terça-feira, 24 de janeiro de 2017

A dimensão pessoal do bem

Desde muito cedo que o ser humano é invadido por um conjunto de ‘obrigações’, de ‘deveres’: o que pode ou não pode fazer; o que dizer, quando o dizer e como o dizer; o que é mais e menos importante; o que é certo e errado; o que é bom e o que não o é. Esta lista de indicações e conselhos feitos, certamente, por quem tem autoridade, pode ser interminável, mas ela tem um propósito para o ser humano que é para “se comportar bem, para pensar bem, para viver bem”.

Ora pela sabedoria familiar, académica, social ou cultural o ser humano vai-se construindo balizado pelo que ‘deve fazer’. É neste contexto da obrigação que surgem as perspetivas filosóficas distintas como a teleologia e a deontologia. Quer para uma quer para outra, podendo ou não ser exclusivo, está a promoção do bem. Quer para uma quer para outra perspetiva está a resposta a esta questão: o que é o bem?
Dentro da ética normativa encontramos dois ramos que se cruzam: as teorias da obrigação e as teorias do valor. As teorias da obrigação dizem respeito ao que é certo ou errado fazer, referem-se ao dever fazer. As teorias do valor ocupam-se do que é bom ou mau existir. É, precisamente, no âmbito desta última que queremos centrar a resposta à pergunta: o que é o bem? Quando nos referimos ao bem, neste caso específico desta regência, à dimensão pessoal do bem, estamo-nos a referir ao bem-estar, à felicidade. Como o refere o autor, Pedro Galvão, ao afirmar que o “bem-estar de um indivíduo consiste naquelas coisas que tornam a vida boa para si mesmo”. A dificuldade desta afirmação está em saber o que são aquelas coisas que tornam a vida boa ou, pelo contrário, aquelas coisas que não tornam a vida boa e, neste sentido, encontrar, igualmente, as razões porque são boas ou não. Pedro Galvão reformula esta dificuldade da seguinte forma: “é o problema de saber que coisas são essas e por que razão são boas quando estão presentes numa vida”.
Para nos ajudar a compreender esta problemática, que brota da teoria do valor, são-nos apresentadas quatro perspetivas, que aparecem figuradas no Manual adotado na escola: a perspetiva do hedonismo; a perspetiva da satisfação dos desejos (ou satisfação das preferências); a perspetiva das preferências informadas e a perspetiva da lista objetiva (ou bens objetivos). Existe uma outra perspetiva que não aparece figurada no Manual - ‘além do bem-estar individual’ – cuja investigação filosófica não se esgota em tentar saber em que consiste o bem-estar, mas que parte da pergunta de saber se: só o bem-estar tem valor? Para esta perspetiva tudo o que estiver fora daquele bem-estar não tem valor, pelo menos valor intrínseco e por isso defende que o “melhor estado das coisas é simplesmente aquele em que há um maior total de bem-estar”. Embora pertinente, esta perspetiva a que nos referimos não será objeto de análise nesta aula uma vez que se enquadrará na regência seguinte que tratará a questão da dimensão social do bem.
Recordando aquela distinção que fizemos acerca dos valores (regência nº5), em que distinguimos valores intrínsecos de valores instrumentais, ou seja, algo que tem valor enquanto é meio para atingir um outro fim (valor instrumental) ou algo que tem valor como fim em si mesmo (valor intrínseco). Atendendo a esta distinção que fazemos poderíamos fazer a pergunta: por saber o que é intrinsecamente valioso?
A resposta que mais adeptos tem tido é aquela que apresenta o ‘prazer’ ou a ‘satisfação’, ou seja, que “apenas as experiências são intrinsecamente boas e que o que torna uma experiência intrinsecamente boa é o prazer ou a satisfação que traz à pessoa (ou à criatura senciente) … chama-se hedonismo”. O prazer ou a satisfação é apenas um dos fatores que contribui para o bem-estar, por isso, é preciso ir ao encontro do outro extremo do prazer. Desta forma a perspetiva ‘ousada’ dos hedonistas poderá ser formulada da seguinte forma: “o bem-estar depende unicamente do prazer e da ausência de dor”. Para esta perspetiva tudo o que contribui para aumentar o prazer ou evitar a dor é que contribui para o bem-estar, para a felicidade. Assim, a “qualidade de uma vida – o grau em que ela é boa ou má para quem a vive – resulta assim somente da aprazibilidade e da dolorosidade das experiências que a preenchem”. Contudo, dentro desta perspetiva do hedonismo há uma diversidade significativa de versões. Há quem advogue um hedonismo puramente quantitativo (Jeremy Bentham), segundo o qual o valor intrínseco