quinta-feira, 23 de fevereiro de 2017

Senso comum e conhecimento científico

Ao longo das últimas décadas é inegável o reconhecimento do avanço científico e tecnológico, surgindo várias coisas que têm mudado a forma de viver da natureza humana, os transportes, as comunicações, a vacinação, a bomba atómica. Nem todo o conhecimento científico tem sido benéfico, mas a ciência, com o seu método, tem vindo a ajudar a prever e descobrir fenómenos que até então pereceram longe do nosso conhecimento. Ao contrário do senso comum, do conhecimento proveniente das tradições, dos ditados ou provérbios que se mantém estático, o conhecimento científico demonstra a sua dinâmica e os seus resultados.

Estes resultados não brotam de um conhecimento ‘por autoridade’, conhecimento que seria imposto não pelo que afirmava, mas por quem o afirmava e que, por essa razão, seria considerado verdadeiro. Pelo contrário, brotam da necessidade de testes, de observações, em cujos resultados se pode apoiar a confiança, se pode considerar e ter por verdadeiro.
Contudo, os resultados da investigação científica não afetam apenas a nossa forma de estar no mundo, o nosso estilo de vida, afetam, igualmente, a forma como pensamos, uma vez que estes “moldaram as nossas crenças sobre o mundo, ao alterarem o que pensamos sobre nós próprios e sobre as diferenças entre os seres humanos e outros seres vivos na Terra”. Esta forma de pensarmos não apenas o mundo que nos rodeia, mas sobretudo pensar sobre nós próprios, sobre os problemas, as soluções, as opiniões, os erros, faz de todos nós “num sentido fraco (…) cientistas do dia-a-dia”.
Em muitas das nossas sociedades contemporâneas os cientistas são os especialistas, são os escolhidos para resolver determinados problemas emergentes. Mas em que especialistas confiar? A ciência é considerada por muitos como uma autoridade, dotada de uma importância e de uma responsabilidade especial. Mas qual é a verdadeira ciência? Qual será, então, o verdeiro conhecimento que nos permite estar no mundo, vencer as nossas limitações e avançar? Será que terá de haver uma demarcação entre o que consideramos senso comum e o conhecimento dito científico?
O primeiro passo será definir estes dois tipos de conhecimento. A ciência, por um lado, será “uma tentativa sistemática e organizada de compreender o mundo: de que é feito, como funciona e porquê”. Galileu Galilei refletiu sobre a natureza da ciência insistindo em três ideias fundamentais: a autonomia da ciência desligada da especulação filosófica e da revelação religiosa, contra todo o tipo de autoridade e tradição; defendeu um método próprio para fazer ciência (primeiro, a observação; segundo, a formulação das hipóteses; terceiro, recurso à experiência; quarto, confirmação das hipóteses); reservou, por fim, para a ciência o rigor e a precisão da linguagem matemática. Em função desta perspetiva, a ciência apresenta-se como “autónoma, metódica e rigorosa”. Contudo, aquilo que conhecemos da ciência são as suas aplicações práticas, melhor, o impacto que estas aplicações têm na vida do ser humano, o que por vezes nos leva a confundir a ciência e a tecnologia. Muito embora estas duas realidades andem par, “pois cada uma contribui para o avanço da outra”. Então, se a “atividade científica consiste essencialmente na investigação com vista a desenvolver teorias que expliquem a natureza da realidade”, pelo contrário, a tecnologia consiste “no resultado da aplicação dos conhecimentos obtidos pela ciência”.
Esta forma de entendermos a ciência e a tecnologia a ela aliada, faz-nos pensar o quanto esta se distancia do senso comum “baseado na experiência acumulada ao longo de gerações e motivado pela satisfação de necessidades básicas de sobrevivência”. O senso comum é aquele saber acumulado ao longo das gerações e transmitido ao longo das mesmas, pela tradição, pelas nossas autoridades como os pais e os avós que nos dão, através de uma linguagem muito própria, indicações práticas para o dia-a-dia, é orientado para o concreto, para o prático, para o imediato. Por exemplo, o senso comum diz-nos quando plantar determinada planta, até nos diz que determinada planta tem fins curativos ou propriedades curativas, mas raramente explica porquê. Este exemplo permite-nos não só reafirmar a distância entre o senso comum e o conhecimento científico, como nos permite, igualmente, afirmar que a há alguns aspetos em que parece que a ciência se serve do senso comum. Ou seja, as plantas que os antigos afirmavam ter poder curativo para determinadas doenças pode ser explicado, confirmado ou não, pela ciência.
