quarta-feira, 14 de dezembro de 2016

Fundacionalismo Cartesiano

Depois de um percurso balizado entre a lógica formal e a lógica informal, chegamos a um novo capítulo dedicado ao conhecimento. Na base da argumentação e no horizonte desta está o papel mediador do conhecimento que se inscreve na procura da verdade. Certos de que “não há conhecimento absoluto, não há conhecimento perfeito, não há conhecimento infinito”, isto porque nunca podemos conhecer tudo acerca de tudo, razão pela qual nenhum conhecimento é a verdade “porque jamais conhecemos absolutamente o que é, nem tudo o que é”, antes é a procura da verdade.
Neste contexto situamos a figura de René Descartes (1596-1650) que procura os fundamentos do conhecimento, em que a única forma de atingir o conhecimento implicaria “arrasar tudo quanto havia tomado por certo e recomeçar a partir dos alicerces”. Mas porquê começar com Descartes, uma vez que ele procura respostas para tantas perguntas que já teriam sido colocadas muito antes dele (mortalidade; conhecimento; natureza do mundo; realidade e ilusão)? A razão pela qual começamos com Descartes é porque ele se situou e deparou com a revolução científica, com as respostas da ciência que procurava revelar tudo quanto existia. Por esta razão, “começamos com Descartes por ele ter sido o primeiro grande filósofo a debater-se com as implicações da moderna visão científica do mundo”.
Desta forma, o objetivo de Descartes é procurar e estabelecer um conhecimento seguro e indubitável, conhecimento este que terá de começar pelos alicerces, como se se tratasse dos fundamentos de um edifício. Razão pela qual “Descartes decide que, para poder estabelecer algo nas ciências que seja «estável e suscetível de perdurar», terá de demolir todas as suas opiniões comuns e começar a partir dos alicerces”.
Para Descartes, aquilo que não poderá estar na base fundacional do edifício do conhecimento serão as ilusões: dos sentidos; dos sonhos; a hipótese de um génio maligno. Tratam-se de três lugares onde, aparentemente, não se pode conhecer com certeza. Os sentidos podem, por vezes, enganar-nos e por isso é “de prudência nunca confiar totalmente naqueles que, mesmo uma só vez, nos enganaram”. Contudo, isto não quer dizer que os sentidos nos enganem sempre, há situações em que os sentidos não nos estão a enganar e dos quais não podemos duvidar como o facto de estar aqui sentado a escrever. Por outro lado, temos os sonhos que nos representam determinadas coisas, sugerem-nos semelhanças com algo verdadeiro, por esta razão afirma Descartes que vê “com clareza que vigília e sono nunca se podem distinguir por sinais seguros” e dá-nos o exemplo de um quadro, cujos pintores podem alterar as coisas, a partir de outras reais. Contudo, assim como existem situações em que os sentidos não nos estão a enganar, existem também situações em que “quer esteja acordado quer esteja a dormir, dois e três somados são sempre cinco e um quadrado nunca tem mais do que quatro lados”. Por fim, temos a hipótese de um génio maligno “não o Deus sumamente bom, fonte da verdade, mas um certo génio maligno, ao mesmo tempo extremamente poderoso e astuto, que pusesse toda a sua indústria em me enganar”, este génio maligno, em oposição ao Deus sumamente bom, poderá tornar as convicções abertamente falsas.
Contudo, se podemos duvidar dos nossos sentidos, dos nossos sonhos e se podemos colocar a hipótese de um génio maligno que nos engane, ainda podemos referir os erros da própria razão porque, como afirma Descartes, existem “homens que se enganam, ao raciocinar, até nas mais simples questões de geometria, e nelas cometem paralogismos, pensando que eu estava tão sujeito a enganar-me, como qualquer outro, vim a rejeitar como falsas todas as razões (…)”.
No que acabámos de referir vemos que o método cartesiano, em que assenta a possibilidade do conhecimento, é a dúvida e por ser o seu método ficou conhecida como a dúvida metódica que consiste em duvidar de tudo o que se possa imaginar até encontrar algo de absolutamente indubitável, desconstruindo todas as crenças até encontrar alguma que seja fundamento, que seja alicerce para se poder construir o conhecimento. Ao contrário da dúvida cética ou ‘pirrónica’ que é sistemática e definitiva, uma vez que os céticos duvidam por duvidar, a dúvida cartesiana “é provisória, metódica, um meio para a certeza, considerada esta como a posse consciente da verdade”. A dúvida cartesiana possui então as seguintes características: “é uma dúvida voluntária, «ato da vontade esclarecida e livre», como meio ou caminho seguro para a obtenção da certeza; [é uma] dúvida radical, ao atingir as fontes sensorial e intelectual do conhecimento; [é uma dúvida] metafísica, ao atingir as «essências», mesmo as matemáticas; [é uma dúvida] hiperbólica ao atingir a existência do que gnosiologicamente se designa por «objeto» extramental do conhecimento”.
Contudo, ainda que me possa enganar e que possa errar, que possa reconhecer “que nada é certo”, não há dúvida de que existo. Afirma Descartes que “deve por último concluir-se que esta proposição Eu sou, eu existo, sempre que proferida por mim ou concebida pelo espírito, é necessariamente verdadeira”. Desta forma, mesmo que erre, mesmo que os sentidos me enganem, mesmo que o génio maligno seja astuto e se esforce por me iludir, nada me poderá convencer de que não existo. Esta é, então, a resposta cartesiana ao ceticismo que defendia a impossibilidade de se conhecer algo com certeza. Esta expressão ficou conhecida como o cogito, referindo-se ao cogito, ergo sum (penso, logo existo).
Tendo conduzido o seu pensamento até aqui falta agora saber “o que é este eu” que pensa. A resposta a esta pergunta pelo eu que pensa leva, Descartes, à distinção do mente-corpo, ao denominado dualismo cartesiano. Uma vez que a única coisa que sabemos com certeza é a de que existimos enquanto coisa pensante (res cogitans), sendo que a nossa essência ou natureza se identifica com a mente. Desta forma, o cogito nada nos diz acerca da realidade sensível, ou seja, não é suficiente para nos assegurar que temos um corpo e que, por sua vez, as nossas experiências percetivas possam ser fiáveis.
Então, como saber que existe alguma coisa para além do eu que pensa? Descartes enuncia-nos os critérios de clareza e distinção, que surgem como a primeira ‘regra da certeza’, ao referir que na “afirmação penso, logo existo, não há absolutamente nada a garantir-me que esteja a dizer a verdade, a não ser o ver muito claramente que, para pensar, é preciso existir, julguei que podia tomar como regra geral que são verdadeiras todas aquelas coisas que concebemos muito claramente e muito distintamente”. A esta primeira ‘regra da certeza’ seguem-se outras três: a da análise; a da síntese e a da enumeração. A segunda regra consistiria em “dividir cada uma das dificuldades que examinava em tantas parcelas quantas fosse possível e fosse necessário, para melhor as resolver”. A terceira regra consistiria em “conduzir por ordem os meus pensamentos”, dos objetos mais simples e fáceis aos mais difíceis e complexos de conhecer, supondo uma certa gradualidade. Por fim, a última regra consistiria em “fazer sempre enumerações tão completas e revisões tão gerais, que tivesse a certeza de nada omitir”, trata-se de verificar a evidência da sucessão de juízos.Para abordar o pensamento cartesiano, de uma forma global, faltará abordar a segunda certeza (a existência de Deus, fundamento das verdades infalíveis, a que se chega através da ideia de perfeição, através da análise da prova ontológica) e a terceira certeza (a existência de um mundo material externo, de uma ‘res extensa’ que nos é dada através das ideias adventícias em oposição às ideias inatas), matéria que será objeto de estudo nas próximas aulas. Um outro dado a considerar, numa próxima aula, será situar o pensamento cartesiano fazendo referencia ao racionalismo que, como veremos, se opõe ao empirismo humeano.
Júlio Maria

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