domingo, 31 de janeiro de 2010

O QUE É A FELICIDADE?


2. O que é a felicidade?
Mill tem uma perspectiva hedonista de felicidade. Segundo esta perspectiva, a felicidade consiste no prazer e na ausência de dor. O prazer pode ser mais ou menos intenso e mais ou menos duradouro. Mas a novidade de Mill está em dizer que há prazeres superiores e inferiores, o que significa que há prazeres intrinsecamente melhores do que outros. Mas o que quer isto dizer? Simplesmente que há prazeres que têm mais valor do que outros devido à sua natureza. Mill defende que os tipos de prazer que têm mais valor são os prazeres do pensamento, sentimento e imaginação; tais prazeres resultam da experiência de apreciar a beleza, a verdade, o amor, a liberdade, o conhecimento, a criação artística. Qualquer prazer destes terá mais valor e fará as pessoas mais felizes do que a maior quantidade imaginável de prazeres inferiores. Quais são os prazeres inferiores? Os prazeres ligados às necessidades físicas, como beber, comer e sexo.
Diz-se que o hedonismo de Mill é sofisticado por ter em conta a qualidade dos prazeres na promoção da felicidade para o maior número; a consequência disso é deixar em segundo plano a ideia de que o prazer é algo que tem uma quantidade que se pode medir meramente em termos de duração e intensidade. É a qualidade do prazer que é relevante e decisiva. Daí Mill dizer que é preferível ser um "Sócrates insatisfeito a um tolo satisfeito". Sócrates é capaz de prazeres elevados e prazeres baixos e escolheu os primeiros; o tolo só é capaz de prazeres baixos e está limitado a uma vida sem qualidade. Mas será que é realmente preferível ser um "Sócrates insatisfeito"? Mill afirma que, se fizéssemos a pergunta às pessoas com experiência destes dois tipos de prazer, elas responderiam que os prazeres elevados produzem mais felicidade que os prazeres baixos. Todas fariam a escolha de Sócrates.
Há filósofos que consideram a distinção entre prazeres inferiores e superiores incompatível com o hedonismo. Se, como afirma o hedonismo, uma experiência vale mais do que outra apenas em virtude de ser mais aprazível, ao aumentarmos progressivamente a aprazibilidade do prazer inferior, chegaremos a um ponto em que este pesará mais do que um prazer superior na balança dos prazeres; e nesse caso, se quisermos manter o hedonismo, a distinção entre prazeres inferiores e superiores deixará de fazer sentido e terá de ser abandonada. Convido-te a imaginar que resposta poderá ser dada a esta objecção em defesa da ética de Mill.

Faustino Vaz
Retirado de textos de apoio ao Manual Arte de Pensar - 10º Ano, Didática Editora.

quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

A ÉTICA DE JOHN STUART MILL


1. O princípio da maior felicidade
O utilitarismo é um tipo de ética consequencialista. O seu princípio básico, conhecido como o Princípio da Utilidade ou da Maior Felicidade, é o seguinte: a acção moralmente certa é aquela que maximiza a felicidade para o maior número. E deve fazê-lo de uma forma imparcial: a tua felicidade não conta mais do que a felicidade de qualquer outra pessoa. Saber por quem se distribui a felicidade é indiferente. O que realmente conta e não é indiferente é saber se uma determinada acção maximiza a felicidade. Saber se a avaliação moral de uma acção a partir do Princípio da Maior Felicidade depende das consequências que de facto tem ou das consequências esperadas é um aspecto da ética de Mill que permanece em aberto.
Apesar de haver pessoas que não o aceitam, o princípio básico dos utilitaristas é hoje central nas disputas morais. Mas há cento e cinquenta anos foi uma ideia revolucionária. Pela primeira vez, filósofos defendiam que a moralidade não dependia de Deus nem de regras abstractas. A felicidade do maior número é tudo o que se deve perseguir com a ajuda da experiência. Isto explica que os utilitaristas tenham sido reformadores sociais empenhados em mudanças como a abolição da escravatura, a igualdade entre homens e mulheres e o direito de voto para todos, independentemente de deterem ou não propriedade.
Faustino Vaz
Retirado de Textos de Apoio ao Manual Arte de Pensar - Didáctica Editora

terça-feira, 26 de janeiro de 2010

POR QUE RAZÃO HAVEMOS DE SER MORAIS?


"Por que razão devo agir moralmente?" é uma questão de tipo diferente das que tratámos até agora. Perguntas como "Por que razão devo tratar pessoas de grupos étnicos diferentes com base na igualdade?" ou "Por que razão é o aborto justificável?" procuram razões éticas para agir de uma certa forma. São perguntas feitas do interior da ética. Pressupõem uma perspectiva ética. "Por que razão devo agir moralmente?" situa-se a outro nível. Não se trata de uma pergunta que se faz no interior da ética mas de uma questão acerca da ética.
"Por que razão devo agir moralmente?" é, pois, uma pergunta a respeito de algo que normalmente é admitido como ponto de partida. Essas perguntas são incómodas. Alguns filósofos acharam esta pergunta tão desconcertante que a rejeitaram por ser logicamente imprópria, por ser uma tentativa de perguntar algo a que não se pode dar uma resposta apropriada.
Uma razão para esta rejeição reside na afirmação de que os nossos princípios éticos são, por definição, os princípios que consideramos imperiosos. Significa isto que quaisquer princípios imperiosos para uma determinada pessoa, são necessariamente os princípios éticos dessa pessoa; e uma pessoa que aceita como princípio ético dever dar a sua riqueza para ajudar os pobres tem, por definição, de ter decidido dar a sua riqueza. Nesta definição da ética, a partir do momento em que uma pessoa toma uma decisão ética, nenhuma questão ética adicional pode surgir. Daí que seja impossível dar sentido à pergunta "Por que razão devo agir moralmente?".
Poder-se-ia pensar que uma boa razão para aceitar esta definição da ética baseada no que é imperioso é que nos permite rejeitar, como desprovida de sentido, uma questão que de outro modo seria incómoda. Contudo, a adopção desta definição não pode resolver problemas reais porque leva a dificuldades proporcionalmente maiores em estabelecer uma conclusão ética. Tomemos, por exemplo, a conclusão de que os ricos devem ajudar os pobres. Só pudemos argumentar nesse sentido, no capítulo 8, porque partimos do princípio de que, como sugerimos nos primeiros dois capítulos, a universalizabilidade dos juízos éticos exige que não pensemos apenas nos nossos próprios interesses, levando-nos a adoptar um ponto de vista no qual temos de considerar igualmente os interesses de todos os que são afectados pelas nossas acções. Não podemos defender que um juízo ético tem de ser universalizável e ao mesmo tempo definir os princípios éticos de uma pessoa como os princípios, quaisquer que eles sejam, que essa pessoa considera imperiosos — pois o que aconteceria se eu considerasse imperioso um princípio não universal como "Devo fazer o que me beneficia"? Se definirmos os princípios éticos como quaisquer princípios que tomemos por imperiosos, nesse caso qualquer coisa pode contar como princípio ético, porque podemos considerar imperioso qualquer princípio. Assim, o que ganhamos por podermos rejeitar a pergunta "Por que razão devo agir moralmente?" perdemos ao sermos incapazes de usar a universalizabilidade dos juízos éticos — ou qualquer outra característica da ética — para argumentar em favor de certas conclusões sobre o que é moralmente correcto. Considerar que a ética implica necessariamente, em certo sentido, um ponto de vista universal é uma forma mais natural e menos confusa de abordar estas questões.
Outros filósofos rejeitaram a questão "Por que razão devo agir moralmente?" por outros motivos. Pensam que deve ser rejeitada pela mesma razão que nos leva a rejeitar uma outra questão ("Por que razão devo ser racional?") que, como "Por que razão devo agir moralmente?", também questiona algo — neste caso, a racionalidade — que normalmente se pressupõe. A pergunta "Por que razão devo ser racional?" é de facto logicamente imprópria porque, ao responder-lhe, estaríamos a dar razões para sermos racionais. Estaríamos a pressupor a racionalidade na nossa tentativa de justificar a racionalidade. A justificação resultante da racionalidade seria circular — o que prova não que a racionalidade careça de uma necessária justificação, mas que não precisa de justificação, porque não pode inteligivelmente ser questionada, a não ser que já esteja pressuposta.
Será que "Por que razão devo agir moralmente?" está na mesma categoria de "Por que razão devo ser racional?" no sentido em que pressupõe o próprio ponto de vista que questiona? Estaria, se interpretássemos o "devo" como um "devo" moral, o que seria absurdo. A partir do momento em que chegamos à conclusão de que uma acção é moralmente obrigatória, não existem mais questões morais a que responder. É redundante perguntar por que razão devo moralmente fazer a acção que moralmente devo fazer.
Não há, porém, a necessidade de interpretar a pergunta como um pedido de justificação ética da ética. "Devo" não significa forçosamente "devo, moralmente". Poderia ser simplesmente uma forma de inquirir das razões para a acção, sem qualquer especificação quanto à natureza das razões pretendidas. Queremos por vezes fazer uma pergunta genérica prática, sem qualquer ponto de vista em particular. Confrontados com uma escolha difícil, pedimos conselho a um amigo íntimo. Moralmente, diz ele, devias fazer A; mas B era melhor para os teus interesses, enquanto a etiqueta exige C e apenas D demonstra um verdadeiro sentido de estilo. Esta resposta pode não nos satisfazer. Pretendemos um conselho sobre qual destes pontos de vista devemos adoptar. Se fazemos tal pergunta, temos de a fazer de uma posição de neutralidade relativamente a todos os pontos de vista e não de um compromisso com qualquer deles.
"Por que razão devo agir moralmente?" é uma pergunta deste tipo. Se não for possível fazer perguntas práticas sem pressupor um ponto de vista, somos incapazes de dizer algo de inteligível acerca das escolhas práticas mais fundamentais. Agir ou não de acordo com considerações de ética, interesse pessoal, etiqueta ou estética seria uma escolha "para lá da razão" — em certo sentido, uma escolha arbitrária. Antes de nos resignarmos a esta conclusão devemos pelo menos tentar interpretar a questão de tal modo que fazer simplesmente a pergunta não nos comprometa com qualquer ponto de vista particular.
Podemos agora formular a pergunta com maior precisão. Trata-se de uma questão acerca do ponto de vista ético, feita de uma posição exterior a esse ponto de vista. Mas o que é "o ponto de vista ético"? Afirmei que uma característica distintiva da ética é que os juízos éticos são universalizáveis. A ética exige que superemos o nosso ponto de vista pessoal e que adoptemos uma posição semelhante à do espectador imparcial que adopta um ponto de vista universal.
Dado este conceito da ética, "Por que razão devo agir moralmente?" é uma pergunta a que pode responder adequadamente qualquer pessoa que inquira se deve agir apenas em bases que seriam aceitáveis do ponto de vista universal. Afinal de contas, é possível agir — e algumas pessoas fazem-no — sem pensar senão nos nossos interesses pessoais. A pergunta pede razões para ir além do interesse pessoal na acção e para agir apenas com base em juízos que estamos dispostos a prescrever universalmente.

Peter Singer (Lisboa: Gradiva, 2000), Cap. 12
Retirado de Textos de Apoio ao Manual A Arte de Pensar de Didáctica Editora

domingo, 24 de janeiro de 2010

SERÁ O EGOÍSMO EMPIRICAMENTE TESTÁVEL?


Uma objecção filosófica tradicional apresentada ao egoísmo é que não é uma hipótese empiricamente testável. Como o exemplo do soldado na trincheira sugere, parece que o egoísmo pode incluir e explicar qualquer tipo de comportamento das pessoas, sejam elas boas ou más umas para as outras. A afirmação de que o egoísmo é flexível é então ligada a um critério popperiano quanto ao que se exige para que uma afirmação ser científica, concluindo-se que o egoísmo não é de modo algum uma teoria científica. Apesar das aparências, é uma teoria empiricamente vácua.
Este argumento falha em dois sentidos. O primeiro diz respeito à confiança optimista de que nenhuma observação empírica poderá alguma vez refutar o egoísmo. O facto de a teoria poder incluir o exemplo do soldado na trincheira bem como outros comportamentos que têm sido considerados pelos filósofos, dificilmente basta para justificar esta afirmação global. Na verdade, o trabalho experimental desenvolvido pela psicologia social sobre o altruísmo e o egoísmo mostra que as provas empíricas relevantes ultrapassam a existência de instâncias de comportamento de ajuda. Por outro lado, a sugestão de Duhem de que as teorias científicas só são testáveis em conjunção com pressupostos de fundo deve levar-nos a recuar na acusação de intestabilidade. Se duas teorias fazem as mesmas previsões relativamente a um quadro de referência de fundo, podem fazer previsões diferentes relativamente a outro. Como sabemos que nunca se desenvolverão novas teorias de fundo que permitam que o egoísmo seja testado? A acusação de intestabilidade pressupõe que temos um conhecimento omnisciente do futuro da ciência.
O segundo defeito deste argumento é ignorar que a acusação de intestabilidade é uma faca de dois gumes. O argumento é apresentado como razão para rejeitar o egoísmo. O que havemos então de aceitar como explicação efectiva da motivação? Presumivelmente, o pluralismo da motivação é a alternativa viável. Contudo, não é possível que seja este o resultado do argumento. Se o egoísmo não é testável, também o pluralismo da motivação o é. Por mais flexível que o egoísmo seja quanto à sua capacidade para acomodar observações, o pluralismo é ainda mais flexível. Afinal o pluralismo usa todas as variáveis que o egoísmo invoca, e mais algumas. As duas teorias relacionam-se entre si a mesma maneira que "y = f (x)" e "y = g (x,w)" se relacionam.
A razão pela qual o egoísmo parece não ser testável é porque é um ismo. Não fornece explicações específicas para o comportamento, apenas indica o tipo de explicação que todos os comportamentos terão. É isto que permite que se continue a aceitar o egoísmo mesmo quando explicações egoístas específicas se revelam inadequadas. Por que razão terá o Jorge doado todo o seu dinheiro a uma instituição de caridade? Um defensor do egoísmo pode sugerir que o Jorge agiu dessa forma porque queria impressionar os outros e, dessa forma, aumentar os seus contactos comerciais. Contudo, suponha-se que ficamos a saber que a doação do Jorge tinha sido anónima. Isso refuta a explicação egoísta atrás descrita, mas não é difícil inventar outra. O Jorge fez essa doação porque isso o fez sentir-se bem e porque sabia que, se não o fizesse, sentiria remorsos. O padrão é típico — o hedonismo é a posição em que os egoístas tradicionais se refugiam. Se os benefícios externos não forem suficientes para a explicação, então invocam-se benefícios internos, isto é, psicológicos.
Que o egoísmo é uma teoria sobre um tipo de explicação, e que, por isso, difere das explicações específicas do tipo requerido, é um padrão que surge em muitos debates sobre os ismos. Considere-se o adaptacionismo na biologia evolucionista. Os adaptacionistas sublinham a importância da selecção natural ao explicar os traços observados nos organismos. Porque este ismo, por si, não fornece uma explicação específica para qualquer traço, um biólogo pode continuar a ser adaptacionista mesmo quando uma explicação específica desse tipo se revela inadequada. Por que apareceram asas nos insectos? A hipótese explicativa de que resultam de uma adaptação necessária para voar é questionada pelo facto de os "rebentos" de asas não permitirem sequer levantar voo; ainda que 5% de um olho permita que este continue a funcionar como sensor de luz, 5% de asa não serve sequer para levantar um insecto do chão. Contudo, em algumas espécies de insectos que não voam encontramos "rebentos" de asas que funcionam como reguladores térmicos. Isto sugere uma hipótese alternativa — que as asas dos insectos começaram por evoluir por promoverem a regulação térmica e depois continuaram a evoluir porque facilitavam o voo. Mas se esta hipótese for novamente posta em causa, o adaptacionista pode desenvolver uma terceira hipótese. Não é bom rejeitar o adaptacionismo por causa deste tipo de flexibilidade; o ismo alternativo, o pluralismo evolutivo, defende que a selecção natural é apenas uma de entre diversas causas importantes da evolução. Se o adaptacionismo é flexível, o pluralismo é-o ainda mais.
Elliott Sober
Tradução e adaptação de Vítor João Oliveira
Retirado de textos de apoio ao Manual Arte de Pensar, Didáctica Editora.

sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

A POSSIBILIDADE DO ALTRUÍSMO


1. Por altruísmo entendo não o auto-sacrifício abjecto, mas apenas a vontade para agir em consideração dos interesses das outras pessoas, sem necessidade de motivos ulteriores. Como é possível que tais considerações nos motivem efectivamente? Que tipo de sistema e que outros factores intervenientes serão necessários para justificar e explicar o comportamento que tem como objecto o benefício dos outros? […]
O problema nesta altura não é saber como os interesses dos outros nos podem motivar para assumir uma conduta especificamente altruísta, mas saber se de facto nos podem motivar. Naturalmente que é de exigir alguma análise deste tipo de comportamento à maioria das teorias éticas, uma vez que há poucas que não exigem acções orientadas para os outros. Mesmo que o comportamento social exigido não inclua o auto-sacrifício, é quase certo que incluirá casos que não são motivados pelo interesse próprio, e dos quais algum inconveniente ou pelo menos nenhum benefício resultará para o agente. Uma defesa do altruísmo com base no interesse próprio dificilmente será bem sucedida. Mas há outros interesses que podem ser considerados, incluindo os indiscriminados sentimentos gerais de simpatia e benevolência.
É possível argumentar contra tais hipóteses com base na ideia de que os princípios psicológicos e sociais para que remetem não são nem universais nem suficientemente óbvios para justificar a amplitude da motivação altruísta, e que são evidentemente falsos para o fenómeno. Contudo, prefiro concentrar-me em fornecer uma justificação melhor, mostrando que é supérfluo remeter para os nossos interesses e sentimentos para justificar o altruísmo. A minha resposta genérica para essas sugestões é que as pessoas podem, em algumas ocasiões em que procuram satisfazer o interesse dos outros, ser sem dúvida motivadas pela benevolência, simpatia, amor, interesse próprio redireccionado, e muitos outras influências, mas que há outra coisa, uma motivação que está disponível mesmo quando nenhuma das anteriores está presente, e que está activa mesmo quando estão presentes, e que tem genuinamente o estatuto de um requisito racional da conduta humana. Por outras palavras, existe o puro altruísmo (embora possa não ocorrer isoladamente dos outros motivos). É a influência directa dos interesses de uma pessoa nas acções de outra, simplesmente porque em si próprio o interesse da primeira pessoa fornece depois à segunda uma razão para agir. Se é possível dizer que um qualquer outro factor interno adicional interage com as circunstâncias externas neste caso, não será um desejo ou uma inclinação, mas a estrutura representada por este tipo de sistema de razões.
[…]
2. O altruísmo racional que quero defender pode ser intuitivamente representado pelo argumento "Gostarias que te fizessem o mesmo?" É um argumento a que todos somos, num certo grau, susceptíveis; mas como funciona, como pode ser persuasivo, é matéria de controvérsia. Podemos pressupor que a situação em que é apresentado é aquela em que não gostaríamos que nos fizessem a nós o que agora estamos a fazer a alguém (a fórmula pode ser alterada em função do tipo de caso; provavelmente pode ser usada, se é que funciona, para persuadir as pessoas a ajudar os outros ou a evitar magoá-los). Mas qual é a consequência? Se ninguém to está a fazer a ti, como pode a tua conduta ser influenciada pela aceitação hipotética de que se alguém estivesse, tu não gostarias?
Surgem várias hipóteses. Pode ser que tenhas medo que o teu comportamento presente tenha como resultado o facto de alguém vir a fazer-te o mesmo; o teu comportamento pode implicar isto directamente ou porque uma certa prática geral o encoraja. Pode ser que a representação de ti próprio numa posição similar àquela de que és vítima seja tão vívida e desagradável que consideres de mau gosto continuar a perseguir o desgraçado. Mas e se não tens nem esta crença nem este grau de resposta afectiva? Ou, em alternativa, por que não podem estas considerações motivar-te para aumentar a tua segurança contra a retaliação, ou a tomar um tranquilizante para reprimir a tua piedade, em vez de desistires das tuas perseguições?
Há outra coisa neste argumento: não remete apenas para as paixões, mas é um argumento genuíno cuja conclusão é um juízo. O facto essencial é que podes não apenas não gostar que alguém te trate de uma certa maneira, mas podes ofender-te. Quer dizer, pensarás que o teu compromisso dá à outra pessoa uma razão para terminar ou modificar o seu contributo, e que ao não o conseguir estaria a agir contra as razões que lhe estavam completamente disponíveis. Por outras palavras, o argumento remete para o juízo que fazes no caso hipotético, um juízo que aplica um princípio geral que também é relevante para o caso actual. Não é uma questão de compaixão, mas de simples relação, para ver com que atitudes nos comprometemos.
O reconhecimento da realidade do outro e da possibilidade de nos colocarmos no seu lugar, é essencial. Vês a situação presente como um espécime de um esquema mais geral, em que os caracteres podem ser trocados. O facto crucial introduzido neste esquema é a atitude que tens para com o teu próprio caso, ou então um aspecto da perspectiva que assumes em relação às tuas próprias necessidades, acções e desejos. Ao lhes atribuíres, de facto, um certo interesse objectivo e ao reconheceres os outros como pessoas como tu, torna possível alargares este interesse objectivo às necessidades e desejos das pessoas em geral, ou àqueles indivíduos particulares cuja situação está a ser considerada. Isso obtém-se pelo argumento esquemático. Mas a intuição inicial no teu caso é o que deve ser investigado.
É importante que as razões pelas quais acreditas que os outros devem considerar os teus interesses, não devem ser referidas especificamente como tuas. Quer dizer, deves estar preparado para assegurar que se estivesses na posição em questão, outras pessoas teriam como sua razão ajudar-te apenas porque alguém estaria em necessidade. Doutro modo, não seria possível concluir, através da presença destas razões no evento, que precisarias de ajuda por razões similares às do caso presente, quando outra pessoa estivesse na situação difícil que estás quando a ajudas a ela. Assim, para explicar como funciona o argumento, devemos descobrir um aspecto da tua atitude relativamente às tuas necessidades, desejos e interesses que permita que os encares como merecedoras de consideração simplesmente porque são como as necessidades, desejos e interesses de alguém, e não porque são tuas.
Se existir de facto essa atitude, então a forma do argumento intuitivo que temos estado a considerar não é realmente essencial — uma vez que é possível trazer essa atitude para lidar directamente com as necessidades, desejos e interesses de outra pessoa. Os seus interesses são os interesses de alguém tanto quanto são os teus interesses. Contudo, o argumento pelo menos revela a relação entre atitudes relativamente a ti e atitudes relativamente aos outros casos, e permite-nos focalizar a nossa análise nas atitudes deste último tipo, que são mais vívidas e requerem menos esforço da imaginação. Se o sentido da realidade de outra pessoa é suficientemente vívido, o argumento pode ser supérfluo; mas se a maioria de nós é cega, em diversos graus, relativamente às outras pessoas, é útil pedir que nos coloquemos no seu lugar, remetendo para um elemento objectivo na preocupação connosco próprios e generalizar a partir daí.
Thomas Nagel
Tradução e adaptação de Vítor João Oliveira
Retirado de Textos de Apoio ao Manual Arte de Pensar - Didáctica Editora.

quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

EGOÍSMO PSICOLÓGICO



O egoísmo psicológico é uma teoria da motivação que afirma que todos os nossos desejos últimos se referem a nós mesmos. Sempre que queremos bem aos outros (ou mal), temos esses desejos que se referem aos outros apenas instrumentalmente; preocupamo-nos com os outros apenas porque pensamos que o seu bem-estar influenciará o nosso próprio bem-estar. Como afirmei, o egoísmo é uma teoria descritiva, não é normativa. Procura caracterizar o que de facto motiva os seres humanos, mas nada diz sobre se essa motivação é certa ou errada.
O egoísmo tem exercido uma enorme influência nas ciências sociais e tem penetrado de forma ampla no pensamento das pessoas comuns. Os economistas pensam tipicamente que os seres humanos são motivados por "um interesse próprio racional", o que exclui qualquer preocupação redutível ao bem-estar dos outros. E as pessoas comuns afirmam frequentemente que as pessoas ajudam os outros porque isso as faz sentir bem com elas próprias ou porque procuram a aprovação de terceiros.
É fácil inventar explicações egoístas mesmo para os actos de auto-sacríficio mais pungentes. O soldado na trincheira que se faz rebentar juntamente com uma granada para salvar a vida dos seus camaradas, é um lugar-comum na bibliografia sobre o egoísmo. Como pode esse acto resultar do interesse próprio se o soldado sabe que acabará com a sua vida? O egoísta pode responder que o soldado percebe nesse instante que prefere morrer a sofrer a culpa que o perseguiria para sempre se se salvasse a si próprio e deixasse que os seus amigos morressem. O soldado prefere morrer e nada mais sentir, a viver e sofrer os tormentos dos condenados. Esta resposta pode parecer forçada, mas ainda está por determinar a razão por que a devemos considerar falsa.
As críticas que têm surgido contra o egoísmo podem ser divididas em três categorias. Primeiro, há a tese de que não é genuinamente uma teoria. Segundo, há a alegação de que se trata de uma teoria refutada pelo que observamos no comportamento humano. Terceiro, há a ideia de que, embora o egoísmo seja uma teoria consistente com o que observamos, há outras considerações que não são evidentes que sugerem que deve ser rejeitada em favor de uma teoria alternativa, o pluralismo da motivação, segundo a qual os seres humanos tanto têm desejos últimos egoístas como altruístas.
Elliott Sober
Tradução e adaptação de Vítor João Oliveira
Retirado de Textos de apoio ao Manual Arte de Pensar - Didática Editora

