terça-feira, 14 de fevereiro de 2017

Introdução à deontologia kantiana

Se o bem último da nossa ação é para muitos a felicidade, para Kant o bem último é a boa vontade, ou seja, a boa vontade é a única capaz de garantir que uma ação foi realizada por dever e não por algum tipo de desejo ou interesse. Como o próprio Kant afirma ao dizer que a “boa vontade não é boa por aquilo que promove ou realiza, pela aptidão para alcançar qualquer finalidade proposta, mas tão-somente pelo querer, isto é em si mesma, e, considerada em si mesma, deve ser avaliada em grau muito mais alto do que tudo o que por seu intermédio possa ser alcançado em proveito de qualquer inclinação, ou mesmo, se se quiser, da soma de todas as inclinações”.

Kant deixa claro que o que importa nas nossas ações não são as consequências que daí possa advir, aliás, as consequências são sempre imprevistas, o que realmente importa são as nossas intenções, as intenções que partem desta boa vontade. Mas de onde nos vem este conceito de boa vontade? Na perspetiva kantiana este conceito não vem da experiência, nem dos desejos ou das inclinações, vem da própria razão e que pode ser expresso pelo conceito de dever, “vamos encarar o conceito de dever que contém em si o de boa vontade”, como afirma o autor.
Se só a boa vontade tem valor incondicional, vale por si mesma, isto é, possui valor intrínseco, então uma ação moral para ser considerada correta terá de “ser executada por sentido do dever e não apenas como resultado de uma inclinação, de um sentimento ou da possibilidade de qualquer tipo de benefício para o seu autor”. Por esta razão Kant procura explicar o que é agir por dever e, por isso, deixa de parte “todas as ações que são logo reconhecidas como contrárias ao dever [e] (…) ponho de lado também as ações que são verdadeiramente conformes ao dever”. Por exemplo, se o Bom Samaritano ajudou a pessoa caída apenas por compaixão, segundo Kant: essa pessoa não agiu moralmente, agiu apenas em função do sentimento de compaixão; se o Bom samaritano ajudou a pessoa caída apenas para se sentir reconhecido, por essa ou por outras pessoas, segundo Kant: essa pessoa não agiu moralmente, agiu apenas interesseiramente, agiu pelo reconhecimento social; se o bom Samaritano ajudou a pessoa caída na estrada apenas por dever, porque tinha a obrigação de ajudar, logo agiu moralmente. Então, para sabermos se o Bom samaritano agiu moralmente temos de conhecer as suas intenções, conhecer se agiu por dever e que “consiste em fazer o bem, não por inclinação, mas por dever”. Sendo que este por dever, contrasta com o contrário ao dever e em conformidade ao dever, mas só o agir por dever é que é correto.
Para que uma ação seja moralmente correta é então necessário aferir as motivações do agente, ou seja, perguntar pela razão porque levou o Bom Samaritano a agir daquela forma e não de outra. A razão pela qual Kant se concentrou nas motivações ou intenção foi porque “só é razoável ser moralmente responsável por coisas sobre as quais se exerce algum controlo – ou, na formulação de Kant, uma vez que o «dever implica o poder» - e porque as consequências das ações estão muitas vezes fora do nosso controlo, estas consequências não podem ser cruciais para a moral”. Como não conseguimos controlar as consequências das nossas ações e como também não conseguimos um “controlo completo sobre as nossas reações emocionais” e se queremos que a moral se torne acessível a todos os seres humanos, então, a moral deverá apoiar-se na boa vontade, no dever.
A felicidade para Kant não é o bem último da nossa ação, ela só tem sentido e valor quando é alcançada não por uma inclinação natural, mas por dever, como o afirma Kant ao dizer que “continua a existir uma lei que lhe prescreve a promoção da sua felicidade, não por inclinação, mas por dever – e é somente então que o seu comportamento tem propriamente valor moral”. Desta forma, a felicidade, para Kant, embora importante, o seu valor não está no “propósito…mas na máxima que a determina”, ou seja, a felicidade será boa na medida em que parte do dever, na medida em que possa ser merecida.
máxima é precisamente o princípio geral subjacente à ação, segundo o “qual se encontra já presente na própria pessoa que age segundo esta lei”. Por exemplo, no caso do Bom Samaritano, de que nos servimos, ele poderia ter agido segundo a máxima «ajuda os outros que precisam quando sentes compaixão»; mas também podia ter agido segundo a máxima «ajuda os outros que precisam se esperas reconhecimento». Contudo, para agir moralmente o Bom Samaritano teria de agir de acordo com a máxima «ajuda os outros que precisam porque esse é apenas o teu dever».
Poderíamos fazer a pergunta: porque é que a última máxima é que condiz com o agir moralmente? Ou, que tipos de valores estão aqui subjacentes? O próprio Kant responde-nos a estas inquietações ao afirmar que “devo proceder sempre de maneira que eu possa querer também que a minha máxima se torne uma lei universal”. O critério novo é o da universalidade, que máxima é que eu quero que se torne universal: a da compaixão, a do reconhecimento ou a do dever? Kant dá-nos o exemplo de alguém que: quando está em apuros deverá ou não fazer uma promessa com a intenção de a não cumprir? Se aceitarmos esta máxima ela servirá para todas as pessoas que quando estiverem numa dificuldade possam fazer uma promessa mentirosa. Então, se não queremos que esta máxima se transforme em lei universal devemos rejeitá-la e afirmar que não queremos promessas enganosas. Esta negatividade reforça a proibição moral absoluta de Kant, porque só a “vontade é a faculdade de escolher só aquilo que a razão, independentemente da inclinação, reconhece como praticamente necessário, quer dizer como bom”.
Desta forma, “a representação de um princípio objetivo, enquanto obrigante para uma vontade, chama-se mandamento (da razão), e a fórmula do mandamento chama-se Imperativo”. Sendo que estes imperativos são de duas ordens: os hipotéticos, aqueles que “representam a necessidade prática de uma ação possível como meio de alcançar qualquer outra coisa que se quer (ou que é possível que se queira)”; os categóricos, aqueles que nos representam “uma ação como objetivamente necessária, por si mesma, sem relação com qualquer outra finalidade”.
Para assegurar esta distinção entre os imperativos categóricos e hipotéticos, Kant afirma que se a ação for boa apenas como um meio para alguma coisa, então trata-se de um imperativo hipotético, mas se a ação for boa em si mesma, então trata-se de um imperativo categórico. No imperativo hipotético temos a condição (se queres ser reconhecido, ajuda que está caído no chão), os imperativos hipotéticos dizem-nos “o que devemos ou não fazer se quisermos alcançar ou evitar determinado objetivo”. Os imperativos categóricos sendo absolutos e incondicionais “não se baseiam como condição em qualquer outra intenção a atingir por um certo comportamento, ordena imediatamente este comportamento (…) não se relaciona com a matéria da ação e com o que dela deve resultar, mas com a forma e o princípio de que ela mesma deriva; e o essencialmente bom na ação reside na disposição, seja qual for o resultado [este é] o imperativo da moralidade”. Sejam quais forem as consequências os imperativos categóricos são válidos se a eles se obedecerem, tratam-se dos mandamentos (leis) para agir de determinada maneira: são as ‘leis práticas’. Enquanto os imperativos hipotéticos são apenas ‘princípios da vontade’, contingentes, necessários apenas para alcançar qualquer fim.
Apesar das várias versões, para Kant há apenas um só imperativo categórico: “age apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal”.
Depois deste percurso percorrido, resta-nos a pergunta: que deveres são esses? Kant faz a divisão entre deveres para connosco mesmos e para com os outros, em deveres perfeitos e imperfeitos. Contudo, perante os diversos deveres Kant afirma que “temos que poder querer que uma máxima da nossa ação se transforme em lei universal: é este o cânon pelo qual a julgamos moralmente em geral”. Sendo a universalidade o critério preponderante o “dever deve ser a necessidade prática-incondicionada da ação; tem de valer portanto para todos os seres racionais (os únicos aos quais se pode aplicar sempre um imperativo), e só por isso pode ser lei também para toda a vontade humana”, razão pela qual os deveres perfeitos se apresentam sempre na forma negativa: não matar; não cometer suicídio; não fazer promessas incumpridas.
Júlio Maria

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