terça-feira, 30 de setembro de 2008

Livre-arbítrio, determinismo e responsabilidade moral

Parte I
De acordo com um ser extraterrestre tralfamadoriano, no livro Slaughterhouse Five de Kurt Vonnegut, Jr., os tralfamadorianos viajaram até aos confins do universo e só na Terra se fala de livre-arbítrio. Talvez. Mas fala-se mesmo muito.
1. Livre-arbítrio versus determinismo
O problema do livre-arbítrio versus determinismo surge devido a uma aparente contradição entre duas ideias plausíveis. A primeira é a ideia de que os seres humanos têm liberdade para fazer ou não fazer o que queiram (obviamente, dentro de certos limites ― ninguém acredita que possamos voar apenas por querermos fazê-lo). Esta é a ideia de que os seres humanos têm vontade livre ― ou livre-arbítrio. A segunda é a ideia de que tudo o que acontece neste universo é causado, ou determinado, por acontecimentos ou circunstâncias anteriores. Diz-se de aqueles que aceitam esta ideia que acreditam no princípio do determinismo e chama-se-lhes deterministas. (De aqueles que negam esta segunda ideia diz-se que são indeterministas.)
Pensa-se frequentemente que estas duas ideias conflituam porque parece que não podemos ter livre-arbítrio ― as nossas escolhas não podem ser livres ― se são determinadas por acontecimentos ou circunstâncias anteriores.
2. Somos nós sempre responsáveis pelas nossas acções?
Além disso, algumas pessoas defenderam que se tudo o que fazemos é determinado pelo que aconteceu no passado de uma forma tal que as nossas escolhas nunca são livres, então não somos moralmente responsáveis por nenhuma das nossas acções, porque nesse caso não escolhemos livremente fazê-las. Pode esta ideia estar correcta?
Determinismo radical, determinismo moderado e libertarianismo
Na história da filosofia, foram propostos essencialmente três tipos diferentes de respostas a esta questão. Um consiste em morder o isco e aceitar que o determinismo é verdadeiro e, por conseguinte, que a responsabilidade moral não tem sentido. A este ponto de vista chama-se geralmente determinismo radical, e àqueles que o aceitam deterministas radicais. Um segundo ponto de vista é o de que tem efectivamente sentido sustentar que as pessoas são moralmente responsáveis pelas suas acções, porque o determinismo está errado e nós no fim de contas temos livre-arbítrio. Chama-se com frequência libertarianismo a este ponto de vista e aos seus defensores libertarianos. Finalmente, um terceiro ponto de vista é o de que ao aceitarmos o determinismo e a liberdade da vontade não nos contradizemos, pelo que podemos ser considerados moralmente responsáveis pelas nossas escolhas livres embora elas sejam determinadas. Chama-se geralmente determinismo moderado a este ponto de vista e aos seus advogados deterministas moderados.
3. Determinismo radical
Quando examinado, o determinismo radical revela basear-se em três princípios:
1. O princípio do determinismo ― que tudo o que acontece tem uma causa;
2. O princípio de que se uma acção é determinada, então não é livre (a pessoa não poderia realmente ter escolhido não a fazer); e
3. O princípio de que a pessoa é moralmente responsável apenas por acções livres.
Argumentos a favor do determinismo radical
Os deterministas radicais tendem a acreditar que a segunda e a terceira das afirmações necessárias para apoiar a sua posição são óbvias (e o mesmo fazem os libertarianos). Parece-lhes óbvio que as acções determinadas, digamos, pela hereditariedade e pelo ambiente não podem ser acções livremente escolhidas; e igualmente óbvio que as pessoas são apenas responsáveis pelas acções que escolheram livremente. Por isso, os deterministas radicais concentraram o seu fogo no primeiro princípio ― que o determinismo é verdadeiro. Os seus argumentos são muito fortes.
Em primeiro lugar, as provas a favor do determinismo em geral baseadas na vida diária parecem ser extraordinariamente fortes. Quando pomos açúcar no café, esperamos que o café saiba a doce e ficaríamos muito surpreendidos se não soubesse. Quando passeamos, o solo suporta-nos sempre ― não nos enterramos lentamente na terra. Do mesmo modo, a gravidade nunca falha ― nunca flutuamos suavemente até às estrelas. Quando os astronautas vão para o espaço, milhares de peças de equipamento têm de trabalhar de forma exactamente correcta milhões de vezes ― "exactamente correcta" significa exactamente como foi predito pelas teorias científicas acerca das leis da natureza que explicam como as coisas estão determinadas para acontecer.
A verdade é que nós não podemos fazer um movimento sem confiar em pelo menos algo que funcione como funcionou no passado. Assim, cada experiência que temos parece apoiar a tese geral de que tudo o que acontece neste universo é causado ou determinado pelo que aconteceu no passado.
Mas a questão principal entre os deterministas radicais e os seus opositores não é a propósito do determinismo ou da causalidade em geral. A questão diz respeito apenas a um conjunto limitado de acontecimentos ou circunstâncias no universo, a saber, a escolhas e acções humanas, em particular, a escolhas e acções morais. São as nossas acções livres (não-determinadas)? São as nossas escolhas livres? Há suficiente "folga" nas leis que governam o universo para que estas coisas possam acontecer? Os deterministas dizem que não e as provas parecem estar fortemente a seu favor.
Em primeiro lugar, na vida diária fazemos constantemente predições acerca do que as pessoas irão fazer. Como é óbvio, não podemos fazer predições com 100% de precisão, mas as pessoas perspicazes, de algum modo, fazem-nas razoavelmente bem. Elas rotulam as pessoas de pessoas em quem se pode confiar, egoístas, sem escrúpulos, sociáveis, agressivas, hostis, e tudo o mais, com um sucesso moderado que é difícil explicar se as nossas acções e as nossas escolhas não são determinadas.
Além do mais, sabemos pela vida diária quão facilmente podemos alterar os nossos estados e capacidades mentais tomando drogas. É essa a razão do amplo uso do álcool, da marijuana, da cafeína, da nicotina, da aspirina, do Valium, e de outros modificadores da mente ― alteramos as nossas percepções, libertamos as nossas inibições ou livramo-nos da dor. No caso do álcool, com frequência enfraquecemos a vontade moral ou abalamos, por exemplo, a resolução de nos abstermos de relações sexuais imorais. Tudo isto apoia o ponto de vista dos deterministas e opõe-se à ideia de vontades livres (não-causadas).
Além disso, há as provas decisivas da ciência. Os cientistas assumem que as leis da natureza que descobriram se aplicam a tudo no universo, incluindo as minúsculas partículas que constituem o cérebro e o sistema nervoso humanos. Quando escolhemos fazer algo ― digamos, apertar um dedo indicador contra o gatilho de uma arma carregada apontada a um inimigo ―, impulsos eléctricos viajam do cérebro para os músculos apropriados do corpo. Há uma grande quantidade de provas científicas (e nenhumas contraprovas convincentes) de que estes impulsos eléctricos são causados por outros impulsos no cérebro, que em última instância são causados por interacções químicas algures no corpo (por exemplo, em várias glândulas que segregam hormonas e na retina do olho). A noção de uma vontade livre (não-causada) parece assim contraditar alguns princípios científicos muito bem estabelecidos.
Por último, deve ser notado que os indeterministas, tal como todas as outras pessoas, na vida diária agem como se acreditassem realmente em que o determinismo é verdadeiro. Em particular, eles antecipam as escolhas morais das outras pessoas exactamente como toda a gente. E assumem que a exortação moral, o treino moral e a educação moral serão eficazes, embora o objectivo do treino moral seja influenciar as decisões morais dos estudantes. Se as pessoas tomam efectivamente as suas decisões morais libertos de forças causais, como é que o treino moral tem algum efeito?
O argumento contra o determinismo radical
Como vimos, o determinismo radical baseia-se em três princípios. Não o podemos refutar rejeitando o primeiro destes princípios (o princípio do determinismo), como acabámos de defender. Por isso, para refutá-lo, devemos atacar o segundo e o terceiro princípio (embora praticamente ninguém escolha o terceiro). Como veremos, esta é exactamente a forma como os deterministas moderados refutam o determinismo radical. Mas por detrás desta refutação encontra-se um desejo muito forte de que as pessoas sejam responsáveis pelas suas acções e escolhas e uma enorme necessidade de admirar e premiar aqueles que se sacrificam pelo seu dever e de abominar e punir a obra do diabo. E essa é, em última instância, a razão fundamental para rejeitar o determinismo radical. (Seja o que for que alguns filósofos possam afirmar, a verdade é que quando julgamos moralmente os outros não nos importa se as nossas escolhas morais são determinadas ou não ― uma vez mais, repara no comportamento quotidiano de todos, incluindo os deterministas radicais.)

Howard Kahane
Retirado de http://www.filedu.com/

segunda-feira, 29 de setembro de 2008

A ANGÚSTIA

Que é que se entende por angústia? O existencialista não tem pejo em declarar que o homem é angústia. Significa isso: o homem ligado por um compromisso e que se dá conta de que não é apenas aquele que escolhe ser, mas de que é também um legislador pronto a escolher, ao mesmo tempo que a si próprio, a humanidade inteira, não poderia escapar ao sentimento da sua total e profunda responsabilidade. Decerto, há muita gente que não vive em ansiedade; mas é nossa convicção que esses tais disfarçam a sua angústia, que a evitam; certamente muitas pessoas acreditam que ao agirem só se implicam nisso a si próprias, e quando se lhes diz: e se toda a gente fizesse assim? Elas dão de ombros e respondem: nem toda a gente faz assim. Ora a verdade é que devemos perguntar-nos sempre: que aconteceria, se toda a gente fizesse o mesmo?, e não podemos fugir a esse pensamento inquietante a não ser por uma espécie de má-fé. É a esta angústia que Kierkegaard chamava a angústia de Abraão. Todos conheceis a história: um anjo ordenou a Abraão que sacrificasse o filho. Está tudo certo, se foi realmente um anjo que apareceu e disse: tu és Abraão, tu sacrificarás o teu filho. Mas cada qual pode perguntar-se, antes de mais trata-se realmente de um anjo, e sou eu realmente Abraão? Quem é que afinal mo prova? Havia uma doida que tinha alucinações: falavam-lhe ao telefone e davam-lhe ordens. O médico perguntou-lhe: “Mas quem é que lhe fala?” A doida respondeu: “Diz ele que é Deus.” E que é que lhe provava, afinal, que era Deus? Se um anjo vem até mim, que é que me garante que é um anjo? E se ouço vozes que é que me garante que elas vêm do céu e não do inferno, ou dum subconsciente, ou dum estado patológico? Quem pode demonstrar que elas se dirigem a mim? Quem pode provar que sou eu o indicado para impor a minha concepção de homem e a minha escolha à humanidade? Não acharei nunca prova alguma, algum sinal que me convença. Se uma voz se dirige a mim, serei eu sempre a decidir se esta voz é a de um anjo; se admito que tal acto é bom, a mim compete a escolha de dizer que este acto é bom e não mau. Tudo se passa como se, para todo o homem, toda a humanidade tivesse os olhos postos no que ele faz. E cada homem deve dirigir-se a si próprio: terei eu seguramente o direito de agir de tal modo que a humanidade se regule pelos meus actos? E se o homem não diz isso, é porque ele disfarça a sua angústia.
SARTRE, Jean-Paul, O Existencialismo é um Humanismo, 2004. Lisboa: Bertrand Editora, pp. 205-207

domingo, 28 de setembro de 2008

A TEORIA CAUSAL DA ACÇÃO ii

Parte II
Quais são os antecedentes mentais da acção? Que tipo de acontecimentos ou estados mentais são as causas iniciadoras de uma acção intencional?
O nosso primeiro pensamento pode ser que a acção resulta sempre do desejo. Por outras palavras, as acções são coisas que fazes ou porque queres fazê-las ou porque acreditas que elas são o meio para chegares a outras coisas que desejas. Quando activamente ergueste o braço, o teu braço ergue-se porque simplesmente queres que ele se erga (talvez porque estejas a experimentar se ele ainda se move depois de teres tido um acidente), ou porque o subir do braço seja necessário para outra coisa qualquer que desejas (talvez porque queiras votar e penses que necessitas de levantar o braço para votar, ou queres dar início a uma corrida e penses que levantar a mão é o modo de o fazer, ou queres apontar para a estrela polar, …). Por contraste, as não-acções, como espasmos ou contracções musculares, acontecem independentemente dos teus desejos, isto é, quer queiras quer não que elas ocorram.
Mas existe uma aparente dificuldade com este primeiro pensamento plausível que pode ser explicitado pelo seguinte argumento:
(D) Os nossos desejos — ou pelo menos os mais básicos — não são estados sobre os quais tenhamos muito controlo; não depende usualmente de nós sentirmos sede e querermos beber, ou desejarmos estar mais quentes, ou termos desejos sexuais. As nossas crenças, de igual modo, não estão sobre o nosso controlo voluntário; muitas são adquiridas perceptivamente e a percepção envolve um processo causal que não depende de nós. Portanto, se caracterizarmos as acções como fazeres causados por desejos (em conjunto com as crenças apropriadas), isto sugere que há estados que não dependem de nós automaticamente que produzem acções sem a nossa intervenção; e isto implicaria que as nossas acções também não dependem de nós. Esta conclusão põe em causa todo o conceito de acção tal como o definimos até agora.
Seguindo Anscombe, a nossa sugestão fundamental é que uma acção é intencional apenas se é feita com razões à luz das quais o comportamento de um agente pode ser compreensível. Especificar as razões que fazem um comportamento ser compreensível é especificar o desejo ou pró-atitude relevantes e uma crença de que o efeito da acção conduza ao desejo esperado. Necessitamos, contudo, de destacar um aspecto que até agora foi deixado implícito. De modo a explicar a acção de alguém, não é suficiente especificar um desejo e uma crença que o agente tenha que torna a acção compreensível; se queremos ter uma explicação correcta, a acção tem que ter sido feita por causa desse desejo e dessa crença. Suponhamos, por exemplo, que Jack abriu a janela porque desejava ter ar fresco e acreditava que teria ar fresco se abrisse a janela. Essa crença e esse desejo evidentemente fazem o abrir da janela algo que se faz numa situação dessas — mas essa crença e desejo podem não ter funcionado como as razões para abrir a janela nesta ocasião. Ele pode ter aberto a janela porque queria falar com a Jill que está no exterior e porque acreditava que isso facilitaria a conversa. Em termos mais gerais, podemos ter, numa dada situação, um conjunto de diferentes crenças e desejos de tal modo que cada conjunto tornaria razoável o mesmo curso de acção: ao explicar uma acção temos de escolher um (ou mais) dos conjuntos como efectivamente decisivo na produção da acção. Repetindo: para explicar uma acção temos de fazer mais do que simplesmente especificar crenças e desejos que tornariam a acção compreensível; temos de dizer que o agente agiu por causa dessas crenças e desejos.
O pensamento essencial em D, era que se tentarmos definir acções como fazeres que explicamos recorrendo a desejos, dado que os desejos não "dependem de nós" o mesmo se aplicará supostamente às nossas acções intencionais. Bom, aceitemos que as nossas necessidades mais básicas não estão sob o nosso controlo — não podemos fazer nada quando temos sede, por exemplo. Mas muitos dos desejos ou pró-atitudes envolvidos na explicação da acção humana, ou talvez mesmo a maior parte, dependem de algum modo de nós (pelo menos no sentido vulgar dessa expressão).
Juntando os fios da nossa discussão, podemos concluir dizendo que um fazer é uma acção apenas se envolve algo feito intencionalmente, isto é, algo realizado por causa de uma pró-atitude apropriada e de uma crença respectiva. Parece, portanto, que chegamos finalmente à formulação correcta do núcleo de uma teoria causal da acção — as causas mentais desses episódios comportamentais que contam como acções intencionais são simplesmente crenças e desejos. De modo a responder à questão de Wittgenstein: a diferença entre o teu braço se erguer e tu ergueres o teu braço é uma questão de causalidade através de crenças e desejos.

Peter Smith e O.R. Jones
Retirado de http://www.criticanarede.com/

sábado, 27 de setembro de 2008

A TEORIA CAUSAL DA ACÇÃO

Um bom modo para começar a nossa investigação acerca da natureza da acção é a partir da questão levantada por Wittgenstein: "O que sobra se eu subtrair o facto de o meu braço se ter erguido ao facto de eu ter erguido o meu braço?" (1953: §621). Evidentemente, o teu braço pode ter-se erguido sem que o tenhas feito intencionalmente subir; talvez o teu cotovelo se tenha mexido, alguém puxe por fios amarrados ao teu pulso ou alguém esteja a dar choques eléctricos aos músculos do teu braço. Nem todas as ocasiões em que o teu braço se ergue são ocasiões em que tu agiste: por isso o que marca a diferença entre o erguer do braço que corresponde a acções genuínas das que não o são?
Como resposta inicial, podemos dizer algo deste tipo: "De modo a que o meu braço se erga sem que eu activamente o erga, tem de haver uma causa exterior para esse movimento — uma rajada de vento que arraste o guarda-chuva que eu seguro, alguém que mexa no meu cotovelo, ou outras situações do género. Se eu próprio erguer o braço, contudo, não há necessidade de uma causa exterior que mova o meu braço: a causa será interna. O movimento dever-se-á à contracção dos meus músculos, que por sua vez se deverá a impulsos nervosos, e por aí fora. Em resumo, a diferença entre um mero movimento corporal e uma acção genuína é a diferença entre causalidade interna e externa." Mas, certamente, esta perspectiva não é suficiente; contracções musculares, espasmos, tiques nervosos e movimentos reflexos têm causas internas mas ainda não são o tipo de coisas a que queremos designar por acções. De facto, se não houvesse mais qualquer coisa numa acção do que causalidade interna, não haveria nenhuma razão pela qual o movimento das plantas causado internamente ou mesmo os movimentos de um relógio, não contassem como verdadeiras acções. Ainda assim, parece fácil emendar a nossa definição de acção de modo a evitar tais abstrusidades: as acções intencionais são, num certo sentido, coisas em que a nossa mente está envolvida — portanto seguramente aquilo que necessitamos de dizer é que, num sentido último, as acções têm de ter causas mentais internas. Um espasmo muscular reflexo, como o movimento de uma planta ou de um relógio, tem (num sentido amplo) uma causa interna: mas uma acção genuína tem antecedentes mentais — a tua mente tem um papel a desempenhar na execução da acção.
Note-se que, enquanto podemos dizer que todas as acções têm causas mentais, não podemos reverter esta afirmação e dizer que todos os movimentos com causas mentais são acções. Como tal, a ansiedade pode fazer a tua mão tremer ou o embaraço pode provocar-te contracções musculares, mas estas tremuras e contracções não são acções, apesar dos seus antecedentes mentais. Portanto a presença de causas mentais é apenas uma condição necessária da acção genuína, mas não é uma condição suficiente.
Peter Smith e O.R. Jones

Retirado de http://www.criticanarede.com/

sexta-feira, 26 de setembro de 2008

Concurso ÉTICA PARA TODOS – REGULAMENTO DO CONCURSO


1. Apresentação
O presente concurso é uma iniciativa promovida pelo Grupo de Filosofia da Escola EB2,3/S de Oliveira de Frades.
Considerando que em Portugal não se tem muito o hábito de promover a discussão de ideias e de que a Filosofia é o lugar por excelência da crítica da razão;
Considerando que as questões éticas são cada vez mais pertinentes num mundo em permanente mudança;
Considerando que os jovens começam a expressar muito cedo, grande interesse pelas questões éticas;
Os professores de Filosofia da escola EB 2,3/S de Oliveira de Frades consideraram importante promover o presente concurso.

2. Objectivos
Estimular o conhecimento e a interrogação sobre os grandes problemas éticos.
Promover a argumentação como nevralgia do discurso racional.
Desenvolver as práticas saudáveis de divergência racional de pontos de vista.

3. Público-alvo
O concurso é dirigido aos alunos da escola EB2,3/S de Oliveira de Frades, aos professores da escola (à excepção dos professores do grupo de Filosofia), funcionários, pais e encarregados de educação e demais elementos da comunidade educativa.

O concurso será subdividido em três. Um por cada período escolar. Por período será apresentado um tema de natureza ética e os concorrentes podem participar de igual modo nos três períodos.

4. Formato dos trabalhos
Os trabalhos serão constituídos por textos argumentativos, no máximo duas páginas, tamanho A4. São aceites trabalhos em suporte de papel ou digital. Os concorrentes podem deixar os trabalhos na secção de comentários do blog http://www.hermes-embuscadesophia.blogspot.com/ ou entregar pessoalmente a um professor de Filosofia da escola. Os trabalhos devem vir identificados com o nome do concorrente bem como da categoria a que concorre.

5. Categorias
Foram definidas as seguintes categorias de candidatos:
1.ª categoria – alunos
2.ª categoria – adultos (professores, funcionários, pais e encarregados de educação e demais elementos da comunidade escolar)

6. Critérios de Apreciação
Os trabalhos enviados ou entregues serão apreciados por um júri constituído pelos professores de Filosofia da escola EB2,3/ de Oliveira de Frades.
O júri avaliará os trabalhos tendo em atenção os seguintes critérios:
- a obediência aos critérios de elaboração de um texto argumentativo;
- originalidade das posições éticas tomadas,
- a fundamentação racional das posições tomadas;
- pertinência dos argumentos apresentados.

7. Prémios
Por concurso será entregue um prémio para o melhor trabalho em cada categoria (alunos e adultos). Os prémios serão constituídos por livros.
Os trabalhos serão publicados no blog http://www.katarsis2.blogspot.com/ e os melhores serão publicados na revista Katársis, edição de papel.

quarta-feira, 24 de setembro de 2008

THE BEGINNING ii

Este blog era para ser iniciado apenas neste ano lectivo, mas a nossa vontade levou a antecipar o seu nascimento.
Um dos propósitos do Sophia é envolver a comunidade educativa na senda da reflexão filosófica. Por causa desse propósito vamos postar mais uma vez o texto do seu nascimento, fazendo votos que a escola e a comunidade envolvente dêem aas respostas que nós esperamos. Aguardam-se surpresas para amanhã...
Em Busca de Sophia
, vai ser o blog de Filosofia da Escola EB2,3/S de Oliveira de Frades.O principal objectivo do presente blog é ser um precioso auxiliar nas aulas de Filosofia e um lugar de interactividade aluno-professor-saber. Com o blog é igualmente nossa pretensão diminuir o gasto da escola em papel, pois todos os documentos de apoio aos manuais adoptados irão estar sempre disponíveis on-line. Por essa razão o blog irá iniciar a sua actividade, de uma forma mais pujante, apenas no próximo ano lectivo, o que não impede que não se inicie já a postagem de algumas mensagens.Mas não pretendemos que o blog se enclausure dentro da sala de aula de Filosofia. Queremos que ele seja uma janela aberta para a discussão de ideias em toda a comunidade escolar. Por essa razão, no próximo ano lectivo iremos periodicamente lançar temas para debate, principalmente na área da Ética Aplicada, esperando que as pessoas não se sintam constrangidas a manifestar a sua opinião fundamentada, publicando os seus comentários neste blog, que pretendemos ser de toda a escola.

terça-feira, 23 de setembro de 2008

O que é o modelo crença-desejo? vi

Parte VI
4. Uma reformulação necessária de b)
Até agora, estive para aqui só a falar da tese a). A tese b) andou um pouco esquecida. A tese b) era, lembre-se,
b) O par formado pelo desejo e pela crença relevante que racionaliza a acção também constitui a causa dessa acção.
Como dissemos no final da secção anterior, pode haver mais do que um par de desejos e crenças a racionalizar a acção. Como também dissémos, alguns desses pares poderiam servir para racionalizar a acção, mas não constituiram, efectivamente, a razão pela qual o agente a realizou. A tese b) deve ser reformulada de modo a acomodar estes pontos. Talvez do seguinte modo:
b) Alguns dos pares formados por um desejo e por uma crença relevante que racionalizam a acção também constituiram a causa dessa acção.
Esta definição parece acomodar os dois pontos que mencionei. Em primeiro lugar, abre a porta para mais de um par de desejos e crenças relevantes poderem ter constituído a causa da acção. Em segundo lugar, não afirma que todos os pares que poderiam racionalizar a acção fizerem parte da causa da acção.
5. Precisará o modelo crença-desejo de b)?
Impõe-se um esclarecimento em relação a b). Que quero eu dizer com "causa"? O que é que significa dizer que a crença e o desejo constituiram a causa da acção?
O termo "causa" está a ser usado no sentido aristotélico de "causa eficiente". Uma causa eficiente é uma causa no sentido comum do termo. A bola de bilhar mexeu-se porque eu lhe dei uma tacada. A minha tacada foi a causa eficiente de a bola se mexer. Do mesmo modo, de acordo com o modelo crença-desejo, o desejo e a crença constituem a causa eficiente da minha acção.
Há quem olhe para este modo de formular b) com alguma suspeição. Não é de estranhar: intuitivamente, não diríamos que a minha tacada causou o movimento da bola no mesmo sentido em que o meu desejo e a minha crença "causaram" a minha acção.
Historicamente, há quem tenha levado esta ideia muito a sério e passado a falar de "causalidade do agente" ("agent causation") , que é, supostamente, um tipo de causalidade diferente do modo como a minha tacada causou o movimento da bola. Não tenciono falar disto agora, mas parece-me que essa ideia não passa de uma grande confusão. (Veja-se a crítica de Searle em Rationality in action, por exemplo.)
O que gostaria de frisar é que não me parece que concordar com b) seja essencial para se acreditar no modelo crença-desejo. Acho que o cerne do modelo crença-desejo reside em a) - b) é, por assim dizer, descartável. Com isto não estou, obviamente, a dizer que b) é falsa; estou simplesmente a dizer que não é essencial para o modelo crença-desejo.
Como é que b) terá arranjado maneira de ter lugar cativo na definição canónica do modelo crença-desejo, então?
Cá para mim, essa intromissão deve-se a duas coisas. Em primeiro lugar, ao medo generalizado de que, se uma acção não foi causada, então surgiu espontaneamente, o que ainda deixa menos lugar para a liberdade, como os compatibilistas (os filósofos que dizem que a liberdade e o determinismo são compatíveis) costumam agoirar. As minhas ideias em relação à disputa entre compatibilistas e incompatibilistas não são muito claras, pelo que não tenho, verdadeiramente, opinião sobre se o facto de uma acção ter sido causada significa que não foi livre. No entanto, dou comigo a pensar: porque haveria a nossa definição do modelo crença-desejo de estar dependente de avanços nesta área? Isso não parece fazer muito sentido. Parece-me claro que a única posição em relação à liberdade que estaríamos "proibidos" de ter caso defendêssemos o modelo crença-desejo seria a de que as acções ocorrem espontâneamente. Caso tivéssemos essa posição, seria tempo perdido andar a descobrir formas de racionalizar as acções das pessoas. Mas ninguém nos diz que, caso recusemos aceitar que todas as acções são espontâneas, estaremos forçados a aceitar que estão determinadas. Caso haja uma terceira via, parecida à da teoria da "causalidade do agente" (e que, para além do mais, tenha a vantagem de ser verdadeira, coisa que essa teoria não é), não vejo porque não pudessemos continuar a defender o modelo crença-desejo.
Suspeito que a segunda razão pela qual b) se intrometeu na definição canónica do modelo crença-desejo é a de ter sido explicitamente defendida por Davidson, que é, talvez, o mais importante defensor do modelo crença-desejo desde Hume. A influência de Davidson na filosofia moderna é avassaladora, mas temos que saber resistir-lhe. Não podemos partir logo do princípio de que o modelo crença-desejo tem, obrigatoriamente, de incorporar a segunda tese só porque Davidson a defende.
Se queremos vencer, temos de saber quem são os nossos inimigos. Não adianta andar a disparar para o ar para ver se acertamos em alguém - podemos acabar por acertar nos nossos. Isto é tão verdadeiro para a guerra, como para a filosofia. Penso que a inclusão de b) na definição canónica do modelo crença-desejo só tem como resultado afugentar possíveis aliados, ou seja: pessoas que pensam que precisamos sempre de desejos e crenças para racionalizar acções, mas que não gostam de pensar em desejos e crenças como causas eficientes da acção.
Os grandes inimigos do modelo crença-desejo são os que defendem um modelo não-psicologista da acção, ou que defendem um modelo psicologista da acção, mas que, das duas, uma: ou dizem que as crenças chegam para motivar; ou então que os desejos chegam para motivar. Estes três é que são os verdadeiros inimigos - é para lá que o defensor do modelo crença-desejo deve apontar os canhões.
6. Uma relação desigual?
Há ainda uma ideia geral que anda associada ao modelo crença-desejo, mas que é difícil de formular com precisão. É a ideia de que, embora a crença e o desejo sejam ambos necessários para haver acção, a importância deles é desigual: o desejo é, de certa forma, o parceiro dominante da relação.
Uma tese que capta bem esta ideia é a das "direcções de correspondência". É comum dizer-se, desde Anscombe, que o desejo e a crença têm diferentes direcções de correspondência. O desejo tem uma direcção de correspondência mente-mundo; a crença, uma direcção de correspondência mundo-mente. Porquê esta diferença? Porque o desejo tem por objectivo criar uma alteração no mundo - daí ter a direcção de correspondência mente-mundo; a crença, por outro lado, tem por objectivo representar o mundo de forma de forma exacta - daí ter a direcção de correspondência mundo-mente.
Há quem pareça pensar que a diferença entre desejos e crenças não é apenas de função, mas também de poder causal.
Pedro Madeira
Retirado de http://www.intelectu.com/

segunda-feira, 22 de setembro de 2008

EXISTENCIALISMO

Movimento filosófico constituído por diversas doutrinas unidas por dois aspectos fundamentais: 1) o objecto da sua reflexão é a existência humana entendida como realidade individual concreta que não se explica nem se demonstra mas unicamente se descreve; 2) reage contra a identificação hegeliana entre realidade e racionalidade porque a existência não está iluminada pela luz da razão. Afirmar, como o fez Hegel que tudo o que é real é racional implica desvalorizar os aspectos dramáticos, angustiantes, imprevisíveis e absurdos que caracterizam a existência humana. O existencialismo pretende falar do ser humano concreto. Nada lhe dizem as ideias ou noções abstractas nem os grandes sistemas racionais que tudo julgam poder explicar e solucionar. O que lhe interessa é descrever o indivíduo, a realidade singular em devir, dramaticamente comprometida ou envolvida nas suas escolhas e opções. O principal representante da corrente existencialista é Sartre, embora se considere que as raízes da filosofia existencialista remontam pelo menos a Kierkegaard. O filósofo dinamarquês revoltou-se contra a crença tipicamente hegeliana de que a razão podia resolver os problemas fundamentais da vida fossem eles morais, religiosos, políticos ou artísticos. O resultado desta confiança cega na razão foi a construção de poderosos sistemas filosóficos que tudo pretendiam explicar mas cujo grau de abstracção era tal que perdiam de vista a realidade concreta individual ou lhe atribuíam pouca importância. Autenticidade, responsabilidade, escolha, angústia, singularidade, absurdo, são alguns dos conceitos que o movimento existencialista encontra em Kierkegaard e utilizará conforme a orientação dos seus representantes. Sartre representa o existencialismo ateu, Gabriel Marcel o existencialismo cristão. Outros pensadores, como Heidegger e Karl Jaspers (1883-1969), e Albert Camus (1913-1960), são por alguns historiadores da filosofia incluídos neste movimento muito heterogéneo.
Luís Rodrigues
Retirado de http://www.defnarede.com/

domingo, 21 de setembro de 2008

O que é o modelo crença-desejo? v

Parte V
Lembre-se do caso da pessoa que acende a luz e alerta o ladrão. De modo a racionalizar a sua acção, temos primeiro de apontar para o desejo e para a crença que o levaram a agir dessa maneira. Neste caso, estaríamos a falar do desejo de acender a luz e da crença de que poderia fazê-lo ligando o interruptor. De seguida, teríamos que encontrar uma descrição intencional da sua acção: uma descrição da acção que nos mostre que fazia sentido realizá-la, dado o seu desejo e a sua crença. Se apresentássemos a nossa acção como "acção de alertar o ladrão", não teríamos conseguido racionalizar a nossa acção. Teríamos que descrever a sua acção como "acção de ligar o interruptor".
Isto significa que a tese a) deve, portanto, ser reformulada mais ou menos da seguinte maneira:
a) Para racionalizar uma acção, é sempre necessário atribuir ao agente (pelo menos) um desejo e (pelo menos) uma crença relevante e apresentar uma descrição da acção que revele o seu carácter intencional.
Antes de avançar para a próxima secção, aproveito para dar três esclarecimentos adicionais sobre a).
Em primeiro lugar, porque é que digo que a crença tem que ser relevante? Nada de muito complicado: apenas que a crença tem de ter uma relação apropriada com o desejo. Para a crença ser relevante, tem que nos dizer como é que o agente acreditava que o seu desejo podia ser realizado. Imagine o leitor que tinha o desejo de ir tomar uma cerveja. De modo a racionalizar a sua acção, temos que lhe atribuir uma crença que explique como é que pensava poder realizar o seu desejo. Não faria, por isso, sentido atribuir-lhe a crença de que 21 de Junho é o dia mais longo do ano. Uma crença relevante, neste caso, seria qualquer coisa tão banal como "creio que o empregado me dará uma cerveja se eu lhe der 1 euro".
Em segundo lugar, as crenças relevantes não têm necessariamente de ser instrumentais, embora geralmente o sejam. (Uma crença instrumental tem a forma "Se eu usar tais e tais e tais meios, conseguirei realizar o meu desejo.") No exemplo usado, a crença necessária seria uma crença instrumental: uma crença acerca de como podíamos arranjar uma cerveja. Mas suponha agora que o seu desejo não era simplesmente o de beber uma cerveja, mas sim o de beber uma cerveja no dia mais longo do ano. De modo a poder concretizar este desejo, continuará, naturalmente, a precisar de uma crença acerca de qual é o meio apropriado para arranjar uma cerveja, mas agora teremos que lhe atribuir uma crença acerca de qual é o dia mais longo do ano. Qualquer coisa como "creio que o dia 21 de Junho é o dia mais longo do ano". Esta crença, tal como a crença de que o Super-Homem é Clark Kent, não é instrumental.
Em terceiro lugar - este é um ponto importante -, nada impede que haja mais do que um modo de racionalizar a acção do agente, nem que uma racionalização possível da acção de um agente não constitua a razão pela qual o agente agiu.
Tomemos o exemplo da pessoa que assina o contrato de modo a obter um empréstimo para a casa. Se calhar, ao assinar o contrato, a pessoa estaria a realizar dois desejos ao mesmo tempo: ter casa própria e conquistar a sua independência, por exemplo. Deste modo, haveria duas racionalizações disponíveis da acção: uma composta pelo par "desejo comprar uma casa" e "creio que o modo mais eficiente de o fazer é obter um empréstimo"; e outra pelo par "desejo conquistar a minha indepêndencia" e "creio que o modo mais eficiente de o fazer é obter um empréstimo".
Suponhamos agora que, embora conquistar a nossa independência fosse importante para nós, aquilo que verdadeiramente nos levou a obter o empréstimo foi o desejo de comprar casa própria. Nesse caso, embora a acção de assinar o contrato pudesse ser racionalizado de duas maneiras, só uma delas é que corresponde à razão pela qual o agente agiu. Nós tínhamos dois motivos para querer pedir um empréstimo, mas só um desses motivos, o de comprar casa própria, suponhamos, é que nos levou a agir.

Pedro Madeira
Retirado de http://www.intelectu.com/

sábado, 20 de setembro de 2008

O que é o modelo crença-desejo? iv

Parte IV
Ora voltemos um pouco atrás. Como se lembrará, a objecção que nos estava a ser colocada era a seguinte: a minha acção de ligar o interruptor e de alertar o ladrão são a mesma acção; como é que pode ser possível, então, que o meu desejo de ligar a luz e minha crença de que poderia fazê-lo simplesmente ligando o interruptor racionalizem a minha acção de ligar o interruptor, mas não a minha acção de alertar o ladrão?
Depois de tudo o que disse, a resposta deverá ser óbvia: ao falarmos de descrições de acções, estamos a entrar num contexto referencialmente opaco (ou intensional; é a mesma coisa). Tal como pode ser verdade que "Lois Lane não ama Clark Kent", muito embora ela ame o Super-Homem e "Clark Kent" e "Super-Homem" sejam co-extensivos, também pode ser verdade que "O meu desejo de ligar a luz e a minha crença de que poderia fazê-lo simplesmente ligando o interruptor não racionalizam a minha acção de alertar o ladrão", muito embora racionalizem a minha acção de ligar o interruptor, e a minha acção de ligar o interruptor e a minha acção de alertar o ladrão sejam a mesma acção.
Tal como, para se determinar o valor de verdade de "Lois Lane ama Clark Kent", não é suficiente saber a extensão de "Clark Kent", também no caso de "Tal desejo e tal crença racionalizam a minha acção de alertar o ladrão" não chega saber a extensão de "acção de alertar o ladrão". O desejo e a crença podem racionalizar a acção, se olharmos para ela de uma maneira, e não a racionalizar, se olharmos para ela de outra maneira. É nisto que consiste o carácter intensional das descrições de acções, que mencionei no título desta secção.
Alguém que tenha lido "Actions, reasons and causes", o artigo clássico de Davidson, poderá ter ficado com uma dúvida: porque é que Davidson diz que as descrições de acções são apenas semi-intensionais?
Boa pergunta. A resposta reside na definição de "contexto intensional". Já aqui mencionei uma das características dos contextos intensionais: os termos co-extensivos não são inter-substituíveis salva veritate. A outra característica dos contextos intensionais que me falta mencionar é que, neles, nada impede um termo de ser vazio, isto é, de não ter qualquer extensão.
Tome o exemplo da frase "As crianças acreditam no Pai Natal". O valor de verdade desta frase é completamente independente de haver ou não um Pai Natal. Este tipo de coisas não acontece num contexto extensional.
De acordo com Davidson, as descrições de acções não são intensionais neste sentido, porque, mesmo que seja falso que tal desejo e tal crença racionalizem uma dada, essa acção teve mesmo que acontecer. Neste sentido, as descrições de acções não são como o Pai Natal: podemos tentar racionalizá-las da maneira que quisermos, mas elas têm que existir.
A conclusão que podemos retirar daqui é a de que, de acordo com o modelo crença-desejo, para racionalizar uma acção não basta atribuir ao agente um desejo e uma crença relevante - de modo a acomodar o carácter intensional das descrições de acções, se quisermos racionalizar uma acção teremos também que a apresentar sob uma descrição que revele o seu carácter intencional. É melhor fazer aqui outra pausa antes de prosseguir, porque se não pode haver confusão outra vez. Já expliquei em que consiste o carácter intensional das descrições de acções: no facto de as acções poderem ser racionalizadas, se forem apresentadas sob uma dada descrição, e de poderem não ser racionalizadas, se forem apresentadas sob outra descrição. Tendo isto em mente, temos que procurar encontrar a descrição certa da acção. Essa descrição certa será uma descrição intencional. Porquê "intencional"? Porque deverá tornar claro porque é que o agente teria tido a intenção de a realizar.

Pedro Madeira
Retirado de http://www.intelectu.com/

quinta-feira, 18 de setembro de 2008

UMA DEFESA DO EXISTENCIALISMO

Gostaria de defender aqui o existencialismo contra um certo número de críticas que lhe têm sido feitas.
Primeiramente, criticaram-no por incitar as pessoas a permanecerem num quietismo de desespero, porque, estando vedadas todas as soluções, forçoso seria considerar a acção neste mundo como totalmente impossível e ir dar por fim a uma filosofia contemplativa, o que aliás nos reconduz a uma filosofia burguesa, já que a contemplação é um luxo. Nisto consistem sobretudo as críticas comunistas.
Por outro lado, criticam-nos por acentuarmos a ignomínia humana, por mostrarmos em tudo o sórdido, o equívoco, o viscoso, e por descurarmos um certo número de belezas radiosas; por exemplo, segundo Mll. Mercier, crítica católica, nós esquecemos o sorriso da criança. Uns e outros censuram-nos por não termos atendido à solidariedade humana, por admitirmos que o homem vive isolado, em grande parte aliás porque partimos, dizem os comunistas, da subjectividade pura, quer dizer do “eu penso” cartesiano, quer dizer ainda do momento em que o homem se atinge na sua solidão, o que nos tornaria incapazes por consequência de regressar à solidariedade com os homens que existem fora de mim e que não posso atingir no cogito.
E do lado cristão, censuram-nos por negarmos a realidade e o lado sério dos empreendimentos humanos, visto que, se suprimirmos os mandamentos de Deus e os valores inscritos na eternidade, só nos resta a estrita gratuidade, podendo assim cada qual fazer o que lhe apetecer, e não podendo pois, do seu ponto de vista, condenar os pontos de vista e os actos dos outros.
SARTRE, Jean-Paul, O Existencialismo é um Humanismo, 2004. Lisboa: Bertrand Editora, pp. 197-198

O que é o modelo crença-desejo? III

Parte III
Outro exemplo, desta vez mais próximo daquilo que nos interessa: se perguntarmos a Lois Lane se ela ama o Super-Homem, ela dirá que sim. No entanto, se lhe perguntássemos se ela amava Clark Kent, ela dir-nos-ia que não (pelo menos antes de descobrir que eles são a mesma pessoa, o que, salvo erro, ocorre em "Super-Homem 2"). Como nós sabemos que as expressões "Super-Homem" e "Clark Kent" são co-extensivas, nós pensaríamos, à partida, que são sempre inter-substituíveis salva veritate. Dois termos são inter-substituíveis salva veritate quando podem ser trocados um pelo outro sem alterar o valor de verdade da frase em que ocorrem ("salva veritate" significa, precisamente, "preservando a verdade"). Por exemplo: se é verdade que o Super-Homem é invencível, então também é verdade que Clark Kent é invencível. Se é verdade que o Super-Homem tem um metro e noventa, também é verdade que Clark Kent tem um metro e noventa.
No entanto, as coisas mudam quando estamos a falar de contextos referencialmente opacos (ou "contextos intensionais"; é a mesma coisa). Um contexto é referencialmente opaco quando, por exemplo, determinar a referência dos termos que ocorrem numa frase não é suficiente para determinar o valor de verdade dessa frase. Tome o exemplo da frase "Lois Lane ama Clark Kent". Ora suponha que nós sabemos a quem é que os termos "Lois Lane" e "Clark Kent" se referem e que também sabemos o que significa o verbo "amar". Será isso suficiente para determinar se a frase "Lois Lane ama Clark Kent" é verdadeira? Não. Pense nas semelhanças entre "Lois Lane ama Clark Kent" e "Lois Lane ama o Super-Homem". "Lois Lane" refere-se à mesma pessoa em ambas as frases. "Clark Kent" e "Super-Homem" também se referem à mesma pessoa. O verbo "amar" tem exactamente o mesmo significado. No entanto, parece que, de modo a determinar se cada uma das frases é verdadeira, não basta saber a referência de "Super-Homem" e "Clark Kent".
Isto mostra-se facilmente através do seguinte argumento. Lois Lane sabe a referência de "Clark Kent" (ela conhece-o porque trabalha com ele) e também sabe a referência de "Super-Homem" (ele já a salvou umas quantas vezes), ainda que não saiba que "Clark Kent" e "Super-Homem" são termos co-extensivos, isto é, que Clark Kent é o Super-Homem (e vice-versa, naturalmente). No entanto, responderia negativamente, caso lhe perguntássemos se amava Clark Kent, e afirmativamente, caso lhe perguntássemos se amava o Super-Homem. Por isso, a impressão que dá é a de que, para determinar o valor de verdade de "Lois Lane ama Clark Kent" e "Lois Lane ama o Super-Homem", não basta saber a extensão de "Clark Kent" e a extensão de "Super-Homem": também temos que saber a intensão de cada um dos termos.
(Um aparte: o leitor que esteja ao corrente da controvérsia entre Fregeanos (lê-se "Freguianos") e Millianos na filosofia da linguagem saberá que este problema da falha de inter-substitutividade salva veritate de termos co-extensivos em contextos referencialmente opacos é uma grande dor de cabeça para os Millianos.)
Agora vamos parar aqui um bocadinho para explicar o que é isso de "intensão", porque senão isto pode tornar-se tudo muito confuso. "Intensão" com "s" não deve ser confundida com "intenção" com "ç". A nossa intenção é aquilo que queremos fazer. Eu tenho a intenção de subir a escada, de abrir a porta, etc. "Intensão" é uma coisa diferente. Para se saber o que é "intensão", será melhor lembrar o que é a extensão. Lembra-se de eu dizer que "Super-Homem" e "Clark Kent" eram termos co-extensivos? Trocado por miúdos, isso quer dizer que têm a mesma extensão. A extensão de uma expressão referencial é, simplesmente, a coisa a que expressão se refere. A intensão é algo que está supostamente associado a expressões referenciais, mas que é distinto da extensão. O que essa intensão seja, porém, é coisa altamente polémica. Há quem diga que as intensões são significados. Há quem diga que são descrições definidas. Hoje em dia, há uma definição mais "janota": a intensão de um termo é uma função de um mundo possível w para a extensão do termo.
Estas polémicas são todas muito interessantes, mas não nos interessam para aqui. Aquilo que nos interessa é o seguinte. Parece que, quando estamos a lidar com predicados como "... tem um metro e noventa" e "... é invencível", a única coisa que conta para determinar o valor de verdade das frases que formemos, inserindo nomes próprios no espaço em branco, é a extensão desses nomes próprios. Se é verdade que Clark Kent tem um metro e noventa, e Clark Kent é o Super-Homem, então é necessariamente verdade que "O Super-Homem tem um metro e noventa". Neste caso, saber a extensão dos dois termos basta para determinar o valor de verdade das frases. Estamos, por isso, num contexto extensional, ou referencialmente transparente (que é, obviamente, o oposto de contexto intensional, ou referencialmente opaco)
Quando estamos a falar de frases como "Lois Lane ama Clark Kent", parece que estamos a entrar num contexto referencialmente opaco, dado que saber a extensão de "Clark Kent" não parece ser suficiente para determinar o valor de verdade dessa frase. Se "Clark Kent" tivesse uma intensão, e essa intensão fosse qualquer coisa como "colega de trabalho a quem Lois Lane dá pouca atenção", já seria possível determinar o valor de verdade da frase "Lois Lane ama Clark Kent": seria falsa. Bom, suponho que o leitor já esteja um pouco perdido, nesta altura. Aonde quero eu chegar com tudo isto, afinal? Peço desculpa por esta incursão algo demorada pela filosofia da linguagem, mas tinha receio de que, se não o fizesse, aquilo que vou dizer a seguir poderia não ser entendido.

Pedro Madeira
Retirado de http://www.intelectu.com/

quarta-feira, 17 de setembro de 2008

O que é o modelo crença-desejo? II

Parte II
3. O carácter intensional das descrições de acções
De modo a fazer a ponte entre esta secção e a anterior, gostaria de dar mais um exemplo de como atribuir crenças e desejos ao agente pode ajudar a racionalizar a sua acção.
Imagine que acabo de chegar a casa. É de noite. Ao agir de determinada maneira (já vamos ver qual), alerto o ladrão que estava dentro da casa e ele acaba por fugir. Perante esta situação, a minha acção não é inteligível - não dá para perceber porque é que a realizei. Que interesse é que eu teria em alertar o ladrão para a minha presença? À partida, nenhum. Eu devia era querer apanhá-lo para que ele não fugisse com o saque.
O problema resolve-se da seguinte maneira: o meu objectivo era acender a luz (lembre-se de que cheguei a casa de noite), não alertar o ladrão da minha presença. Eu nem sequer sabia que lá estava um ladrão. Eu tinha o desejo de acender a luz e a crença de que poderia fazê-lo ligando o interruptor. Dada esta explicação, a acção que realizei e que teve a consequência de alertar o ladrão da minha presença já se nos torna inteligível, já é racionalizada. Note como um exemplo semelhante poderia ser construído em relação ao caso que apresentei na secção anterior: imagine que tínhamos o tal desejo de queimar combustível e a crença de que poderíamos fazê-lo deitando um fósforo para dentro de um bidão cheio de gasolina. O desejo e a crença certamente racionalizariam a minha acção de atirar o fósforo pra dentro do bidão. No entanto, imagine agora que nós tínhamos um desejo adicional: o de não fazer nada que pudesse pôr em perigo a sobrevivência da espécie humana. Sem que nós soubéssemos, ao queimar esse combustível estaríamos a libertar nuvens de fumo tóxicas. Por isso, parece que atribuir ao agente o desejo e a crença que lhe atribuímos não chegaria, neste caso, para racionalizar a acção dele.
Alguém poderia expressar esta preocupação da seguinte forma, desta vez em relação ao caso da pessoa que, sem querer, alerta o ladrão para a sua presença:
"Então mas porque é que o desejo e a crença relevante racionalizam a minha acção de ligar o interruptor, mas não a minha acção de alertar o ladrão para a minha presença? Afinal, a minha acção de ligar o interruptor e minha acção de alertar o ladrão são a mesma acção. Não há aqui duas acções diferentes. Como é que o desejo e a crença relevante podem, num sentido, racionalizar a minha acção, e noutro, não? Não será isso contraditório?"
O resto desta secção será, em grande parte, dedicado a tentar fornecer os materiais para responder a esta dúvida.
A primeira coisa a dizer é que não é líquido que a minha acção de ligar o interruptor e a minha acção de alertar o ladrão sejam a mesma acção. Nem sequer é líquido que o alertar do ladrão seja uma acção. Afinal, não alertámos o ladrão intencionalmente, e quando fazemos uma coisa sem intenção, não parece que tenhamos realizado uma acção. Se uma pessoa assina um contrato sem estar ciente de uma das cláusulas, não é claro que possamos descrever a acção dele como "assinar um contrato com tal cláusula". Parece que a única acção que ele realizou foi "assinar um contrato". À partida, parece que só comportamento intencionais é que são acções. É preciso notar que, quando digo que um agente fez algo de forma não intencional, estou a dizer que o agente não se apercebeu do que estava realmente a fazer, como no caso da pessoa que assina o contrato sem saber da cláusula.
Há, no entanto, quem defenda uma noção mais abrangente de "comportamento não-intencional". Os defensores da chamada doutrina do duplo efeito, que pertence à área da ética aplicada, sustentam que há certas consequências da nossa acção que são previstas, mas não intencionadas. Deste modo, eu prevejo que matar o líder do Hamas implicará matar vários civis, mas não tenciono matar esses civis - eu simplesmente prevejo que eles serão mortos. Os méritos da doutrina do duplo efeito, enquanto teoria de ética aplicada, são bastante dúbios. Mas não quero agora falar disso. Aquilo que me parece é que, em termos de filosofia da acção, é um disparate dizer que não tenho a intenção de matar os civis ao atirar uma bomba em cima do líder do Hamas. Parece-me óbvio que tenciono matar os civis. Posso não gostar disso, posso ficar com remorsos, posso justificar-me dizendo que era mesmo preciso matar o terrorista - não posso é dizer que não tencionava matar os civis.
Bom, voltemos ao nosso problema: como é que um desejo e uma crença podem racionalizar uma acção sob certas descrições do que aconteceu, mas não sob outras? Para tentar resolver isto, será preciso fazer uma pequena incursão pela filosofia da linguagem. As expressões "Final da Taça de Portugal 2002-2003" e "jogo que em que o Porto ganhou a sua última Taça de Portugal 2002-2003" referem-se ao mesmo jogo, pelo que são co-extensivas (quando duas, ou mais, expressões se referem ao mesmo objecto, nós dizemos que elas são co-extensivas, ou co-referenciais). Todavia, mesmo sendo essas expressões co-extensivas, eu posso não saber que são co-extensivas. Se calhar não ligo ao futebol e não sei, nem quero saber, quem é que ganhou a Taça de Portugal.

Pedro Madeira
Retirado de http://www.intelectu.com/

terça-feira, 16 de setembro de 2008

O PODER LÓGICO DA RAZÃO

Não imaginam o poder lógico da razão. Vejamos alguns exemplos desse poder.
Será que podemos provar racionalmente a existência de Deus?
S. Anselmo, um filósofo e teólogo medieval (século XI) legou-nos uma prova racional da existência de Deus, que ficou conhecido por Argumento Ontológico. O seu argumento diz-nos mais ou menos o seguinte: Deus é (por definição) o maior ser concebível – ou, numa famosa expressão de malabarismo mental, o Ser maior do que o qual nada pode ser concebido. Mas entre as perfeições que o maior Ser concebível teria de ter está a existência, visto que, se Deus carecesse de existência não seria o Ser maior do que o qual nada pode ser concebido, mas essa é a definição de Deus e, por consequência, Deus tem de existir.
Parece que realmente podemos provar a existência de Deus. E será que podemos provar a existência do mundo exterior?
Imagina uma situação em que as coisas que vês não correspondem a objectos tridimensionais, onde não existe, não obstante a sua crença irresistível, nenhum mundo físico mobilado de coisas tangíveis, como o Sol, como as rãs verdes ou as escovas de dentes. Imagina, por exemplo, que és um cérebro flutuando numa cuba. Não um cérebro morto num frasco de formol, mas um cérebro mantido em estado de funcionamento, graças a uma solução química. Um cientista louco extraiu-te o cérebro da caixa craniana sem o teu conhecimento, e o resto do corpo foi incinerado. Para te criar a ilusão de que nada mudou, o cientista louco ligou o teu cérebro a um computador que lhe envia impulsos eléctricos via eléctrodos ligados às suas terminações nervosas, que o teu cérebro, como se nada se passasse, se apressa a traduzir em imagens, sons, odores, impressões tácteis e gustativas. O processo é interactivo, tu tens a impressão de poder continuar a agir sobre o mundo. Do teu ponto de vista, continuas a ter a mesma vida, as tuas actividades e percepções são as mesmas, sem que nada destas actividades e percepções corresponda à realidade, no sentido que habitualmente damos a esta palavra. Poderás ir dar uma volta, se assim o desejares, regar as plantas, dar de comer ao gato, aproveitar as férias para se banhar na água azul, de bronzear-se enquanto lê uma obra filosófica contemporânea que descreve a hipótese de um cérebro numa cuba. O supercomputador-prótese funciona às mil maravilhas: tu és mais um homem entre os homens, pelo menos um ser vivo, uma coisa do mundo entre as coisas do mundo.
Pensávamos que a existência de Deus era racionalmente questionável mas que a existência do mundo exterior era algo sólido como uma pedra, contudo a razão parece-nos dizer que podemos estar mais seguros da existência de Deus do que da existência do nosso vizinho. As divindades são mais certas do que as mesas e as cadeiras!
Será mesmo assim?

segunda-feira, 15 de setembro de 2008

O que é o modelo crença-desejo?

Parte I
1. A definição canónica do modelo crença-desejo
O modelo crença-desejo é uma teoria da acção composta por duas teses:
a) Para racionalizar uma acção, é sempre necessário atribuir ao agente (pelo menos) um desejo e (pelo menos) uma crença relevante.
b) O par formado pelo desejo e pela crença relevante que racionaliza a acção também constitui a causa dessa acção.
Lá para a frente, veremos que é necessário reformular ambas as teses, mas, por agora, podem ficar assim.
2. A diferença entre "racionalizar uma dada acção" e "mostrar que essa acção é racional"
O resto do ensaio será dedicado a clarificar as teses a) e b). Como veremos, não será tarefa fácil, devido ao número imenso de erros subtis que se podem cometer. Nesta secção e na próxima, ocupar-me-ei da primeira tese. Nas duas seguintes, da segunda.
Um dos meus maiores medos é o de que o estudante incauto seja encaminhado para o artigo clássico de Davidson, "Actions, reasons and causes", veja lá a expressão "racionalizar uma acção", e pense que isso seja a mesma coisa que "mostrar que essa acção é racional". Isto não é bem verdade. Como veremos dentro de momentos, no entanto, é um erro fácil de cometer.
Uma teoria da acção procura dizer como é que devemos explicar uma acção. Em geral, isso implicará atribuir certos estados mentais (como crenças e desejos) ao agente. (As teorias da acção que defendem que a atribuição de estados mentais ao agente não é fulcral para explicar a sua acção, como a teoria da acção de Dancy, são denominadas "não-psicologistas".) Uma teoria da razão prática, por outro lado, procura dizer em que circunstâncias é que uma acção é racional ou irracional. (Como mencionei em "Uma objecção à teoria instrumental da razão prática", seria mais correcto dizer "teoria da racionalidade na acção".)
A teoria da razão prática que recolhe aprovação mais ampla é a teoria intrumental, segundo a qual uma acção é racional se e só se o agente pensa (correcta ou incorrectamente) que essa acção é o meio mais adequado para realizar os seus desejos.
Os defensores do modelo crença-desejo costumam ser logo enfiados no grupo dos que dizem que não devemos ir além da teoria intrumental da razão prática. Esta atitude é demasiado precipitada. Embora as teorias da acção e as da razão prática não estejam completamente separadas, a verdade é que gozam de um certo grau de autonomia uma em relação à outra. Não seria inconsistente da parte de um defensor do modelo crença-desejo opôr-se a uma teoria meramente intrumental da razão prática.
Suponhamos que alguém defendia que qualquer acção que pusesse em perigo a sobrevivência da espécie humana seria irracional. Não estou a dizer que alguém tenha mesmo defendido isto: estou simplesmente a dizer que é possível ter-se esta posição. Não é preciso pensar muito para se chegar à conclusão de que um defensor da teoria instrumental não pode concordar com tal coisa. De acordo com a teoria intrumental, uma acção é racional se o agente pensa que é o meio mais eficiente para realizar os seus desejos; só se o agente agir, conscientemente, de um modo que pensa não ser o mais eficiente para realizar os seus desejos, é que estará a ser irracional. Por isso, um humano (ou seja, o defensor da teoria instrumental) dirá que agir de modo a pôr em perigo a sobrevivência da espécie humana será racional, caso o agente queira pôr em perigo a sobrevivência da espécie humana, ou irracional, caso ele não queira.
À partida, nada impede um defensor do modelo crença-desejo de defender que é irracional realizar acções que ponham em perigo a sobrevivência da espécie humana. Nesse caso, a posse do desejo de queimar combustível e a da crença de que é possível queimar combustível atirando um fósforo aceso para dentro de um bidão cheio de gasolina racionalizaria a nossa acção de queimar combustível, mas não a tornaria racional, dado que queimar combustível seria, em última análise, mau para a sobrevivência da espécie.
Qual é a diferença, então, entre racionalizar uma acção e mostrar que ela é racional? A primeira coisa que há que dizer é a que a noção de "racionalização" é meramente descritiva, ao passo que a noção de "mostrar que é racional" é normativa. Ao racionalizarmos um acção, não estamos, desse modo, a mostrar que a acção se coaduna com certas regras de condutas; estamos simplesmente a fornecer uma explicação da acção. Por outro lado, ao dizermos que uma acção é racional ou irracional, estamos a emitir opinião sobre se essa acção se coaduna ou não com certas regras de conduta que todos os agentes racionais deviam, idealmente, seguir (como acontece no exemplo do parágrafo anterior).
Racionalizar uma acção é torná-la inteligível; é tornar claro porque é que o agente a realizou. De acordo com o defensor do modelo crença-desejo, isso implicará olhar para a sua acção à luz dos seus desejos e das suas crenças relevantes e tentar descortinar porque estaria ele interessado em realizá-la. Ao atribuir-lhe o desejo de queimar combustível e a crença de que é possível fazê-lo atirando um fósforo aceso para dentro de um bidão cheio de gasolina, estamos a tornar claro porque é que faria sentido que o agente atirasse o fósforo para dentro do bidão, tal como atirou.

Pedro Madeira
Retirado de http://www.intelectu.com/

domingo, 14 de setembro de 2008

SUBJECTIVIDADE EXISTENCIALISTA

Há dois sentidos para a palavra subjectivismo, e é com isso que jogam os nossos adversários. Subjectivismo quer dizer, por um lado, escolha do sujeito individual por si próprio; e por outro impossibilidade para o homem de superar a subjectividade humana. É o segundo sentido que é o sentido profundo do existencialismo. Quando dizemos que o homem se escolhe a si, queremos dizer que cada um de nós se escolhe a si próprio; mas com isso queremos também dizer que, ao escolher-se a si próprio, ele escolhe todos os homens. Com efeito, não há dos nossos actos um sequer que ao criar o homem que desejamos ser, não crie ao mesmo tempo uma imagem do homem como julgamos que deve ser. Escolher ser isto ou aquilo, é afirmar ao mesmo tempo o valor do que escolhemos, porque nunca podemos escolher o mal o que escolhemos é sempre o bem, e nada pode ser bom para nós sem que o seja para todos. Se a existência, por outro lado, precede a essência e se quisermos existir, ao mesmo tempo que construímos a nossa imagem, esta imagem é válida para todos e para toda a nossa época. Se sou operário e prefiro aderir as um sindicato cristão a ser comunista, se por esta adesão quero eu indicar que a resignação é no fundo a solução que convém ao homem, que o reino do homem não é na terra, não abranjo somente o meu caso: pretendo ser o representante de todos, e por conseguinte a minha decisão ligou a si a humanidade inteira. E se quero, facto mais individual, casar-me, ter filhos, ainda que este casamento dependa unicamente da minha situação, tal acto implica-me não somente a mim, mas a toda a humanidade na escolha desse caminho: a monogamia. Assim sou responsável por mim e por todos, e crio uma certa imagem do homem por mim escolhida; escolhendo-me, escolho o homem.
SARTRE, Jean-Paul, O Existencialismo é um Humanismo, 2004. Lisboa: Bertrand Editora, pp. 203-205

sábado, 13 de setembro de 2008

Os instrumentos do ofício v

Parte V
O a priori e o empírico
Uma vez estabelecido que um argumento é válido, a nossa atenção deve virar-se para as afirmações que constituem as premissas. Como poderemos determinar se são verdadeiras? A verdade de algumas afirmações tem de ser determinada empiricamente, isto é, pela observação. No caso de outras, não é necessário recorrer à observação. Chama-se a estas proposições «a priori». Uma proposição a priori é por vezes descrita como uma afirmação cuja verdade ou falsidade pode ser conhecida anteriormente a qualquer recurso à experiência. Contudo, esta caracterização não pretende sugerir que a experiência é irrelevante para a descoberta ou aprendizagem do que a proposição significa. No entanto, uma vez compreendido o significado de uma proposição a priori, não é necessária nenhuma prova obtida a partir da observação para justificar a alegação de que sabemos que a proposição é verdadeira ou falsa. Quando tivermos aprendido o suficiente para compreendermos o significado destas proposições e das palavras nelas contidas, poderemos saber se são verdadeiras sem recorrer a provas empíricas. A verdade destas afirmações pode ser conhecida a priori. As proposições analíticas e contraditórias examinadas anteriormente são todas exemplos de proposições desse tipo.
Em contrate com as proposições a priori estão todas aquelas de que só se pode saber que são verdadeiras ou falsas por intermédio de provas obtidas a partir da observação. Estas são proposições a posteriori ou empíricas. As proposições seguintes são exemplos de proposições empíricas:
Eu tenho uma cabeça.
A Lua tem crateras.
Alguns cogumelos são venenosos.
Todas as mulas são estéreis.
Estas afirmações não são apenas empíricas mas também consideradas verdadeiras. Se substituíres as palavras «cabeça», «crateras», «cogumelos» e «mulas» por, respectivamente «cauda», «vinhas», «maçãs» e «vacas» nas quarto proposições anteriores, obterás quatro proposições empíricas que são consideradas falsas.
A priori/a posteriori, analítico/sintético, necessário/contingente
Neste capítulo aprendemos três formas de caracterizar as proposições que são de particular interesse para o filósofo: cada proposição é i) ou necessária ou contingente, ii) ou analítica ou sintética, iii) ou a priori ou empírica (a posteriori). Iremos agora ver brevemente como estas três distinções estão inter-relacionadas.
Primeiro, repara que estas três distinções pertencem a três aspectos distintos de uma proposição. A distinção necessário/contingente respeita ao estatuto modal da proposição. Dizer que uma afirmação é necessariamente verdadeira é dizer que tem de ser verdadeira ou que é verdadeira em todos os mundos possíveis. Uma proposição é contingentemente verdadeira no caso em que acontece ser verdadeira devido à forma como o mundo é. A distinção analítico/sintético respeita à base de verdade ou de falsidade de uma proposição. Dizer que uma proposição é analiticamente verdadeira é dizer que a sua verdade se funda apenas no significado dos termos e nas leis da lógica. Uma proposição é sinteticamente verdadeira precisamente quando a sua verdade não se funda exclusivamente no significado dos seus termos e nas leis da lógica. A distinção a priori/a posteriori diz respeito ao estatuto epistemológico de uma proposição. Dizer que uma proposição é verdadeira a priori é dizer que a sua verdade pode ser conhecida sem recorrer à experiência. Uma proposição é verdadeira a posteriori precisamente no caso em que a sua verdade pode apenas ser conhecida confiando na experiência.
Depois de termos destacado as diferenças entre estas três distinções, vejamos as suas semelhanças. A observação mais impressionante acerca destas três distinções é que elas parecem dividir o conjunto das proposições exactamente nas mesmas subclasses. Isto é, podemos usar cada uma das três distinções para dividir o conjunto de proposições em duas classes: uma consiste nas proposições necessárias, analíticas e a priori; a outra contém as proposições contingentes, sintéticas e a posteriori. Mas esta clara divisão das proposições em dois grupos não é universalmente aceite. Os dissidentes mais notáveis foram Immanuel Kant e, nos nossos dias, Saul Kripke. Kant defendeu que algumas proposições são necessárias, sintéticas e a priori; por exemplo, "Todo o acontecimento tem uma causa". Desde então "o problema do sintético a priori" ocupou uma posição razoavelmente central no palco filosófico. Recentemente, Kripke defendeu que algumas proposições são necessárias, sintéticas, e a posteriori. "A água é H2O", "O calor é energia molecular", e outras identidades teóricas semelhantes são exemplos destas necessidades a posteriori.
Indução
Os argumentos que não são argumentos dedutivos válidos e que não preservam necessariamente a verdade são tradicionalmente chamados argumentos indutivos. Quando examinamos o grande número de coisas em que acreditamos, rapidamente descobrimos que a indução é a garantia da maior parte delas. Raramente extraímos da observação premissas das quais possamos deduzir validamente a verdade das proposições a posteriori em que acreditamos. A dedução falha quase sempre, mas os poderes da razão humana não são contidos pelos limites do raciocínio dedutivo. Quando um argumento dedutivo não é suficientemente forte para defender as nossas crenças, e apesar disso as provas são fortes, então a indução é usada para satisfazer as nossas necessidades. Por isso, temos de ter alguma compreensão deste tipo de argumentação.
Força indutiva
Num argumento indutivo, as premissas são indícios a favor da conclusão ou hipótese. Ao contrário do que acontece nos argumentos dedutivos sólidos, nos quais as premissas implicam as conclusões, os indícios num argumento indutivo sólido não implicam a hipótese que é deles inferida. O que é então um argumento indutivo sólido? Uma condição de solidez é que as provas sejam proposições verdadeiras. Esta condição é partilhada com os argumentos dedutivos sólidos. Mas se os indícios não implicam logicamente as hipóteses deles inferidas, o que é que nos argumentos indutivos corresponde à condição de validade dos argumentos dedutivos?
Alguns filósofos duvidam de que haja uma resposta satisfatória e, por consequência, rejeitam completamente a ideia de uma lógica indutiva. Contudo, tendo dado nota da controvérsia que impregna este assunto, tentaremos no entanto formular uma segunda condição de solidez para os argumentos indutivos.
Apesar de uma inferência indutiva dos indícios para as hipóteses não preservar necessariamente a verdade — isto é, apesar de ser logicamente possível que os indícios sejam verdadeiros e a conclusão falsa — esta inferência é apesar disso sólida se é razoável pensar que a inferência preserva a verdade; isto é, se é razoável pensar que a hipótese é verdadeira se os indícios o forem. Um argumento dedutivo sólido é aquele em que as premissas são verdadeiras e em que, se as premissas são verdadeiras, a conclusão tem de ser verdadeira. Um argumento indutivo sólido é aquele em que os indícios são verdadeiros e em que, se as premissas são verdadeiras, então é razoável aceitar a hipótese como verdadeira. Deste modo, a segunda condição de solidez de um argumento indutivo, a que chamaremos «força indutiva», pode ser expressa da seguinte maneira: se os indícios são verdadeiros, é razoável aceitar a hipótese também como verdadeira. Um argumento indutivo sólido é aquele em que os indícios são verdadeiros e que é indutivamente forte.
Verdade e crença razoável
O termo «razoável» é aqui usado num sentido especial. A questão de saber se é razoável pensar que uma proposição é verdadeira depende dos nossos propósitos. Pode fazer alguém feliz pensar que Deus existe, e, se o propósito é obter a felicidade pensando coisas dessas, talvez seja para essa pessoa razoável pensar, tendo em vista o fim, que é verdade que Deus existe. Mas isto não tem absolutamente nada a ver com argumentos indutivos ou o género de razoabilidade que eles exigem para que sejam sólidos. Em vez disso, o género de razoabilidade que um argumento indutivo sólido exige tem de ter como únicos fins a verdade e evitar o erro. Um argumento indutivo sólido tem de ser tal que, se os indícios forem verdadeiros, é razoável, para os fins que consistem na aceitação de hipóteses verdadeiras e no evitar a aceitação de hipóteses falsas, a aceitação da hipótese inferida como verdadeira.
Contudo, deve-se fazer notar que os fins de aceitar proposições verdadeiras e evitar a aceitação de falsas são de certa forma opostos. De facto, a forma mais simples de evitar a aceitação de proposições falsas é não aceitar qualquer proposição. Procedendo assim, não aceitamos nada que seja falso. Por outro lado, para aceitar o que é verdadeiro, a forma mais simples é aceitar todas as proposições, porque fazendo-o aceitaremos todas as proposições verdadeiras. Claro que o problema em aceitar todas as proposições, mesmo que o pudéssemos fazer, está em que aceitaríamos tantas proposições falsas quantas verdadeiras. Analogamente, o problema com a não aceitação de quaisquer proposições é que dessa forma renunciaríamos à possibilidade de aceitar proposições verdadeiras. O problema está em descobrir um equilíbrio entre estes dois fins de aceitar o que é verdadeiro e, ao mesmo tempo, evitar aceitar o que é falso.
Força e competição
Todos os argumentos indutivos correm assim o risco de não conseguirem preservar a verdade, isto é, de levarem ao erro. O que torna o risco de erro aceitável é a possibilidade de obter uma hipótese que seja verdadeira em vez de uma hipótese rival que seja falsa. Podemos obter uma descrição melhorada da força indutiva realçando a importância do conceito de competição entre hipóteses como uma característica da indução. A razoabilidade de obter uma proposição verdadeira depende das outras proposições com que compete e da probabilidade da afirmação do indício.
Examinemos um argumento indutivo que em tempos levou filósofos e cientistas a concluírem que o universo foi concebido por um agente. Para compreendermos o argumento indutivo que conduz a esta conclusão, lembra-te que antes da teoria da evolução ter sido concebida, a existência de seres humanos constituía um problema intelectual fundamental. Embora tivéssemos teorias da matéria que davam adequadamente conta de muitas das características do universo físico, a existência de seres humanos continuava ser desconcertante. A existência de animais apresentava um contraste marcante com a matéria inerte, mas, embora alguns filósofos pretendessem olhar os animais como mecanismos físicos complexos, aplicar a mesma conclusão aos seres humanos era repugnante. Talvez a principal razão para esta aversão fosse a existência de pensamento consciente e de cogitação racional. Um filósofo que pretendesse rejeitar a ideia de que os animais inferiores pensam e raciocinam teria dificuldade em negar que ele próprio estava a pensar e a raciocinar enquanto o fazia. Por este motivo, a existência de seres humanos, seres pensantes e racionais, constituía efectivamente um fenómeno problemático. Naturalmente, surgiu a questão de saber como o explicar.
Podemos colocar esta questão perguntando que hipótese seria racional aceitar como verdadeira por indução a partir dos indícios. Para alguns pensadores, parecia haver apenas duas hipóteses rivais. Uma era que os seres surgiram por puro acaso cósmico ou acidente. A outra era que os seres humanos surgiram como resultado de algum desígnio ou plano. Por isso, para estes pensadores, as duas hipóteses seguintes competiam pela aceitação neste contexto:
1. Os seres humanos surgiram por acaso.
2. Os seres humanos surgiram por desígnio.
Não é surpreendente que, uma vez que estas eram as hipóteses a escolher, tendo em conta os indícios, a segunda e não a primeira tenha sido considerada mais provável. Pareceu extremamente improvável que algo tão extraordinariamente intricado e complexo como um ser humano pudesse existir por acaso. De facto, a organização intricada e complexa dos seres humanos pareceu notavelmente semelhante às características intricadas e complexas dos objectos projectados pelos seres humanos. Este argumento por analogia, que examinaremos outra vez adiante, era, claro, indutivo, mas também baseado num conjunto limitado de hipóteses alternativas. Com a competição limitada desta forma, não é surpreendente que alguns dos mais perspicazes e críticos pensadores do passado olhassem a hipótese 2 como a que devia ser inferida indutivamente a partir dos indícios.
Ora, o leitor astuto pode ter notado que, para falar com rigor, uma pessoa que considere as hipóteses 1 e 2 deveria, para ser sagaz, considerar também uma outra hipótese, a saber, a hipótese de que nem 1 nem 2 são correctas. Assim, poderíamos também considerar a hipótese negativa seguinte:
3. Os seres humanos surgiram devido a algo diferente do acaso ou do desígnio.
A omissão desta hipótese da competição justifica-se devido à sua natureza não informativa. Não oferece qualquer explicação dos fenómenos observados. Se procuramos uma hipótese para explicar a existência do homem, embora a hipótese 3 possa muito bem ser verdadeira, ela não compete por esse papel.
Uma proporção bastante menor de filósofos e cientistas teria hoje considerado persuasiva a inferência indutiva da hipótese 2 a partir dos indícios. Mas uma razão para isso é que hoje não consideramos que estas duas hipóteses sejam as únicas alternativas em competição. Há, claro, a hipótese evolucionista
4. Os seres humanos surgiram por evolução.
Aqui é mais importante não confundir a hipótese informativa 4 com a hipótese não informativa 3. A hipótese 3 é logicamente implicada pela 4, mas a justificação de 3 depende completamente da força do argumento indutivo a favor de 4. Depois da hipótese evolucionista ter sido concebida, a competição incluiu não apenas 1 e 2 mas também 4. Uma vez que muitos cientistas e filósofos, talvez a maior parte, consideraram a hipótese 4 como a mais provável das três em competição, consideraram a indução dessa hipótese a partir dos indícios como persuasiva.
É importante chamar a atenção para a diferença entre a hipótese 3 e a hipótese 4. A primeira é negativa e não explica o fenómeno em questão, a existência de seres humanos. A última, pelo contrário, oferece uma teoria muito sofisticada e abrangente, a teoria da evolução, como uma explicação para o fenómeno. Por esta razão, alguém que não considerasse a hipótese 3 como um competidor consideraria a hipótese 4 como um competidor, e, na verdade, um competidor bem sucedido. Os argumentos precedentes levam a algumas conclusões importantes. Primeiro, a força de um argumento indutivo depende, em parte, das outras proposições com as quais a hipótese do argumento compete. Em segundo lugar, as outras proposições com as quais a hipótese do argumento compete dependem das hipóteses que foram imaginadas e, desta forma, do contexto da investigação.
A força indutiva como competição bem sucedida
Concluímos que a força indutiva depende essencialmente do contexto conceptual do raciocínio no qual se formulam as hipóteses. Podemos dar uma definição de força indutiva em termos da noção de competição como se segue: um argumento indutivo dos indícios para a hipótese é indutivamente forte se, e apenas se, a hipótese é tal que, de todas as hipóteses em competição, tem a maior probabilidade de ser verdadeira com base nos indícios. Assim, a questão de saber se é racional aceitar uma hipótese como verdadeira, se os indícios forem verdadeiros, é determinada pelo facto de essa hipótese ser ou não a mais provável, face aos indícios, de todas com que compete.
A conclusão a que chegámos dota-nos com uma metodologia para testar a força de um argumento indutivo. Confrontado com um argumento indutivo, devemos fazer duas perguntas críticas:
Com que afirmações compete a hipótese do argumento?
É a hipótese mais provável que todas as outras com que compete?
Apenas no caso de a resposta à segunda questão ser afirmativa podemos considerar o argumento persuasivo. Além disso, não há qualquer teste automático ou regra formal pela qual possamos fornecer uma resposta a qualquer destas questões. Para responder à primeira, temos de usar todas as capacidades intelectuais à nossa disposição. A incapacidade em considerar a rival de uma hipótese pode levar-nos a aceitar uma hipótese que seja pouco razoável aceitar. Contudo, se procurámos rivais cuidadosamente e se considerámos com seriedade a probabilidade de cada uma, podemos, a título experimental, considerar um argumento indutivamente forte quando a conclusão é a mais provável de todas as rivais que conseguimos conceber.A procura de um competidor mais provável para refutar a força indutiva é como a busca por um contra-exemplo para refutar a validade dedutiva. A incapacidade em encontrar um contra-exemplo não prova que não há nenhum. Analogamente, a incapacidade em encontrar uma hipótese rival mais provável não prova que não há nenhuma. Além disso, estes métodos de refutação são tão eficazes quanto a pessoa que os emprega. No fim, quando tivermos de decidir se devemos aceitar que um argumento é dedutivamente válido ou indutivamente forte, não dependeremos de nenhum procedimento automático, mas da nossa inteligência e integridade. Isto não é um defeito. Todo o progresso na ciência e nas humanidades depende em última instância destes elementos. Nenhuma metodologia transcende ou ultrapassa o intelecto humano.

Cornman, Lehrer e Pappas
Retirado de http://www.criticanarede.com/

sexta-feira, 12 de setembro de 2008

O EU

Mas o objecto que eu sou para quem me olha não o sou para mim. Para mim sou o absoluto da minha liberdade e é isso que o outro me nega, fixando-me. Nesta luta entre ambos, naturalmente tento defender-me. É para isso, por exemplo, que me visto. Porque vestir-me é reclamar o direito de ver sem que me vejam, ou seja, “de ser um puro sujeito”. Se tenho vergonha de mim, não é perante mim, mas perante o outro. O meu corpo é todo ele, para o outro, um centro de significações que me escapam, porque não me vejo de fora. Eis porque ele é para mim razões de preocupações. Não é um “ser com” senão à maneira de uma consciência “não tética” de si. O “nós” é um simples “símbolo de unidade”.
Vergílio Ferreira
SARTRE, Jean-Paul; FERREIRA, Vergílio, O Existencialismo é um Humanismo, 2004. Lisboa: Bertrand Editora, pp. 133-134

quinta-feira, 11 de setembro de 2008

Os instrumentos do ofício iv

Parte IV
Significado
Definição

Há muitas formas de explicar o significado de uma palavra. Às vezes podemos fazê-lo com um exemplo, ou contando uma história, ou por muitos outros modos. Mas uma forma muito importante de expressar o significado de uma palavra é definindo-a. Quando uma palavra é definida, são fornecidas algumas outras palavras que conjuntamente têm o mesmo significado que a palavra a definir. Por exemplo, podemos definir a palavra «irmão» usando as palavras «homem gerado pelos mesmos pais», isto é, o significado da palavra «irmão» é igual por definição ao significado das palavras «homem gerado pelos mesmos pais».
Definições descritivas
Uma tal definição é o relato do significado habitual duma palavra. A estas definições chamaremos adequadamente «definições descritivas». Se uma definição descritiva é adequada, então poderemos substituir a palavra definida pelas palavras que a definem na maior parte das proposições sem alterar o significado da proposição. Por exemplo, atenta na proposição
O irmão da Joana herdará o dinheiro.
Como a palavra «irmão» pode ser definida como «homem gerado pelos mesmos pais», podemos substituir a primeira pelas últimas na proposição anterior e obter
O homem gerado pelos mesmos pais que Joana herdará o dinheiro.
que é equivalente em significado à primeira. É muito fácil ver porque esta substituição não altera o significado de uma proposição. Se a única mudança que fazemos numa proposição é substituir uma palavra na proposição por outras que têm o mesmo significado, então esperamos que o significado de uma proposição não se altere.
Contudo, há um caso em que a substituição de uma palavra numa proposição pela sua definição alterará o significado da proposição. A filosofia está cheia de surpresas. Por exemplo, na proposição verdadeira
A palavra «irmão» tem cinco letras.
a palavra «irmão» ocorre dentro de aspas, com a finalidade de afirmar algo acerca da palavra «irmão», em vez de acerca de irmão. Nos casos em que uma palavra ocorre dentro de aspas, podemos mudar o significado da proposição ao substituir a palavra que ocorre dentro das aspas por outras palavras, mesmo se essas palavras são iguais por definição à palavra original. Por exemplo, se substituímos «irmão» por «homem gerado pelos mesmos pais» na proposição acima, obtemos
A palavra «homem gerado pelos mesmos pais» tem cinco letras.
que é falsa e difere em significado do original. Portanto não devemos substituir uma palavra pela sua definição quando a palavra ocorre dentro aspas.
Definições e mundos possíveis
Como é que podemos testar a correcção das definições descritivas? Repara que o termo «irmão» é igual por definição a «homem gerado pelos mesmos pais» precisamente no caso de a proposição
Algo é um irmão se e só se é um «homem gerado pelos mesmos pais».
ser analítica ou logicamente necessária. Isto é, a definição é correcta apenas quando não há nenhum mundo possível com um irmão que não é um «homem gerado pelos mesmos pais» ou vice-versa. Adoptámos um procedimento para decidir se certas coisas são logicamente impossíveis, nomeadamente, o método dos contra-exemplos ou a consideração dos mundos possíveis. Empregamos o mesmo método para testar definições descritivas. Dissemos anteriormente que concluiremos a título experimental que uma proposição é logicamente impossível se, após reflexão cuidadosa, não podermos pensar em nenhum mundo possível no qual seja verdadeira. Analogamente, concluiremos aqui a título experimental que uma definição é satisfatória se, após reflexão cuidadosa, não podermos pensar em nenhum mundo possível no qual a palavra definida se aplique correctamente a algo e as palavras que a definem não, ou vice-versa. Quando podemos pensar num tal mundo possível, então encontrámos um contra-exemplo da alegada definição, que mostra que não temos uma definição descritiva adequada. Se não pudermos encontrar um tal mundo possível, então podemos encarar a definição como inocente até prova em contrário.
Um ou dois exemplos ajudarão a tornar isto mais claro. Não conseguiremos encontrar nenhum mundo possível com uma pessoa que é um irmão mas não é um «homem gerado pelos mesmos pais», ou vice-versa. Portanto, a definição está correcta. Supõe, no entanto, que alguém insensatamente alega que podemos definir «irmão» simplesmente como «gerado pelos mesmos pais». A expressão «gerado pelos mesmos pais» aplica-se a muitas pessoas a quem o termo «irmão» não se aplica; nomeadamente, a todas as mulheres geradas pelos mesmos pais. Assim temos muitos contra-exemplos para esta definição. Quando uma definição é defeituosa, quando o termo definido não se aplica a algo a que os termos que o definem se aplica, como no caso agora examinado, então diz-se que a definição é demasiado ampla. Por outro lado, se alguém alega que podemos definir «irmão» como «homem casado gerado pelos mesmos pais», de modo que os termos definidores não se aplicam às coisas às quais o termo definido se aplica — nomeadamente, irmãos não casados —então diz-se que a alegada definição é demasiado estrita.
Uma definição pode ter o defeito infeliz de ser igualmente demasiado ampla e demasiado estrita. Por exemplo, se alguém sugere que definamos «irmão» como «o décimo filho gerado pelos mesmos pais», então esta definição será imediatamente demasiado estrita e demasiado ampla. Obviamente a definição é demasiado estrita porque alguns irmãos não são o décimo filho gerado pelos mesmos pais. Contudo, a definição é também certamente demasiado ampla, visto que, seja o que for que aconteça, é pelo menos possível que o décimo filho gerado pelos mesmos pais seja do sexo feminino e por isso não seja um irmão. Lembra-te de que para fornecer um contra-exemplo, precisamos de encontrar um exemplo num mundo logicamente possível. O exemplo não precisa de ser algo do mundo real. Assim, a definição de «irmão» como «o décimo filho gerado pelos mesmos pais» é igualmente demasiado ampla e demasiado estrita. Uma definição descritiva é aquela que não é nem demasiado ampla nem demasiado estrita.
Definições estipulativas
Um segundo género de definição, que não deve ser confundido com as definições descritivas, tem um papel de relevo na bibliografia filosófica. Este género de definição não pretende ser uma descrição precisa do uso real. Em vez disso, estipula um uso especial ou técnico. Às vezes, é conveniente e produtivo usar uma palavra de uma forma técnica para precisão ou clarificação. Nesses casos, podemos simplesmente estipular o significado especial atribuído à palavra. Chamamos às definições deste género estipulativas.
Quase todos os livros técnicos empregam definições estipulativas. Um livro de química define «mistura» e «solução» de forma técnica porque é útil proceder assim em química. Definimos «validade» de forma técnica porque é útil fazê-lo para os nossos propósitos. Desde que não sejam confundidas com as definições descritivas, as definições estipulativas são convenções perfeitamente legítimas e úteis. É importante reconhecer que não se pode produzir um contra-exemplo de uma definição estipulativa. Quando uma pessoa estipula que vai definir um termo de certa forma — por exemplo, se estipula que vai definir «linha recta» como «a trajectória da luz» — então isso é o que ela entende pelo termo «linha recta». Por intermédio da sua estipulação, o termo definido e os termos que o definem aplicam-se exactamente às mesmas coisas. Não há contra-exemplos das definições estipulativas. É manifesto que a estipulação é um expediente conveniente.
A falácia da redefinição: um abuso da estipulação
Uma forma de utilizar incorrectamente as definições estipulativas num argumento é tão vulgar e falaciosa que merece uma referência especial. A técnica consiste em tornar verdadeiras e analíticas algumas proposições controversas, estipulando uma definição para um termo-chave e depois alegando ter mostrado que a proposição original é verdadeira. Quando isto acontece, está-se a disfarçar uma definição estipulativa de definição descritiva. Referir-nos-emos a este procedimento duvidoso como a falácia da redefinição.
Eis um exemplo desta falácia. Os filósofos discutiram a tese segundo a qual todo o acontecimento tem uma causa. Os defensores desta tese são conhecidos como deterministas. Supõe que um determinista afirma que todo acontecimento tem uma causa definindo primeiro a palavra «acontecimento» como «ocorrência tendo uma causa» e depois concluindo que cada acontecimento tem uma causa. Esta estratégia dificilmente enganaria alguém. O determinista, ao estipular um significado para a palavra «acontecimento», mudou o significado da tese controversa. Do modo que usa a palavra «acontecimento», a tese reduz-se por substituição à proposição trivialmente verdadeira de que toda a ocorrência tendo uma causa tem uma causa. Isto dificilmente pode ser objecto de controvérsia.
O antídoto para este procedimento é mostrar que, ao mudar o significado da proposição, a definição estipulativa limitou-se a desviar a discussão da tese controversa em questão para uma verdade trivial que nunca esteve em causa.
Significado, definição e referência
Até agora, examinámos um aspecto da semântica, ou teoria do significado, nomeadamente, a definição. Contudo, para além da definição de uma palavra, é frequentemente importante considerar a sua referência. O significado e a referência não são o mesmo. Um termo pode ter um significado que poderemos ser capazes de definir mas que não se refere na realidade a nada que exista. Por exemplo, o termo «unicórnio» é um termo que podemos definir e que tem um significado mas, se não há unicórnios, então o termo «unicórnio» não se refere a nada que existe. Duas expressões que têm o mesmo significado, como «irmão» e «homem gerado pelos mesmos pais» referem-se aos mesmos objectos. Duas expressões podem, no entanto, referir-se aos mesmos objectos existentes, apesar de não terem o mesmo significado. Supõe que os seres humanos e apenas os seres humanos riem. Então as expressões «seres humanos» e «animal que ri» referem-se aos mesmos objectos, mesmo que as duas expressões difiram quanto ao significado.
Às vezes, uma disputa filosófica apoia-se na questão de saber se duas expressões se referem à mesma coisa quando diferem em significado. Considera a alegação de um materialista de que os acontecimentos mentais são acontecimentos cerebrais. Poderíamos ser tentados a objectar que as expressões «acontecimento mental» e «acontecimento cerebral» diferem em significado, mas este facto deixa ao materialista uma resposta pronta em termos da distinção entre significado e referência. O materialista responderia que as expressões «acontecimento mental» e «acontecimento cerebral» referem a mesma coisa embora difiram quanto ao significado. A questão de saber se, de facto, as duas expressões se referem à mesma coisa é controversa, e voltaremos a esta questão no capítulo 4. Aqui ficaremos satisfeitos em notar que a diferença de significado deixa aberta a questão de saber se os termos se referem aos mesmos objectos. As questões de identidade de referência vão para além das questões de significado e definição.
Implicação
É essencial nesta conjuntura introduzir um termo que ocorre muito frequentemente na literatura filosófica. É o termo «implicação». É usado num sentido técnico em filosofia para descrever uma relação entre proposições, e pode ser definido em termos da noção de validade. Dizer que uma ou mais proposições implica uma conclusão é equivalente a dizer que a conclusão se segue validamente dessas proposições. Mais precisamente «P implica Q» é idêntico por definição a «Q é validamente dedutível de P». Assim, por exemplo, as proposições
Se todas as pessoas são más, não se pode confiar em ninguém.Todas as pessoas são más.
juntas implicam a proposição
Não se pode confiar em ninguém.
porque a última é validamente dedutível da primeira. Por outro lado, a proposição
Todas as pessoas são más.
não implica
Não se pode confiar em ninguém
porque a última não é validamente dedutível da primeira. É pelo menos logicamente possível que se possa confiar nalgumas pessoas. Podemos imaginar um mundo possível em que isto é assim. Experimenta!
Os vários termos que introduzimos estão inter-relacionados de muitas formas. Podemos explorar algumas destas relações, enquanto elucidamos ao mesmo tempo melhor a noção de implicação, examinando as várias formas equivalentes como o termo «implica» pode ser definido. Pela investigação destas formulações equivalentes, seremos capazes de sumariar e talvez clarificar a discussão tida até ao momento.
As afirmações seguintes são formas equivalentes de definir implicação.
É logicamente impossível que as premissas sejam verdadeiras e a conclusão falsa.
Não há nenhum mundo possível no qual as premissas sejam verdadeiras e a conclusão falsa.
Seria contraditório afirmar que as premissas são verdadeiras e a conclusão falsa.
É logicamente necessário que se as premissas forem verdadeiras, a conclusão também seja verdadeira.
Em todos os mundos possíveis nos quais as premissas são verdadeiras, a conclusão é também verdadeira.
A proposição que afirma que se as premissas são verdadeiras, a conclusão é verdadeira é verdadeira e analítica.
Todas estas formas de definir o termo «implica» são equivalentes, dada a forma como definimos «logicamente impossível», «logicamente necessário», «contraditório» e «analítico». Seria um exercício útil para ti explicar precisamente por que razão isto é assim. Tenta.

Cornman, Lehrer e Pappas
Retirado de http://www.criticanarede.com/