O EGOÍSMO ÉTICO É ARBITRÁRIO


Há toda uma família de perspectivas morais que têm em comum o seguinte: todas implicam dividir as pessoas em grupos e em afirmar que os interesses de alguns grupos têm mais importância do que os dos outros. O racismo é o exemplo mais óbvio: o racismo divide as pessoas em grupos segundo a raça e concede mais importância aos interesses de uma raça do que aos outros. (...)
Podem tais pontos de vista ser defendidos? (...)
Há um princípio geral que barra o caminho a uma tal defesa, a saber: só podemos justificar o tratamento diferenciado das pessoas se pudermos mostrar que há uma diferença factual entre elas que seja relevante para justificar a diferença de tratamento. (...)
O racismo é uma doutrina arbitrária, pois advoga o tratamento diferenciado das pessoas apesar de não exisitirem entre elas diferenças que o justifiquem.
O egoísmo ético é uma teoria moral do mesmo género. Advoga que cada pessoa divida o mundo em duas categorias de pessoas - nós e todos os outros - e que encare os interesses dos do primeiro grupo como mais importantes do que os interesses dos do segundo grupo. Mas, cada um de nós pode perguntar, qual é afinal a diferença entre mim e todos os outros que justifica colocar-me a mim mesmo nesta categoria especial? Serei mais inteligente? Gozarei mais a minha vida? Serão as minhas realizações mais notáveis? Terei necessidades e capacidades assim tão diferentes das necessidades e capacidades dos outros? Em resumo, o que me torna tão especial? Ao não fornecer uma resposta, o egoísmo ético revela-se uma doutrina arbitrária, no mesmo sentido em que o racismo é arbitrário. Além de explicar a razão pela qual o egoísmo ético é inaceitável, isto lança também alguma luz sobre a questão de saber por que devemos importar-nos com os outros.
Devemos importar-nos com os interesses das outras pessoas pela mesma razão que nos importamos com os nossos; pois os seus desejos e necessidades são comparáveis aos nossos. (...) É esta tomada de consciência, de que estamos em plano de igualdade uns com os outros, que constitui a razão mais profunda pela qual a nossa moralidade deve incluir algum reconhecimento das necessidades dos outros, e a razão pela qual, portanto, o egoísmo ético fracassa enquanto teoria moral.

James Rachels, Elementos de Filosofia Moral, Gradiva- (Colecção Filosofia Aberta - pp. 132 -4)

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

DOIS EGOÍSMOS


De acordo com a teoria do egoísmo psicológico, as pessoas agem sempre apenas em função do seu interesse pessoal. Segundo a teoria do egoísmo ético, as pessoas devem agir sempre apenas em função do seu interesse pessoal. Enquanto que o egoísmo psicológico é uma teoria puramente descritiva sobre o comportamento humano, o egoísmo ético é uma teoria normativa.
Nenhuma das perspectivas egoístas implica a outra. Por isso, não seremos inconsistentes se aceitarmos uma delas ao mesmo tempo que rejeitamos a outra. Também não há qualquer inconsistência na aceitação de ambas as perspectivas. Isto, aliás, é algo que ocorre com mais frequência que a aceitação de só uma delas. No entanto, parece que se aceitamos as duas formas de egoísmo chegamos a uma conclusão bastante estranha: todos fazem precisamente aquilo que devem fazer. Sendo assim, que função prática terá o egoísmo ético? Dada esta conclusão, este certamente não se destina a regular de algum modo o nosso comportamento, e assim não faz aquilo que geralmente se espera de uma teoria moral. Quando muito, o egoísmo ético pode servir para aliviar certos sentimentos de culpa. Como pergunta um autor que aceita ambas as perspectivas egoístas: «Por que te hás-de sentir culpado por procurar a tua própria felicidade quando é isso que todos os outros também fazem?
Mas não nos precipitemos a concluir que a conjunção das duas perspectivas egoístas implica que todos fazem precisamente aquilo que devem fazer. Afinal, tal como as formulámos elas permanecem ambíguas, pois cada uma delas pode querer dizer duas coisas muito diferentes. Supõe que, para dissolveres a ambiguidade, perguntas ao egoísta psicológico: estás a dizer que as pessoas agem em função daquilo que elas pensam ser o seu interesse pessoal ou que agem em função daquilo que é realmente o seu interesse pessoal? Aqui o egoísta terá que optar pela primeira hipótese, pois a segunda é trivialmente falsa. É muito fácil apontar exemplos de pessoas que, embora ajam de certo modo por pensarem que assim estão a servir os seus interesses da melhor maneira, na verdade estão profundamente enganadas a esse respeito. Um alcoólico pode pensar que beber uma garrafa de whisky por dia é a melhor coisa que pode fazer para promover o seu bem-estar, mas está enganado. Um criminoso que assalta uma ourivesaria pode pensar que isso lhe vai permitir ter uma vida confortável, mas se acabar por ser preso verificará que estava enganado. Deste modo, o egoísmo psicológico só pode ter alguma plausibilidade na sua versão subjectiva, ou seja, entendido como a tese de que as pessoas agem em função daquilo que julgam, correcta ou incorrectamente, ser o seu interesse pessoal.
E o que quer dizer o egoísta ético? Que as pessoas devem agir em função daquilo que elas pensam ser o seu interesse pessoal ou que devem agir em função daquilo que é realmente o seu interesse pessoal? Aqui o egoísta tem de optar pela segunda hipótese, pois a primeira não é minimamente plausível: ela implica que, se o alcoólico e o assaltante forem egoístas, devem, respectivamente, beber o whisky e assaltar a ourivesaria, o que é absurdo. Afinal, o que deve fazer um egoísta? Como a ele só lhe interessa promover o seu bem-estar, deve proceder de modo a ser bem sucedido nesse propósito: deve tentar fazer o que realmente promove o seu bem-estar. Por isso, não se pode limitar a obedecer aos seus impulsos, fazendo aquilo que, irreflectidamente, lhe parece ser melhor para si, e procurando apenas satisfazer os seus desejos imediatos. Ele tem de avaliar racionalmente as situações para descobrir qual é de facto a maneira de agir que melhor serve os seus interesses.
Assim, enquanto que o egoísmo psicológico só pode ser plausível na sua versão subjectiva, o egoísmo ético deve ser entendido na sua versão objectiva. E, portanto, aceitar as duas perspectivas não nos compromete com a ideia de que todos fazem aquilo que devem fazer. Quem aceita os dois tipos de egoísmo tende antes pensar o seguinte: é verdade que só o amor próprio nos move, que no fundo só estamos interessados no nosso próprio bem-estar, e não há nada de errado nisso, só que muitas vezes estamos enganados quanto àquilo que é melhor para nós; por isso, devemos modificar o nosso comportamento, procedendo de uma maneira racional, de modo a fazermos aquilo que é mesmo melhor para nós. O egoísta ético insistirá, por exemplo, na ideia de que em muitas ocasiões devemos ajudar os outros. Mesmo que isso nos traga alguns custos, a longo prazo esses custos poderão ser amplamente compensados quando precisarmos de ajuda e os outros nos ajudarem, coisa que não fariam se antes nos tivéssemos recusado a ajudar. Deste modo, por vezes o egoísta pode e deve cooperar com os outros. É claro que, melhor do que ser cooperativo, é conseguir parecê-lo sem o ser. Vale a pena concluir com a descrição que Platão apresenta do «homem injusto», pois esta dá-nos uma excelente imagem do egoísta bem sucedido:
Em primeiro lugar, que o injusto faça como os artistas qualificados — como um piloto de primeira ordem, ou um médico, repara no que é impossível e no que é possível fazer com a sua arte, e mete ombros a esta tarefa, mas abandona aquela. E ainda, se vacilar nalgum ponto, é capaz de o corrigir. Assim também o homem injusto deve meter ombros aos seus injustos empreendimentos, com correcção, passando despercebido, se quer ser perfeitamente injusto. Em pouca conta deverá ter-se quem for apanhado. Pois o supra-sumo da injustiça é parecer justo sem o ser. Dêmos, portanto, ao homem perfeitamente injusto a mais completa injustiça; não lhe tiremos nada, mas deixemos que, ao cometer as maiores injustiças, granjeie para si mesmo a mais excelsa fama de justo, e, se acaso vacilar nalguma coisa, seja capaz de a reparar, por ser suficientemente hábil a falar, para persuadir; e, se for denunciado algum dos seus crimes, que exerça a violência, nos casos em que ela for precisa, por meio da sua coragem e força, ou pelos amigos e riquezas que tenha granjeado.
(Platão, A República, Livro II, 360e-361b)
Pedro Galvão
Retirado de http://www.didacticaeditora.pt/ , textos de apoio ao Manual - A Arte de Pensar, 10º Ano

quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

O EGOÍSMO


Por que razão havemos de ser morais? Esta pergunta exige razões para agirmos moralmente. Quem faz esta pergunta pode aceitar que é incorrecto matar crianças por prazer, por exemplo. Essa pessoa não quer saber o que, é correcto ou incorrecto; o que ela quer saber é se há alguma razão para fazer o que é correcto ( e para não fazer o que é incorrecto). Do mesmo modo, uma pessoa pode aceitar que, quando se vai à praia, se deve levar toalha; mas essa pessoa pode perguntar que razões há para ir à praia. Analogamente, pode aceitar-se que, se agirmos moralmente, não devemos matar crianças por prazer; mas ao mesmo tempo pode perguntar-se que razões há para agir moralmente.
O que está em causa não é a justificação moral das nossas acções, ou seja, não se trata de explicar por que razão uma dada acção é correcta ou incorrecta. Uma maneira mais simples de compreender o que está em causa é perguntar o seguinte: por que razão não havemos de fazer o que nos apetece, independentemente de ser correcto ou incorrecto? Geralmente, quando agimos, temos em conta unicamente os nossos próprios interesses: vamos à praia porque nos apetece, bebemos água porque temos cede. Mas agir eticamente parece exigir que tenhamos em conta os interesses alheios: no autocarro, cedemos o nosso lugar a uma grávida, a uma pessoa doente ou idosa, não porque nos apeteça ficar de pé, mas porque temos em consideração os seus interesses. Ora, há quem defenda que na realidade toda a acção é egoísta e que o altruísmo é apenas uma ilusão.
Uma pessoa egoísta só tem em conta os seus próprios interesses.
Uma pessoa altruísta tem também em conta os interesses alheios.
Se for verdade que toda a acção é egoísta, as razões para agir eticamente têm de ser egoístas, ou seja, a razão para ceder o nosso lugar no autocarro a um idoso, por exemplo, poderá ser a seguinte: porque queremos que, quando chegarmos nós a idosos, nos façam o mesmo. Assim, para saber por que razão havemos de ser morais, temos de saber primeiro se toda a acção é egoísta.
Em filosofia discutem-se dois tipos de egoísmo:
O egoísmo psicológico (ou descritivo) é a teoria que defende que as pessoas são, de facto, egoístas, ainda que não o reconheçam.
O egoísmo ético (ou normativo) é a teoria que defende que as pessoas têm o dever de ser egoístas.
Quem defende que só a acção por interesse próprio é racional terá de defender que a ética se baseia de alguma forma no egoísmo, para que a acção moral seja racional. Contudo, pode atacar-se o pressuposto de que só a acção por interesse próprio é racional, argumentando ao invés que é a acção exclusivamente egoísta que é irracional.
A estratégia típica de quem defende o egoísmo psicológico é argumentar que todos os comportamentos que parecem altruístas são, de facto, egoístas se os analisarmos cuidadosamente.
Aires Almeida e Desidério Murcho, orgs. (2006) «O Egoísmo», in Textos e Problemas de Filosofia. Lisboa: Plátano Editora, pp.58-9

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

ÉTICA E MORAL


Uma distinção indistinta
A pretensa distinção entre a ética e a moral é intrinsecamente confusa e não tem qualquer utilidade. A pretensa distinção seria a seguinte: a ética seria uma reflexão filosófica sobre a moral. A moral seria os costumes, os hábitos, os comportamentos dos seres humanos, as regras de comportamento adoptadas pelas comunidades. Antes de vermos por que razão esta distinção resulta de confusão, perguntemo-nos: que ganhamos com ela?
Em primeiro lugar, não ganhamos uma compreensão clara das três áreas da ética: a ética aplicada, a ética normativa e a metaética. A ética aplicada trata de problemas práticos da ética, como o aborto ou a eutanásia, os direitos dos animais, ou a igualdade. A ética normativa trata de estabelecer, com fundamentação filosófica, regras ou códigos de comportamento ético, isto é, teorias éticas de primeira ordem. A metaética é uma reflexão sobre a natureza da própria ética: Será a ética objectiva, ou subjectiva? Será relativa à cultura ou à história, ou não?
Em segundo lugar, não ganhamos qualquer compreensão da natureza da reflexão filosófica sobre a ética. Não ficamos a saber que tipo de problemas constitui o objecto de estudo da ética. Nem ficamos a saber muito bem o que é a moral.
Em conclusão, nada ganhamos com esta pretensa distinção.
Mas, pior, trata-se de uma distinção indistinta, algo que é indefensável e que resulta de uma confusão. O comportamento dos seres humanos é multifacetado; nós fazemos várias coisas e temos vários costumes e nem todas as coisas que fazemos pertencem ao domínio da ética, porque nem todas têm significado ético. É por isso que é impossível determinar à partida que comportamentos seriam os comportamentos morais, dos quais se ocuparia a reflexão ética, e que comportamentos não constituem tal coisa. Fazer a distinção entre ética e moral supõe que podemos determinar, sem qualquer reflexão ou conceitos éticos prévios, quais dos nossos comportamentos pertencem ao domínio da moral e quais terão de ficar de fora. Mas isso é impossível de fazer, pelo que a distinção é confusa e na prática indistinta.
Vejamos um caso concreto: observamos uma comunidade que tem como regra de comportamento descalçar os sapatos quando vai para o jardim. Isso é um comportamento moral sobre o qual valha a pena reflectir eticamente? Como podemos saber? Não podemos. Só podemos determinar se esse comportamento é moral ou não quando já estamos a pensar em termos morais. A ideia de que primeiro há comportamentos morais e que depois vem o filósofo armado de uma palavra mágica, a "ética", é uma fantasia. As pessoas agem e reflectem sobre os seus comportamentos e consideram que determinados comportamentos são amorais, isto é, estão fora do domínio ético, como pregar pregos, e que outros comportamentos são morais, isto é, são comportamentos com relevância moral, como fazer abortos. E essas práticas e reflexões não estão magicamente separadas da reflexão filosófica. A reflexão filosófica é a continuação dessas reflexões.
Evidentemente, tanto podemos usar as palavras "ética" e "moral" como sinónimas, como podemos usá-las como não sinónimas. É irrelevante. O importante é saber do que estamos a falar se as usarmos como sinónimas e do que estamos a falar quando não as usamos como sinónimas. O problema didáctico, que provoca dificuldades a muitos estudantes, é que geralmente os autores que fazem a distinção entre moral e ética não conseguem, estranhamente, explicar bem qual é a diferença — além de dizer coisas vagas como "a ética é mais filosófica".
Se quisermos usar as palavras "moral" e "ética" como não sinónimas, estaremos a usar o termo "moral" unicamente para falar dos costumes e códigos de conduta culturais, religiosos, etc., que as pessoas têm. Assim, para um católico é imoral tomar a pílula ou fazer um aborto, tal como para um muçulmano é imoral uma mulher mostrar a cara em público, para não falar nas pernas. Deste ponto de vista, a "moral" não tem qualquer conteúdo filosófico; é apenas o que as pessoas efectivamente fazem e pensam. A ética, pelo contrário, deste ponto de vista, é a disciplina que analisa esses comportamentos e crenças, para determinar se eles são ou não aceitáveis filosoficamente. Assim, pode dar-se o caso que mostrar a cara em público seja imoral, apesar de não ser contrário à ética; pode até dar-se o caso de ser anti-ético defender que é imoral mostrar a cara em público e proibir as mulheres de o fazer.
O problema desta terminologia é que quem quer que tenha a experiência de escrever sobre assuntos éticos, percebe que ficamos rapidamente sem vocabulário. Como se viu acima, tive de escrever "anti-ético", porque não podia dizer "imoral". O nosso discurso fica assim mais contorcido e menos directo e claro. Quando se considera que "ética" e "moral" são termos sinónimos (e etimologicamente são sinónimos, porque são a tradução latina e grega uma da outra), resolve-se as coisas de maneira muito mais simples. Continuamos a fazer a distinção entre os comportamentos das pessoas e as suas crenças morais, mas não temos de introduzir o artificialismo de dizer que essas crenças morais, enquanto crenças morais, estão correctas, mas enquanto preferências éticas podem estar erradas. Isto só confunde as coisas. É muito mais fácil dizer que quem pensa que mostrar a cara é imoral está pura e simplesmente enganado, e está a confundir o que é um costume religioso ou cultural com o que é defensável. Peter Singer, James Rachels, Thomas Nagel, e tantos outros filósofos centrais, usam os termos "ética" e "moral" como sinónimos. Para falar dos costumes e códigos religiosos, temos precisamente estas expressões muito mais esclarecedoras: "costumes" e "códigos religiosos".

Desidério Murcho (Texto retirado da Revista de Filosofia - Crítica na Rede)

domingo, 10 de janeiro de 2010

ÉTICA E OBJECTIVIDADE viii


A importância dos interesses humanos
A discussão precedente deve ter afastado a maior parte das nossas dúvidas sobre a objectividade da ética, mas não todas elas. Podem subsistir algumas dúvidas obstinadas, e por uma boa razão. Ainda não fomos ao fundo da questão. Precisamos de aprofundar um pouco a natureza do raciocínio ético.
Toda a investigação, seja ela científica, matemática ou ética, implica raciocinar: reunimos dados, elaboramos argumentos e retiramos conclusões. Mas o raciocínio não pode prosseguir para sempre. Se eu disser a uma pessoa que A é verdade e ela quiser saber porquê, posso indicar B como razão. Se ela colocar B em questão, posso justificar B apelando a C, e assim por diante. Porém, chegamos ao fim da linha em algum ponto. Isto significa que toda a cadeia de raciocínio acaba por apelar a uma consideração que não está ela própria justificada, sendo simplesmente assumida como verdadeira.
O raciocínio científico termina quando chegamos a factos simples sobre o mundo físico. Sabemos, por exemplo, que as galáxias se estão a afastar. Como sabemos isto? Sabemo-lo devido aos factos sobre a luz que atinge a Terra, mais precisamente aos factos sobre o desvio para o vermelho no espectro. Como sabemos o que significa o que significa o desvio para o vermelho? Sabemo-lo devido a muitas observações e experiências já realizadas. Este exemplo está muito simplificado, mas, quando chegamos aos factos observados, mais simples, chegámos à bases em que assenta tudo o resto. O raciocínio matemático é um pouco diferente, já que não apela aos factos sobre o mundo físico. Baseia-se antes em axiomas, que podem ser considerados auto-evidentes ou simplesmente assumidos como verdadeiros para os efeitos do argumento.
Onde terminam os argumentos éticos? A que apelam em última análise? Olhemos com mais atenção para um dos nossos exemplos anteriores. O Sr. Santos é um mau homem porque, entre outras coisas, costuma mentir. Esta é uma boa razão para considerá-lo moralmente deficiente, dissemos, pelo que este facto constitui parte da «prova» de que ele se comporta imoralmente. Mas por que razão isso o desfavorece? Por que razão é mau mentir? É fácil explicar.
Mentir é mau por diversas razões. Em primeiro lugar, prejudica as pessoas. Se eu mentir a uma pessoa e ela acredita em mim, terá formado uma crença falsa. Isso pode fazer as coisas correrem-lhe mal de várias maneiras. Suponha-se que ela me pergunta quando começa o concerto e que eu lhe digo que começa às 9:00, embora saiba que começa às 8:00. Ela chega às 9:00 apenas para descobrir que perdeu o concerto. Se multiplicarmos isto muitas vezes, veremos por que razão é importante que as pessoas nos digam a verdade. Em segundo lugar, mentir é uma violação da confiança. Quando uma pessoa acredita em mim sem verificar o que digo, está a confiar em mim, pelo que, se lhe mentir, estarei a prejudicá-la de uma forma especial, tirando partido da sua confiança. É por esta razão que, quando nos mentem, sentimos isso como uma afronta pessoal. Por fim, podemos sublinhar que a regra contra mentir é uma regra social fundamental, no sentido em que nenhuma sociedade poderia existir sem ela. Se não presumirmos que as pessoas dizem a verdade umas às outras, a comunicação não poderá ter lugar. Na ausência de comunicação entre os seus membros, a sociedade não pode existir.
Deste modo, o juízo de que mentir é errado não é arbitrário. É apoiado por boas razões que vão bastante fundo. Suponha-se, no entanto, que uma pessoa não ficava satisfeita e queria saber por que razão importa que as pessoas sejam prejudicadas, que a confiança seja violada ou que a sociedade exista. Poderíamos dizer um pouco mais. Poderíamos sublinhar que as pessoas vivem pior quando são prejudicadas ou quando não podem confiar nos outros. Poderíamos sublinhar que todos ficaríamos muito pior se não pudéssemos viver com outras pessoas em sociedades cooperativas e pacíficas. Mas essa pessoa insiste: por que razão importa que as pessoas vivam pior? Aqui chegámos ao fim da linha. Do mesmo modo que o raciocínio científico termina no recurso a observações de factos físicos simples, o raciocínio ético termina em considerações sobre aquilo que faz as pessoas viverem melhor ou pior – ou, talvez, em considerações sobre aquilo que faz os seres sencientes viverem melhor ou pior.
Algumas pessoas pensam que isto justifica o uso da palavra «subjectiva» para descrever a ética – a ética é subjectiva porque, em última análise, diz respeito àquilo que faz as pessoas viverem melhor ou pior. Eu não usaria a palavra dessa forma, mas, como é evidente, os outros são livres de a usar como bem entenderem. Aquilo que importa é que fique claro o que se segue da nossa escolha terminológica. Se, ao dizermos que a ética é subjectiva, quisermos dizer apenas que, em última análise, esta é sobre aquilo que faz as pessoas viverem melhor ou pior, não se segue daqui que a ética seja arbitrária. Tão pouco se segue que as pessoas sejam livres de aceitar quaisquer juízos éticos de que gostem, ou que as opiniões de uma pessoa sejam tão boas como as de qualquer outra. A ética permanece uma questão racional e continua a ser objectivamente verdade que a ética exige algumas coisas e proíbe outras. Os juízos éticos podem ainda ser correctos ou incorrectos. Desta forma, a objectividade da ética é segura.

Problemas da Filosofia, James Rachels, Gradiva (Colecção Filosofia Aberta, pp. 255-8)