de um prazer depende apenas da sua duração e intensidade. Há quem defenda um hedonismo puramente qualitativo (J. S. Mill), em que faz a distinção entre dois tipos de prazeres (faculdades superiores e os prazeres inferiores), sendo que as ‘faculdades superiores’ são aqueles que mais contribuem para o bem-estar. Há, igualmente, divergências quanto ao modo como concebem a relação entre os prazeres e as dores, em que um poderá contar mais ou menos (mais os prazeres e menos as dores ou vice-versa), ou o mesmo que outro (os prazeres e dores são simétricos). Desta forma, o hedonismo é a perspetiva que tem como pano de fundo as experiências prazerosas ou dolorosas, sendo que o bem-estar de um indivíduo dependerá destas mesmas experiências que fará ao longo da sua vida.
Em boa verdade nem só as nossas experiências importam para o bem-estar que torna a vida boa. Uma das críticas ao hedonismo é a «máquina de experiências», ou pelo menos a imaginação desta, de Robert Nozick, segundo a qual nos leva a refutar o hedonismo porque “queremos fazer realmente certas coisas, e não ter apenas a experiência de as fazer; queremos ser um determinado tipo de pessoa, e não apenas preencher o tempo de certa maneira; por fim, queremos estar em contacto com uma realidade mais profunda do que aquela que máquina poderia gerar”.
A segunda perspetiva acerca do que é o bem-estar é a perspetiva da satisfação dos desejos ou preferências que, no fundo, se denomina de preferencismo. Esta alternativa ao hedonismo vem afirmar que o “bem-estar consiste unicamente na satisfação de desejos ou preferências”. Se no hedonismo considerávamos o prazer e a dor, nesta perspetiva consideramos a realização ou satisfação dos nossos desejos (aquilo em que consiste o bem-estar, em que se enquadram os desejos mais relevantes), por um lado e por outro, a frustração dos nossos desejos (aquelas coisas que se devem evitar). Por esta perspetiva não ser uma conceção experiencial do bem-estar ela escapa ao argumento da «máquina de experiências», uma vez que o indivíduo pode ter o desejo de alguma coisa sem nunca ter feito a experiência de tal coisa.
Contudo, embora não sendo vulnerável àquele argumento da «máquina de experiências» a perspetiva do preferencismo é muito implausível por três razões: primeiro, porque “parecem existir desejos cuja satisfação nada acrescenta ao bem-estar”; segundo, deriva do facto de “tornar como relevantes os desejos que as pessoas têm de facto, que muitas vezes se devem à ignorância ou a alguma falha grave de racionalidade”; terceiro, “os desejos que contam são aqueles que formaríamos numa posição ideal (…) [porque assim] conseguiríamos compreender que as coisas têm realmente valor”. Mas há coisas que têm valor independente de as desejarmos, razão pela qual o bem-estar decorre dessas coisas e não da realização de determinados desejos.
Quando falamos na ignorância ou de alguma falha grave de racionalidade, podemos incluir a falta de informação, ou seja, quando alguém não está na posse de toda a informação e se sujeita à sua condição e porque não está informada os seus desejos limitam-se apenas aquilo que até então conhece (a título de exemplos, o caso de uma mulher que vive numa sociedade extremamente machista ou o caso da sociedade descrita por Aldous Huxley em Admirável mundo novo, como nos sugere o Manual[16]). O preferencismo, perante esta objeção, poderia mudar a sua perspetiva uma vez que uma vida feliz não consiste apenas na realização de preferências e desejos, mas naqueles desejos que teríamos se estivéssemos devidamente informados. Desta forma, a tese principal desta teoria é afirmar que a “felicidade consiste apenas na realização de preferências informadas”.
Chegamos, assim, à quarta teoria, a perspetiva da lista objetiva. Segundo esta perspetiva “há diversos bens que têm valor independentemente de serem desejados, e o bem-estar de um indivíduo resulta desse bem”. Para esta perspetiva existe uma lista objetiva de valores relevantes para o bem-estar, em que o prazer poderá ser um valor entre tantos outros. A diversidade será uma variável a considerar para quem defende esta perspetiva, que valores incluir? Quais os valores prioritários e secundários na lista e qual será a sua relação? O que faz destes valores e não de outros serem essenciais para o bem-estar? A resposta a estas, entre outras, perguntas passará sempre pela consideração que nos moveu até aqui: a dimensão pessoal do bem.
Júlio Maria

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