem todos os grandes especialistas da altura em astronomia, entre os quais o próprio Galileu, concordavam com Aristóteles – o argumento viola, portanto, a Regra 2. O segundo, porque a Bíblia é um conjunto de relatos de carácter não-científico, pelo que as afirmações nela contidas não têm qualquer relevância para a matéria em causa – o argumento viola, portanto, a Regra 1.
Imaginemos agora que alguém dizia a Einstein: “A sua teoria está errada, porque todos os especialistas concordam com Newton e a sua teoria é contrária à teoria de Newton”. Apesar de não parecer, trata-se de um argumento de autoridade.
Todos os grandes especialistas afirmam que a teoria de Einstein está errada. Logo, a teoria de Einstein está errada.
Qualquer pessoa poderia ter usado este argumento quando Einstein publicou pela primeira vez a teoria da relatividade restrita. A falácia deste argumento é mais subtil do que a violação das regas 1 e 2. Trata-se de um tipo diferente de falácia. Neste caso, acontece apenas que é o próprio argumento no seu todo que é derrotado pela força dos argumentos independentes que sustentam a teoria de Einstein. Podemos formular a regra violada do seguinte modo:
Regra 3: Só podemos aceitar a conclusão de um argumento de autoridade se não existirem outros argumentos mais fortes ou de força igual a favor da conclusão contrária.
Esta regra existe porque os seres humanos erram – incluindo os especialistas, e incluindo a totalidade dos especialistas, como a história da ciência e do pensamento mostra. Esta regra impede que os argumentos de autoridade “fechem” o pensamento, pois leva-nos a considerar outras razões para pensar que uma dada ideia é verdadeira ou falsa, independentemente da opinião unânime dos especialistas. Em suma, sem esta regra não se compreende a evolução da ciência e do pensamento, pois acontece frequentemente, como no caso de Einstein, que uma dada ideia é contrária ao que pensam os especialistas.
No caso do argumento de Einstein, a falácia consiste no simples facto do argumento de autoridade baseado em todos os especialistas em física ser mais fraco que os próprios argumentos físicos e matemáticos que sustentam a teoria de Einstein.
Considere-se agora o seguinte argumento:

O psiquiatra João Rico defende que toda a gente deve consultar um psiquiatra pelo menos três vezes por ano. Logo, toda a gente deve consultar um psiquiatra pelo menos três vezes por ano.
Imagine-se que todos os grandes especialistas concordam com João Rico, e que João Rico é reconhecidamente um grande especialista em psiquiatria. À luz da Regra 3 este argumento é relativamente fraco, pois há outros argumentos que colocam em causa a conclusão: dados estatísticos, por exemplo, que mostram que a percentagem de curas efectuadas pelos psiquiatras não é superior à cura aleatória, o que sugere que esta prática médica é mito diferente de outras práticas médicas, cujo sucesso é muitíssimo superior.
Todavia, é conveniente dispor de uma regra que, de forma mais directa, nos permita compreender a falácia deste argumento:
Regra 4: Os especialistas da matéria em causa (as autoridades), no seu todo, não podem ter fortes interesses pessoais na afirmação em causa.
Quando Einstein afirma que a teoria da relatividade é verdadeira, tem certamente algum interesse pessoal na sua teoria. Mas os outros físicos não têm qualquer interesse em que a teoria da relatividade seja verdadeira; pelo contrário, têm interesse em demonstrar que é falsa, pois nesse caso seriam eles a ficar famosos e não Einstein. O interesse de Einstein não é eliminável da investigação científica: é o interesse de ser o pai de uma teoria revolucionária. Por isso, os físicos de todo o mundo correram a testar a sua teoria, a tentar refutá-la, a verificar se as suas previsões ocorriam, etc. Mas se o mesmo cuidado não acontecer relativamente á afirmação do psiquiatra João Rico, algo de errado se passa – e o que se passa é que ao contrário do que acontece no caso de Einstein, nenhum psiquiatra tem interesse em refutar o que diz João Rico. E, por isso, o argumento de João Rico não tem qualquer valor – porque é a comunidade dos especialistas, no seu todo, que tem tudo a ganhar e nada a perder em concordar com João Rico.
Um aparente contra-exemplo à regra 4 é o seguinte:

O médico António Filho afirma que todas as pessoas devem fazer análises ao sangue uma vez por ano. Logo, todas as pessoas devem fazer análises ao sangue uma vez por ano.

Segundo a Regra 4 este argumento é falacioso, dado que os médicos têm interesses óbvios em que todas as pessoas façam análises uma vez por ano. Mas pode-se defender que este argumento não é falacioso, o que mostraria que a Regra 4 estaria errada.
A resposta a este contra-exemplo é a seguinte: Este argumento é realmente falacioso; só não parece falacioso se tivermos dispostos a aceitar a conclusão – mas do facto de um argumento ter uma conclusão verdadeira não se segue que o argumento é válido. Ora, não é a força da autoridade dos médicos que sustenta a verdade da conclusão do argumento, mas antes a força da investigação médica que mostra que muitas doenças podem ser evitadas a tempo se as pessoas fizerem análises ao sangue uma vez por ano. E a força dessa investigação médica depende inteiramente da seriedade académica da própria investigação – se os investigadores que procurarem mostrar o contrário forem afastados da investigação e tiverem dificuldades na publicação dos seus resultados em revistas especializadas então os resultados da investigação médica, no seu todo, não têm qualquer valor.
MURCHO, Desidério, O Lugar da Lógica na Filosofia, 2003. Lisboa: Plátano Editora, pp. 115-120