sábado, 9 de janeiro de 2010

ÉTICA E OBJECTIVIDADE vii


O argumento metafísico. Existe outro argumento para apreciar, nomeadamente a ideia de que a ética não pode ser objectiva porque os «valores» não existem enquanto parte do mundo objectivo.
Se fizermos um inventário do mundo, anotando todas as coisas que existem, poderemos fazer uma listagem muito longa que mencione pedras, rios, montanhas, plantas e animais. Encontraríamos edifícios, desertos, grutas, ferro e ar. Olhando para cima, veríamos estrelas e galáxias. Obviamente, nunca conseguiríamos concluir essa lista. A vida é demasiado curta, existem demasiadas coisas no universo e somos demasiado ignorantes. Mas julgamos saber, pelo menos aproximadamente, que tipos de coisas existem. Existem objectos físicos, feitos de átomos, que obedecem às leis da física, da química e da biologia; e existem seres conscientes, como nós próprios, que talvez sejam apenas outro tipo de objecto físico. Um inventário completo seria apenas uma lista mais longa dos mesmos tipos de coisas, ou pelo menos, é isso que pensamos.
Mas, entre todas essas coisas, onde estão os valores? Em lado nenhum, parece ser a resposta. Os valores não existem, pelo menos da mesma forma que as pedras e os rios. Considerado à margem dos sentimentos e dos interesses humanos, o mundo parece não incluir quaisquer valores. David Hume exprimiu esta ideia com clareza:
Considere qualquer acção julgada viciosa: o assassínio deliberado, por exemplo. Examine-a de todas as perspectivas e veja se consegue encontrar essa questão de facto, ou existência real, a que se chama vício. Seja qual for a forma como a considere, encontrará apenas certas paixões, motivos, volições e pensamentos. Não existe qualquer outra questão de facto no caso. O vício escapar-lhe-á inteiramente enquanto considerar o objecto. Nunca o irá encontrar, até que vire a sua reflexão para o seu próprio peito e encontre um sentimento de reprovação, que sugere em si, relativo a essa acção. Encontramos aqui uma questão de facto, mas esta consiste num objecto dos sentimentos, e não da razão.
Obviamente, podem existir outros seres conscientes que também tenham sentimentos e interesses – animais não humanos, por exemplo, e talvez habitantes de outros planetas. Porém, eles estarão na mesma posição que nós. Não encontrarão quaisquer valores no mundo que os rodeia. Só as suas «paixões, motivos, volições e pensamentos» farão surgir os seus próprios valores.
Outros filósofos desenvolveram este tema. (…) À semelhança de Hume, Nietzsche nega que existam factos morais. «Não existem fenómenos morais», escreve, «existem apenas interpretações morais dos fenómenos». Deste modo, a forma correcta de pensar sobre a ética não é focar a moralidade, concebida como um objecto unificado, mas estudar as moralidades, os sistemas de valores historicamente contingentes que foram criados por povos diferentes em épocas diferentes. O próprio Nietzsche dedica um espaço considerável a analisar a «moralidade dos escravos», que é a moralidade dominante na cultura ocidental. Despreza a moralidade de escravos por glorificar qualidades humanas como a humildade, a abnegação e a obediência. Afirma que esta não é digna dos homens nobres, e defende que a substituamos por uma ética que sublinhe a assertividade e o domínio.
Este é o «argumento metafísico»: as opiniões éticas não podem ser objectivamente verdadeiras ou falsas porque não existe uma realidade moral a que possam corresponder ou não corresponder. Esta é a diferença profunda entre a ética e a ciência. A ciência descreve uma realidade que existe independentemente dos observadores. Se os seres sencientes deixassem de existir, o mundo permaneceria inalterado nos restantes aspectos – continuaria a existir e não deixaria de ser precisamente como a ciência o descreve. No entanto, se não existissem quaisquer seres sencientes, não existiria qualquer dimensão moral na realidade. Podemos resumir o argumento desta forma:
1. Existem verdades objectivas na ciência porque existe uma realidade objectiva – o mundo físico – que a ciência descreve.
2. 2. Mas não existe qualquer realidade moral comparável à realidade do mundo físico. Não existe «aí fora» algo que a ética possa descrever.
3. Logo, não existem verdades objectivas na ética.
Uma vez mais, podemos perguntar se isto é correcto. É verdade, julgo eu, que não existe qualquer realidade moral comparável à realidade do mundo físico. Contudo, não se segue daqui que não possam existir verdades objectivas na ética. A ética pode ter uma base objectiva de outra forma.
Uma investigação pode ser objectiva de duas formas:
- Uma investigação pode ser objectiva porque existe uma realidade independentemente que esta descreve correcta ou incorrectamente. A ciência é objectiva neste sentido.
-Uma investigação pode ser objectiva porque existem métodos de raciocínio fiáveis que determinam a verdade e a falsidade no seu domínio. A matemática é objectiva neste sentido. Os resultados matemáticos são objectivos porque são demonstráveis com os tipos relevantes de argumentos.
A ética é objectiva no segundo sentido. Não descobrimos se uma opinião ética é verdadeira comparando-a com uma espécie de «realidade moral». Para compreender a tolice desta noção, basta tentar imaginar como seria fazer essa comparação. Descobrimos antes o que é certo ou o que se deve fazer examinado as razões ou os argumentos que, numa dada questão, podem ser avançados a favor de cada um dos lados – é certo fazer aquilo que está apoiado pelas melhoras razões para o fazer. Basta que possamos identificar e avaliar as razões a favor e contra os juízos éticos e que cheguemos a conclusões racionais.
Problemas da Filosofia, James Rachels, Gradiva ( Colecção Filosofia Aberta, pp. 251-5)

sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

ÉTICA E OBJECTIVIDADE vi


2. Muitas vezes há boas razões a favor de ambos os lados de uma questão ética, e isto leva as pessoas a desesperar quanto às perspectivas de se chegar alguma vez a conclusões definidas. Se eu disser que o Sr. Santos é um mau homem porque é frequentemente cruel para com outras pessoas, alguém poderá responder que ele trabalha com empenho por algumas boas causas. O primeiro facto é-lhe adverso, mas o segundo é-lhe favorável. Não torna isto impossível concluir que ele é um bom homem ou um mau homem?
Este aspecto do pensamento moral não deve fazer-nos desesperar. O pensamento moral exige que tenhamos em conta os factos e que os ponderemos. No que respeita ao Sr. Santos, a conclusão correcta seria que ele é globalmente um mau homem, ainda que tenha algumas coisas boas. Ou a conclusão correcta pode ser simplesmente que ele é bom em alguns aspectos e mau noutros aspectos. Tudo depende apenas dos factos. As questões difíceis são todas assim: há muito a dizer a favor de ambos os lados.
Ignora-se frequentemente esta ideia simples. No calor de uma discussão sobre a pena de morte ou qualquer outra questão similar, é comum as pessoas de um dos lados negarem que haja boas razões do outro lado. Sentem que, para vencer o debate, nada podem conceder aos seus adversários. Como é óbvio, isto significa que o debate prosseguirá infindavelmente. Se nos basearmos nesta suposição - se presumirmos que nada se poderá provar a não ser que todas as razões relevantes sejam favoráveis a apenas um dos lados -, raramente alguém conseguirá provar alguma coisa. A realidade é confusa. Porém, isto não nos impede de chegar a conclusões razoáveis. Precisamos apenas de tornar as nossas conclusões apropriadamente modestas.
3. Por fim, é fácil confundir duas coisas que importa manter separadas: provar que uma opinião é verdadeira e persuadir alguém a aceitar a nossa prova. A primeira é uma questão de raciocínio sólido; a segunda é um processo psicológico que não envolve apenas o raciocínio. Uma pessoa pode não aceitar um argumento perfeitamente bom por ser teimosa, preconceituosa, ou simplesmente não estar interessada em descobrir a verdade. Disto não se segue que o próprio argumento seja deficiente. Um membro do Klu Klux Klan ou um neonazi podem não escutar os bons argumentos sobre o racismo, mas isto diz algo sobre eles, e não sobre os argumentos. Além disso, há um motivo mais geral para as pessoas resistirem a ouvir a razão quando a moralidade está em questão. Aceitar um argumento moral significa frequentemente que temos de alterar o nosso comportamento. As pessoas podem não querer fazer isso, pelo que não é surpreendente que por vezes se façam surdas.

Problemas da Filosofia, James Rachels Gradiva - (Colecção Filosofia Aberta - pp 250-1)

quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

ÉTICA E OBJECTIVIDADE v


O argumento de ausência de provas. Uma segunda diferença entre a ciência e a ética parece ser o facto de existirem, na ciência, formas de resolver racionalmente os desacordos. Embora os cientistas possam discordar sobre muitas coisas, estão de acordo quanto à maneira de resolver as suas controvérsias. Fazem observações, realizam experiências e acabam por chegar a um acordo. Isto significa que, na ciência, o desacordo é apenas temporário. Os cientistas procuram resolver os seus desacordos e sabem como fazê-lo. Mas o desacordo ético parece diferente. Na ética, o desacordo é interminável, dado que ninguém pode provar quem tem razão e quem está enganado. Ninguém faz sequer a menor ideia de como se prova seja o que for.
Podemos resumir assim este argumento:
1. Se houvesse verdade objectiva na ética, deveria ser possível provar as opiniões éticas verdadeiras.
2. Mas não é possível provar que uma opinião ética é verdadeira.
3. Logo, não há verdade objectiva na ética.
Será isto correcto? Sem dúvida parece plausível. Quem tenha tentado persuadir outra pessoa numa discussão sobre uma questão ética sabe que frustração, isso implica. Por exemplo, sejam quais forem as razões apresentadas, um pacifista não ficará convencido de que por vezes a violência é necessária. Ou, para olhar para o mesmo exemplo a partir da perspectiva oposta, não convenceremos um defensor da violência a mudar de ideias por muito que lhe recordemos que a violência só produz violência.
Se nos virarmos para questões mais simples, no entanto, as coisas parecem muito diferentes. Suponha-se que a questão é a de saber se uma certa médica é imoral. Eu digo que a Drª Joana se comporta vergonhosamente e outra pessoa fica surpreendida com esta afirmação, já que tem a impressão de que ela é uma boa médica. Por isso, aponto várias coisas:
- A Drª Joana tem acções de uma empresa farmacêutica local que ajudou a criar, e prescreve os medicamentos dessa empresa aos seus pacientes, mesmo que estes tenham uma utilidade questionável para os seus problemas.
- Ela bebe muito e por vezes trata os pacientes sob a influência do álcool.
- Ela ignora os conselhos dos outros médicos e sabe-se que fica zangada quando os seus pacientes querem uma segundo opinião.
- Ela não lê revistas de medicina nem tenta, de outra forma, manter-se a par do conhecimento médico actual.
Suponha-se que tudo isto é verdade. Não serão estes bons indícios de que ela é imoral? Não provará isto que ela é imoral? Suponha-se também que nada se pode dizer de importante a favor da opinião contrária, em sua defesa. Não resolverá isto a questão? Que mais poderia alguém querer como prova?
Ocorrem-nos facilmente outros exemplos. A prova de que o Sr Santos é um mau homem é o facto de ele costumar mentir e ser frequentemente cruel para com as outras pessoas. A prova de que o Sr. Silva é um jogador de poker imoral é o facto de ele fazer batota. A prova de que o professor Lopes não deveria ter dado teste na terça-feira é o facto de ele ter anunciado que o daria na quarta-feira. Obviamente, em cada caso podem existir considerações mitigadoras ou factos adicionais que importa ter em conta; mas o que interessa é que esses juízos não são meramente «subjectivos». É possível aduzir factos a seu favor e esses factos, considerados conjuntamente, podem constituir uma prova decisiva.
As provas éticas podem ser diferentes, em alguns aspectos, das provas científicas, mas isto não significa que as provas éticas sejam de algum modo deficientes. As provas éticas consistem em dar razões que apoiem conclusões morais. Se as razões forem suficientemente poderosas e não existirem considerações opostas que tenham o mesmo peso, a prova estará dada.
Isto pode parecer apressado. Se a ideia de que os juízos éticos admitem provas é tão óbvia, poderemos perguntar: por que razão a ideia contrária começou por ser tão plausível? Por que razão pensar que não há provas éticas é tão atraente intuitivamente? Há pelo menos três razões para isto.
1. Para começar, quando pensamos filosoficamente sobre ética, não pensamos muito sobre as questões simples. O próprio facto de serem tão óbvias torna-as aborrecidas, pelo que temos tendência para as ignorar. Atraem-nos antes as questões mais difíceis, como o pacifismo e o aborto. São mais interessantes. Porém, é isto que nos induz em erro. Se pensarmos apenas nas questões mais difíceis, podemos concluir naturalmente que não há provas em ética, já que ninguém parece ter uma prova demolidora das suas opiniões sobre o pacifismo ou o aborto. Podemos ignorar o facto de, em questões mais monótonas, dispormos facilmente de provas. Do mesmo modo, se nos concentrássemos apenas nas questões sobre as quais os cientistas discordam, poderíamos concluir que não há provas na ciência.

Problemas da Filosofia, James Rachels - Gradiva (Colecção Filosofia Aberta, pp 247-250)

segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

ÉTICA E OBJECTIVIDADE iv


Ética e ciência
Há várias coisas que podem tornar-nos cépticos quanto à ética. Reflectir sobre as diferenças entre culturas é uma delas. Outra é a ética parecer tão diferente da ciência. A ciência oferece o nosso paradigma de objectividade e a ética parece estar aquém da ciência de várias maneiras. Sendo assim, como poderá a ética ser objectiva? Seguem-se três argumentos contra a objectividade da ética que incidem em diferenças aparentes entre a ciência e a ética.
O argumento do desacordo. É preocupante que os desacordos éticos pareçam tão amplos e persistentes. Se a ética fosse uma questão de verdade objectiva, não deveríamos esperar um maior acordo a seu respeito? Porém, parece que em questões de ética as pessoas discordam sobre tudo. Têm opiniões opostas sobre o aborto, a pena de morte, o controle de armas, a eutanásia, o ambiente e o estatuto moral dos animais. Discordam quanto ao sexo, ao uso de drogas e à nossa obrigação de ajudar crianças necessitadas que vivem noutros países. A lista poderia continuar indefinidamente. No entanto, na ciência parece existir um amplo acordo no que respeita a todas as questões essenciais. A conclusão natural é que a ética, contrariamente à ciência, não passa de uma questão de opinião. Podemos resumir assim este argumento:
1. Na ética há um desacordo amplo e persistente.
2. A melhor explicação desta situação é não existir verdade objectiva na ética.
Logo, podemos concluir, pelo menos conjecturalmente, que não existe verdade objectiva na ética.
Será isto correcto? Podemos começar por observar que a ética é mais parecida com a ciência do que podemos pensar. Há um grande nível de consenso na ética. Todas as pessoas razoáveis concordam que o assassínio, a violação e o roubo são errados. Todas concordam que devemos dizer a verdade e cumprir as nossas promessas. Todas reconhecem que o rapto e a extorsão são ultrajantes e que o racismo é terrível. Também esta lista poderia continuar indefinidamente. Se alguém disser que algumas pessoas não concordam com estes juízos - por exemplo, poderemos responder que algumas pessoas discordam das descobertas da ciência - por exemplo, os médiuns e os que defendem que a Terra é plana. A situação é igual no que toca à ciência: a grande maioria das pessoas concorda, mas há alguns dissidentes, que são ignorados por boas razões. Na verdade, podem existir mais dissidentes na ciência do que na ética, se contarmos com os fundamentalistas religiosos que rejeitam o darwismo.
Na ética, então, há um acordo maciço sobre questões fundamentais. Mas também há desacordo quanto ao aborto, à pena de morte e às outras questões acima mencionadas. O que poderemos concluir daqui? Para começar, podemos observar que, de um ponto de vista social, as questões que geram o desacordo são, em sua maioria, menos importantes do que aquelas em que estamos de acordo. Por muito fortes que sejam as paixões suscitadas pelo debate sobre o aborto, esta questão é menos importante do que o assassínio, a veracidade ou o cumprimento de promessas. É menos importante porque as sociedades podem funcionar muito bem com diversas políticas para o aborto. Porém, a vida social seria impossível sem a proibição do assassínio. Do mesmo modo, a sociedade seria impossível se as pessoas não tivessem a obrigação de dizer a verdade e de cumprir as suas promessas. Para ver isto, basta tentar imaginar como seria viver numa sociedade em que estas regras não fossem aceites. O que aconteceria se as pessoas pudessem matar os outros à vontade? E se não existisse a presunção de que as pessoas dizem a verdade? E se não pudéssemos confiar nos outros quanto ao cumprimento das suas promessas? Nessas circunstâncias, a sociedade desintegrar-se-ia.
Podemos também observar que muitas das questões controversas são mais difíceis do que as questões em que concordamos. Para resolver a questão do aborto, teríamos de compreender racionalmente a razão pela qual a vida humana é valiosa. Em virtude de que propriedades das pessoas é errado matá-las? Por que razão é pior matar um ser humano do que matar um animal (se é que é pior)? Depois teríamos de descobrir quando, no curso do desenvolvimento humano, adquirimos as propriedades que tornam valiosas as nossas vidas. Além disso, teríamos de determinar a importância moral da potencialidade. Que relevância terá o facto de que um indivíduo se irá desenvolver até se tornar plenamente uma pessoa humana? Tudo isto é suficientemente difícil, mas, para tornar as coisas piores, nem é completamente óbvio que estas sejam as questões correctas. Não é surpreendente que as pessoas discordem. Nestes casos, a dificuldade das questões, e não a ausência de «verdade», pode ser a melhor explicação para o facto de as pessoas não conseguirem chegar a um acordo.
Na ciência podemos encontrar um padrão semelhante de acordo e desacordo. Todos os cientistas estão de acordo no que respeita a um grande núcleo de verdades aceites, mas há também muitas questões controversas. Como sabem todos os que lêem a secção de ciência das terças-feiras do New York Times, os cientistas discordam quanto à relação entre a teoria quântica e a relatividade clássica, às perspectivas da teoria das cordas, àquilo que as célebres experiências sobre a cognição infantil mostram realmente e ao percurso que a evolução seguiu. Também esta lista poderia continuar indefinidamente. Assim, contrariamente às opiniões superficiais, não parece haver qualquer diferença fundamental entre a ética e a ciência no que respeita à dimensão do desacordo existente. Ambas se caracterizam por um acordo maciço sobre muitas coisas; um acordo que existe a par de muitos desacordos sobre outras coisas.

Problemas da Filosofia, James Rachels, Gradiva (Colecção Filosofia Aberta -pp 244-7)