Se o senso comum raras as vezes consegue encontrar uma explicação, como o afirmámos anteriormente, então a ciência tem “um caráter essencialmente teórico e explicativo, mas também pelo seu elevado grau de sistematização, pela forma metódica e organizada de formular teorias, e também pela sua atitude crítica com que estas são avaliadas” e, por todas estas caraterísticas, diverge e ‘está para lá’ do senso comum.
Ao afirmarmos todas estas caraterísticas que distinguem conhecimento científico do senso comum não quer dizer que a separação ou distinção entre ambos seja assim tão nítida. Isto deve-se ao facto de tantas conquistas científicas da humanidade que, foram objeto de um longo e profundo debate, hoje são tidas como certas e comumente aceites pelo senso comum. Usando o exemplo que atrás referimos da vacinação, a que hoje se reconhece e é comumente aceite os seus benefícios. Se o conhecimento científico por vezes parte do senso comum outras vezes há em que o senso comum aceita sem mais os dados oriundos do conhecimento científico.
Parece que o percurso até aqui percorrido nos leva a assumir e reconhecer por certo e verdadeiro apenas o conhecimento científico, mas se assim for, que valor terá o senso comum? Que valor terá um conhecimento impreciso, tendencialmente sujeito a erros, baseado nas práticas, com um caráter de utilidade e de credulidade notoriamente vincado?
A opinião dos filósofos quanto ao valor do senso comum variam. Ao destacarem a imprecisão, a superficialidade, os erros, a sua insuficiência para compreender os problemas da Natureza e do mundo, muitos filósofos negam a possibilidade do senso comum ser considerado conhecimento. Um dos filósofos que se situa nesta perspetiva é Descartes. Por outro lado, há quem considere a suficiência e amplitude do senso comum e por esta razão ele é “é um guia fundamental da vida e não pode ser dispensado”. Um dos filósofos que se situa nesta perspetiva é David Hume.
Em relação ao senso comum poderíamos afirmar que o conhecimento científico é a forma mais “bem-sucedida” de compreender, explicar e prever os fenómenos da Natureza e, por esta razão, o seu valor cognitivo é superior. Mas se o senso comum e o conhecimento científico partem ambos do factual ou empírico, como fazer a distinção séria entre ambos? A resposta a esta inquietação passará pela análise do ‘como’, ou seja, é preciso responder à pergunta: de que modo o conhecimento científico será apoiado pela experiência? A resposta a esta pergunta levar-nos-á à problemática do método.
Há quem defenda que existe uma continuidade entre o senso comum e o conhecimento científico, como se o senso comum fosse uma antecâmara para o conhecimento científico e este, por sua vez, assumisse uma função de melhoramento do próprio senso comum. Por exemplo, sabemos que a exposição ao sol pode queima a pele e pode até provocar cancro, mas não sabemos responder ao modo como isto acontece, daí a necessidade da ciência para responder a esta inquietação ou, sabemos que a vacinação faz bem, mas não sabemos como, aliás precisámos que a ciência antes tivesse intervindo, mas continuamos sem perceber como. Segundo Karl Popper “a ciência, a filosofia, o pensamento racional, toda deve partir do senso comum [o que nos permite chegar mais perto do ideal de que] (…) toda a ciência e toda a filosofia são senso comum esclarecido”. Se é fácil, por vezes, assumir e reconhecer esta continuidade entre o senso comum e o conhecimento científico, por outro lado há quem defenda uma acérrima descontinuidade, rutura entre um e outro tipo de conhecimento. Por exemplo, Bachelard afirma que a ciência se opõe definitiva e epistemologicamente ao senso comum, uma vez que este se funda nas opiniões, enquanto a ciência é uma construção. Para este autor é, então necessário, romper com todo o conhecimento falso, onde se enquadra o senso comum, para que o conhecimento científico possa emergir como racional e válido.  Desta forma a ciência constrói-se, contra o senso comum, porque “dispõe de três atos epistemológicos fundamentais: a rutura, a construção e a constatação”.
Júlio Maria

Sem comentários: